A globaliza��o da crise ambiental p�e em xeque o capitalismo?
RESUMO O historiador Luiz Marques e a fil�sofa Isabelle Stengers seguem a trilha de Naomi Klein e predizem derrocada do capitalismo pela mudan�a clim�tica e pelo caos ambiental planet�rio. Seus livros alimentam o ceticismo quanto � Confer�ncia de Paris, que come�a na segunda, mas n�o demonstram uma cat�strofe inevit�vel.
Fabio Braga/Folhapress | ||
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Lama da mineradora Samarco em Mariana (MG) se espalha pela foz do rio Doce na praia de Reg�ncia em Linhares (ES) |
O ano era 1977 ou 1978. Fausto Castilho (1929-2015) dava uma aula na Escola de Comunica��es e Artes (ECA-USP) quando um p�ssaro entrou pela janela e pousou em sua cabe�a. A intrus�o repentina da natureza marcou para sempre os que o ouviam naquela manh�.
Castilho dizia ent�o que a filosofia sempre se ocupara das rela��es problem�ticas entre sujeito e objeto. Dali em diante, ponderou, teria tamb�m de se preocupar com o dejeto, vale dizer, com os subprodutos dessa intera��o.
A ave, educada, deixou a sala sem mais alarde.
Muitos ali escutaram provavelmente pela primeira vez que a tem�tica da polui��o tinha potencial filos�fico, se n�o revolucion�rio. Desde ent�o, os partidos verdes se institucionalizaram, e a quest�o ambiental entrou pela porta da frente nas corpora��es e nos governos (n�o tanto no Brasil, onde uma hecatombe como a de Mariana vai tratada como corriqueira).
H� uma corrente de pensamento, por�m, que busca resgatar o potencial de ruptura entrevisto h� quatro d�cadas, ap�s a publica��o de "Primavera Silenciosa" por Rachel Carson em 1962. Ajudados pelo acontecimento planet�rio do aquecimento global, autores como a belga Isabelle Stengers e o brasileiro Luiz Marques se arriscam na trilha da americana Naomi Klein para vaticinar que ele incinerar� as bases do regime capitalista.
Cada um a seu modo, produziram dois livros impressionantes.
TOLICES
Stengers se destaca pela originalidade filos�fica de "No Tempo das Cat�strofes" [Cosac Naify, 157 p�gs., R$ 34,90], que beira o ex�tico. Entre outras formula��es desconcertantes, ela al�a a tolice � condi��o de conceito interpretativo pol�tico:
"Em nosso mundo dito moderno, uma vez que o her�i se torna destruidor das ilus�es que atravancaram o processo de emancipa��o da humanidade, o g�nero �pico pode ter como consequ�ncia o poder dado ao que chamarei de tolice."
Para a pensadora belga, esse mal acomete tanto governantes quanto cientistas quando desqualificam os questionadores da tecnoci�ncia como inimigos da raz�o e obscurantistas. Seu exemplo mais caro � o da resist�ncia, na Europa, aos organismos geneticamente modificados (OGMs), ou transg�nicos.
A recusa desses produtos por parte do p�blico, argumenta, n�o se funda na ignor�ncia, mas num c�lculo mais racional que o dos cientistas guiados apenas pelos imperativos da pr�pria carreira. S� os consumidores conseguem enxergar mais � frente e divisar os riscos sist�micos que a intensifica��o da agricultura com os OGMs acarreta, como o surgimento de pragas resistentes e a perda de autonomia dos produtores com a depend�ncia crescente de tecnologias patenteadas.
Stengers considera que, se nada for feito, a marcha insensata do crescimento de base tecnol�gica garantidor da reprodu��o do capital conduzir� � barb�rie. Mas ela descarta tanto a miragem do socialismo quanto a alucina��o de uma volta ao passado pr�-cient�fico.
LIMITES
N�o h� receita para a a��o nem objetivo predeterminado por alcan�ar, ao estilo de Marx: "Deve haver luta, mas ela n�o tem, n�o pode ter mais, por defini��o, o advento de uma humanidade enfim liberada de qualquer transcend�ncia. Teremos sempre que contar com Gaia, que aprender, � maneira dos povos antigos, a n�o ofend�-la" (it�lico no original).
Stengers, � bom que se diga, n�o subscreve inteiramente a vers�o forte e popular da met�fora constru�da por James Lovelock, que invoca o nome da divindade grega para caracterizar o planeta Terra como um organismo vivo.
Para a autora belga, Gaia � a imagem dos limites –da finitude– que os recursos naturais imp�em � obsess�o com uma expans�o cont�nua da produ��o e do consumo. A humanidade precisar� reagir � sua intrus�o, que interrompe a ladainha de que n�o h� alternativa ao capitalismo, mas tal rea��o n�o tem ainda forma nem conte�do definidos.
AMBI��ES
Marques sobressai, de seu lado, pelo porte da empreitada que resultou em "Capitalismo e Colapso Ambiental" [Editora da Unicamp, 642 p�gs., R$ 80]. N�o � usual que um historiador dedicado � tradi��o cl�ssica saia do seu caminho para encetar uma reconstru��o ambiciosa da trajet�ria, iniciada com ela, que levou ao beco sem sa�da ambiental (segundo sua interpreta��o) do capitalismo.
Ambiciosa demais, talvez. As 400 p�ginas e 11 cap�tulos da parte um ("A converg�ncia das crises ambientais") poder�o ser sobrevoadas a jato por quem tem alguma familiaridade com as crises ambientais no Brasil e no mundo. Elas pretendem compor, no entanto, a demonstra��o da tese anticapitalista adiantada nas 42 p�ginas da introdu��o e nas 98 da parte dois ("Tr�s ilus�es conc�ntricas").
A tese central do livro: "O capitalismo � insustent�vel em termos ambientais e a esperan�a de torn�-lo sustent�vel pode ser considerada como a mais extraviadora ilus�o do pensamento pol�tico, social e econ�mico contempor�neo".
ILUS�ES
De uma tacada, Marques declara a inocuidade da �rdua aproxima��o que se observa hoje entre ambientalistas e empresariado. E, implicitamente, indica que ser� in�til a Confer�ncia de Paris sobre mudan�a do clima, que se inicia nesta segunda-feira (30). Paris e todas as 20 confer�ncias que a precederam jamais tocaram ou tocar�o no cerne de outras duas ilus�es ligadas � tese central:
(1) A cren�a, enraizada na cultura de matriz europeia, segundo a qual "quanto mais excedente material e energ�tico formos capazes de produzir, mais segura ser� nossa exist�ncia como esp�cie em face da escassez e das adversidades da natureza";
(2) "A ilus�o antropoc�ntrica, de cunho metaf�sico e religioso, [...] de que a biosfera disp�e-se para o homem tal como um meio se disp�e a seu fim e de que o direito de reduzi-la a um dispositivo energ�tico voltado para o proveito humano radicaria na singularidade de nossa esp�cie ou numa descontinuidade radical entre ela e a teia da vida".
A atualidade, a extens�o e a erudi��o das indica��es compiladas por Marques exigem que seu livro seja lido com respeito e proveito por qualquer um. A quest�o � se elas fornecem uma demonstra��o, como quer o autor, de que o modo de produ��o capitalista j� esbarra em seus limites e ser� em breve substitu�do.
Pelo qu�? Nem Stengers nem Marques, ciosos do fiasco do socialismo real, tomam a via escorregadia de uma filosofia da hist�ria, que ao mesmo tempo indique e prescreva seu "t�los", a finalidade necess�ria. De todo modo, ambos parecem optar por uma esp�cie de teleologia de baixo teor: � inevit�vel, por obra de Gaia, que o capitalismo se esboroe, ainda que n�o se saiba o que vir� depois.
IND�CIOS
Eles podem at� estar certos, claro. N�o faltam ind�cios, a come�ar pelo aquecimento global, de que a expans�o do consumo de energia de origem f�ssil n�o pode continuar no ritmo e na escala atuais. Da� a demonstrar que o sistema capitalista n�o ser� capaz de operar a imprescind�vel descarboniza��o da economia, por�m, vai certa dist�ncia.
N�o � inconceb�vel que empresas e governos capitalistas logrem substituir o carv�o, o petr�leo e o g�s natural por fontes renov�veis como a e�lica, a solar e hidr�ulica. Esse processo j� come�ou, ainda que lento em demasia.
Todas as tr�s fontes alternativas, em �ltima inst�ncia, derivam da luz que emana do Sol. E este, para todos os efeitos da �nfima escala humana –temporal e material– pode ser considerado na pr�tica um recurso infinito, tamanha � a quantidade de energia que dispensa sobre a Terra.
De maneira talvez irresponsavelmente otimista, pode-se imaginar que essa substitui��o se componha com a estabiliza��o populacional e com uma crescente produ��o de mat�rias-primas n�o minerais, recicl�veis, obtidas por s�ntese biol�gica. Assim se engendraria um crescimento mais vegetativo, um desenvolvimento ainda capitalista, mas de baixo metabolismo, por assim dizer.
Pelo andar da carruagem da globaliza��o, n�o parece nem um pouco prov�vel que isso aconte�a. Enquanto essa possibilidade for imagin�vel, no entanto, a profecia de Klein, Stengers e Marques n�o pode ser dada como autorrealiz�vel, e a f� nos poderes emancipadores do capitalismo continuar� encontrando muito solo para produzir seus frutos ressequidos.
MARCELO LEITE, 58, � rep�rter especial e colunista da Folha.
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