Os 70 anos de um criador de filmecos
RESUMO Dos cineastas mais inventivos do pa�s, Rog�rio Sganzerla (1946-2004) faria 70 anos neste 2016. Enquanto Helena Ignez, musa e vi�va, conclui filme baseado em roteiro do diretor, cr�ticos e amigos lembram carreira marcada por busca de terceira via, entre o cinema intelectual (de matriz europeia) e o popular (chanchada).
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Helena Ignez no papel de �ngela Carne e Osso em "A Mulher de Todos" (1969) |
"Rog�rio tem uma frase que eu acho perfeita: 'Eu fa�o os melhores filmecos do Brasil'."
Era um dos coment�rios da atriz Helena Ignez em uma divertida entrevista concedida com o marido, o diretor Rog�rio Sganzerla (1946-2004), ao "Pasquim", em 1970.
Naquele ano, o casal j� havia se tornado um emblema do cinema brasileiro, tal qual Godard e Anna Karina na Fran�a.
Pouco antes, tinham lan�ado "O Bandido da Luz Vermelha" (1968) e "A Mulher de Todos" (1969), ambos bem recebidos por cr�tica e p�blico –segundo Helena, cada um foi visto por cerca de 3 milh�es de pessoas nos cinemas.
Mas o que, afinal, ele queria dizer com filmecos?
Nas palavras de Sganzerla, nessa mesma entrevista, eram as produ��es "subdesenvolvidas por natureza e voca��o". A precariedade surge como tema e como modo de produ��o, mas n�o deve ser confundida com aus�ncia de ambi��o intelectual e de repert�rio cultural. Pelo contr�rio.
Em um gesto de ruptura, especialmente com o cinema novo, Sganzerla lan�ava m�o das refer�ncias mais diversas para expor, com ironia e crueza, uma vis�o apocal�ptica da realidade do pa�s.
Dezessete anos depois dessa entrevista, o diretor esbo�ava mais um de seus filmecos.
Em 1987, escreveu o roteiro de "A Mo�a do Calend�rio", baseado em "D�cimo Terceiro", livro de contos de Luis Antonio Martins Mendes, amigo dos tempos de Santa Catarina, onde Sganzerla nasceu e passou inf�ncia e adolesc�ncia.
O roteiro foi inscrito por eles num edital para curtas, mas a seletiva acabou sendo interrompida. "A Mo�a do Calend�rio" nunca saiu do papel; at� que, no in�cio de 2015, Mendes mostrou a cria��o a Helena, com quem Sganzerla foi casado do final dos anos 1960 at� sua morte.
Ela se lembrava da elabora��o do texto em 1987, mas n�o tinha o roteiro em m�os. Encantada com a hist�ria, deixou de lado o projeto que preparava � �poca para se dedicar � "Mo�a do Calend�rio".
"� uma joia experimental do melhor cinema, com toda a ironia do Rog�rio", diz Helena � Folha.
A partir de ent�o, decidiu ampliar o script para convert�-lo em um longa-metragem. A vers�o final foi conclu�da ap�s oito meses de trabalho que Helena, 74, descreve como "obsessivo".
Atriz dos longas de Sganzerla, do "Bandido" a "O Signo do Caos" (2005), e de produ��es de outros cineastas, como "O Padre e a Mo�a" (1965), de Joaquim Pedro de Andrade, ela jamais deixou de atuar, desde sua estreia, no curta "O P�tio" (1959), de Glauber Rocha, com quem foi casada por quatro anos.
No entanto, ap�s a morte de Sganzerla, Helena se voltou sobretudo � dire��o e � cria��o e adapta��o de roteiros.
Em 2007, lan�ou "Can��o de Baal", filme que dirigiu ao lado de Michele Matalon. Tr�s anos depois, entrou em cartaz uma obra de maior impacto, "Luz nas Trevas - A Volta do Bandido da Luz Vermelha", codirigido por �caro Martins, a partir de roteiro deixado por Sganzerla.
Para assumir a nova vers�o do bandido, Helena convidou Ney Matogrosso, com quem trabalharia novamente em "Ral�" (2016).
"Se 'Luz nas Trevas' (2010) foi um filme at� certo ponto herdado de Rog�rio Sganzerla, aqui ['Ral�'] a personalidade da autoria projeta-se inteira", escreveu o cr�tico In�cio Araujo, na Folha, por ocasi�o do lan�amento do filme, em maio deste ano.
A consolida��o de Helena como uma autora n�o implica, por�m, um gesto de distanciamento em rela��o a Sganzerla, seja na vida, seja na obra que ela constr�i. "A energia dele � t�o presente que nem saudade eu sinto. Eu simplesmente vivencio a rela��o extraordin�ria que a gente teve", diz.
Al�m de uma nova parceria, "A Mo�a do Calend�rio" cumpre uma fun��o simb�lica, como homenagem de Helena a Sganzerla no ano em que ele completaria 70 anos.
O diretor nasceu em 4 de maio de 1946, em Joa�aba, uma cidade com cerca de 25 mil habitantes no interior de Santa Catarina.
Com as filmagens encerradas em novembro e previs�o de estreia em 2017, o longa retrata a vida de In�cio (Andr� Guerreiro Lopes), um mec�nico que devaneia com a modelo do p�ster da oficina (Djin Sganzerla, filha de Helena e Rog�rio).
Mas como em todas as hist�rias levadas adiante pelo casal, nas quais a linearidade est� sempre por um fio ou simplesmente inexiste, a sinopse revela muito pouco sobre o que, de fato, se v�.
Talvez seja mais apropriado descrever "A Mo�a do Calend�rio" como um ensaio em que realidade e imagina��o se confundem, sob a �gide de um humor corrosivo.
"Quando a gente n�o pode fazer nada, a gente avacalha." A frase c�lebre do "Bandido" ecoa meio s�culo depois do lan�amento do filme, que cravou o nome de Sganzerla entre os "enfants terribles" da cultura brasileira.
BANDIDO E VAMPIRA
Uma das marcas da ousadia do "Bandido" foi a locu��o radiof�nica, sempre em chave de par�dia.
A associa��o usual dos cr�ticos � com a obra do norte-americano Orson Welles (1915-85), por quem Sganzerla tinha muita admira��o.
Aos 23, Welles apresentou uma vers�o para a r�dio CBS da fic��o cient�fica "A Guerra dos Mundos", de H. G. Wells. Com uso criativo do jornalismo e efeitos sonoros ins�litos, ele levou ao p�nico moradores de Nova Jersey, onde a hist�ria era ambientada, ao narrar uma suposta invas�o marciana.
Mas a presen�a do r�dio no "Bandido" tamb�m vem de outra fonte, menos alardeada. Albino Sganzerla, pai do diretor, possu�a uma emissora em Joa�aba. O fasc�nio com aquele cen�rio o estimulou a se lan�ar precocemente na cria��o art�stica.
Com sete anos, n�o apenas escreveu um livro, "Novos Contos", como o levou a uma tipografia para que fosse impresso.
J� vivendo em uma pens�o em S�o Paulo, aos 17, Sganzerla assinava cr�ticas para "O Estado de S. Paulo" e "Jornal da Tarde", que refletiam especial admira��o pela "nouvelle vague".
Foi por essa �poca que o professor da USP e pesquisador de cinema Ismail Xavier o conheceu.
Ao lado de amigos, Ismail, � �poca estudante de engenharia, promoveu pequena mostra de cinema brasileiro, com debates de que participaram cr�ticos da imprensa paulista. Era 1966.
"O Rog�rio j� tinha um repert�rio cinematogr�fico muito rico e, como cr�tico, expunha seus pontos de vista com clareza", lembra Ismail. "Nos debates, era um outro estilo. Ele j� tinha um gosto pelo nonsense, suas respostas eram desconcertantes."
Apenas dois anos depois, em 1968, entrava em cartaz o primeiro longa de Sganzerla, "O Bandido da Luz Vermelha", inspirado na vida de Jo�o Ac�cio Pereira da Costa, que ganhou notoriedade ao assaltar mans�es paulistanas.
"� um filme que vai muito al�m dessa divis�o entre cinema de arte e cinema popular", diz o m�sico P�ricles Cavalcanti, um cin�filo que viria a se tornar amigo de Sganzerla poucos anos depois.
Como observa Ismail, n�o � um detalhe que "Bandido" se apresente como "um filme de cinema".
Para criar seu primeiro longa, lan�ado quando tinha s� 22 anos, Sganzerla evidentemente se inspirou em movimentos europeus de vanguarda, especialmente a "nouvelle vague". Os expoentes dessas correntes pretendiam criar "filmes de arte". Delas Sganzerla contrabandeou procedimentos como a reapropria��o de g�neros cinematogr�ficos (tais como o filme "noir"), a colagem na constru��o dos personagens e o humor nonsense. Mas "Bandido" tamb�m atirava em outra dire��o.
Em uma das cenas, o assaltante vivido por Paulo Villa�a discute com a empregada de uma casa que havia acabado de invadir.
"N�o quero mais conversar com o senhor, n�o falo com estrangeiros. Deixa eu ir fazer o caf� que j� t� atrasada", diz ela, para perplexidade do ladr�o.
� uma cena de chanchada, aponta Ismail. Nesse sentido, Sganzerla se descola do cinema "culto" europeu para compor seus filmecos, em um movimento de aproxima��o com o tropicalismo.
A morte do protagonista no fim de "O Dem�nio das Onze Horas" (1965), filme de Godard com o qual "Bandido" guarda pontos de contato, se d� com cita��o a Rembrandt. J� o anti-her�i de Sganzerla, praticamente um iletrado, se mata ao som de bolero mexicano.
FILME DE CINEMA
Esse descompasso em muito explica a op��o do diretor em anunciar seu longa como "filme de cinema", e n�o "filme de arte".
"'Bandido' � extremamente complexo em sua constru��o, ao mesmo tempo em que lida com materiais que n�o s�o 'nobres'", comenta Ismail.
N�o � por acaso que o primeiro longa de Sganzerla tenha lotado os cinemas do centro paulistano, o que tamb�m ocorreu com seu filme seguinte, "A Mulher de Todos".
"� um passo al�m do 'Bandido'", avalia Joel Pizzini, diretor do document�rio "Mr. Sganzerla" (2011).
No papel de �ngela Carne e Osso, personagem que se define como a "ultrapoderosa inimiga n�mero um dos homens" e dialoga com a est�tica vamp, Helena alcan�a seu �pice como atriz.
Mas n�o � um brilho isolado. Um pante�o dos personagens hil�rios do cinema brasileiro teria for�osamente o magnata Doktor Plirtz, marido de �ngela, interpretado por J� Soares. Para ele, os intelectuais merecem n�o mais que o deboche. "� o tal neg�cio: eu procuro cultura e s� me sai dinheiro", dispara.
Parceiro de nomes como David Byrne, o compositor Arto Lindsay � um dos entusiastas de "A Mulher de Todos". A cena em que �ngela fuma charuto na praia como provoca��o a um rapaz que acabara de conhecer, vista dezenas de vezes por Lindsay, o levou a compor "Ilha dos Prazeres", m�sica que estar� em disco a ser lan�ado em 2017 (veja letra abaixo).
N�o ser� a primeira vez que o trabalho do diretor e da atriz ter� servido de inspira��o � m�sica.
"Ser� poesia, inspira��o? Ou pieguice de ocasi�o? Ser� um filme de Sganzerla? Ou uma cena de novela?", cantou P�ricles Cavalcanti em "Ser� o Amor?", m�sica do disco "Blues 55" (2004).
O primeiro trabalho profissional de P�ricles, � �poca integrante da banda de Gilberto Gil, foi a trilha de "Copacabana Mon Amour", filme de Sganzerla de 1970.
A interse��o de cinema e m�sica sempre foi vista com extremo cuidado pelo diretor. Em "A Mulher de Todos", ele cria um percurso muito particular, com Pixinguinha e Elvis Presley, Noel Rosa e Roberto Carlos, entre outras escolhas que escapam da obviedade.
Casado com Paloma Rocha, filha de Helena e Glauber, Joel Pizzini se tornou bastante pr�ximo de Sganzerla nos anos 1990 e 2000.
Quando seu document�rio "500 Almas" estava em finaliza��o, Pizzini decidiu mostr�-lo ao diretor, j� em cadeira de rodas devido ao c�ncer no c�rebro em est�gio avan�ado.
"Rog�rio me deu dicas incr�veis, falou de aspectos aos quais eu nunca tinha prestado aten��o", lembra. "Ele estava vendo o corte final de '500 Almas' e se virou de costas para a tela. 'Preciso ouvir seu filme', disse, e fez coment�rios interessantes sobre musicalidade, ritmo. Foi um impacto."
ATERRO, DESTERRO
"Qualquer Coisa" (1975), m�sica de Caetano Veloso, n�o s� menciona "Sem Essa, Aranha", outro filme de Sganzerla, como traduz em versos tra�os da biografia do diretor.
Esse longa integra a fase Belair, produtora criada por Helena, Sganzerla e Julio Bressane. Ao longo de apenas tr�s meses de 1970, eles conclu�ram seis filmes. Desses, tr�s foram dirigidos pelo catarinense: "Sem Essa, Aranha", "Copacabana Mon Amour" e "Carnaval na Lama" –as c�pias desse �ltimo acabaram se perdendo.
Os filmes da Belair evidenciam uma radicaliza��o em rela��o � fase inicial, de "Bandido" e "A Mulher de Todos".
Nesses primeiros, como diz Pizzini, "Rog�rio devora os g�neros, mas eles est�o l�. H� comunicabilidade". Por outro lado, nos t�tulos da Belair, prevalece "postura an�rquica, sem concess�o. Os filmes eram intransigentes do ponto de vista est�tico e, por isso, tinham dif�cil inser��o p�blica", de acordo com o documentarista.
A Belair se tornou um dos pontos centrais do que se convencionou chamar na �poca de cinema marginal. No entanto, o r�tulo, que abarcaria ainda diretores como Ozualdo Candeias e Andrea Tonacci, sempre foi rejeitado por Sganzerla e Bressane.
Para eles, a classifica��o de "marginal" poderia transmitir a ideia de que se colocavam � parte, em uma forma de nega��o do p�blico, quando, na verdade, ansiavam pelas salas cheias.
Na vis�o dos diretores, eram o mercado e a censura imposta pela ditadura militar os respons�veis por deix�-los � margem. A exibi��o dos filmes da Belair praticamente se restringia aos festivais. Quando entravam em cartaz, permaneciam poucos dias no circuito.
O inc�modo crescente da ditadura com o despudor dos filmes da Belair levou os diretores e a atriz � op��o pelo ex�lio em Londres.
No retorno ao Brasil, em 1972, Sganzerla e Helena ainda viviam sob a sombra da censura, que, aliada �s dificuldades de financiamento para o cinema, tornava invi�vel a produ��o.
Aos poucos, Sganzerla voltou a filmar, mas de modo irregular. Concentrou-se em retratar, muito � sua maneira, artistas que n�o s� admirava mas tamb�m julgava incompreendidos. Como ele, afinal.
S�o tempos de "Noel por Noel", curta de 1981, e "Isto � Noel Rosa", outro curta, de 1990. Tempos de "Mudan�as de Hendrix", document�rio de 1977, e "Brasil", curta de 1981, sobre Jo�o Gilberto.
Mas esse per�odo � dedicado sobretudo a Orson Welles, que inspira longas de fic��o como "Nem Tudo � Verdade", de 1986.
O �ltimo filme dirigido por Sganzerla, "O Signo do Caos" (2005), reinterpreta a passagem pelo Brasil, em 1942, de Welles, que n�o conseguiu concluir o longa que vinha filmar.
Retomando frase do pr�prio Welles, um dos personagens de "Signo" diz: "� preciso tirar o cinema do quarto de brinquedos".
Assim fazem os filmecos de Rog�rio Sganzerla e Helena Ignez.
*
UMA CENA, UMA CAN��O
Obcecado por trecho de "A Mulher de Todos", o compositor Arto Lindsay comp�s "Ilha dos Prazeres", que estar� em disco a ser lan�ado em 2017
ILHA DOS PRAZERES
(Arto Lindsay/Melvin Gibbs)
Conhece a ilha dos prazeres
Dos prazeres extremos
Trilha sonora calcinha charuto
Nessa tarde imensa
Conhece a ilha dentro do filme
T�o cinzento t�o extenso
Voltando ao crime e ao momento
Tudo se fecha por fora e por dentro
Ilha maior que o para�so
� sombra dos c�lios
A praia � p�bica
E sem ju�zo
Seus quadris decididos
O azul n�o para no lugar
Nesse morma�o �ntimo
Ilha maior que o para�so
Esc�ndalos brisas
Firma Ltd.(BMI)/Archetext Music (BMI)
NAIEF HADDAD, 40, � rep�rter associado da Folha.
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