Pais e filhos
Pequim, 2013
Walter Salles | ||
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O cineasta chin�s Jia Zhang-ke e seu primo Sanming em usina de carv�o na cidade de Fenyang |
�ltimo dia de filmagem do document�rio com Jia Zhang-ke na China, em novembro de 2013. O jovem realizador de "Plataforma" tinha previsto se reunir com seus colaboradores mais pr�ximos, o fot�grafo Yu Lik-wai e o engenheiro de som Zhang Yang, para discutirem um novo projeto coletivo.
Quando nossa pequena equipe chegou no caf� onde �amos registrar esse encontro, Jia estava debru�ado sobre seu computador. Lia not�cias na internet, o olhar crispado. Pela primeira vez em duas semanas, n�o veio nos receber. Yu Lik-wai e Zhang Yang estavam igualmente tensos. Algo havia ocorrido, e n�o sab�amos o qu�.
Aos poucos, fomos compreendendo que a exibi��o de "Um Toque de Pecado", seu filme sobre a irrup��o de viol�ncia em diversas regi�es da China, havia sido suspensa. Com seus tr�s primeiros filmes proibidos na China, Jia sabia melhor do que ningu�m o que "suspens�o" queria dizer.
Um abatimento generalizado tomou conta do grupo. Tudo, agora, era sil�ncio. Deixamos a c�mera desligada, e assim ficamos durante um longo tempo.
Pouco a pouco, a conversa foi sendo retomada. Frases lacunares, uma palavra aqui, outra ali. Perguntei a Jia se ele preferia que os deix�ssemos a s�s. Ao contr�rio do que muitas outras pessoas teriam respondido, ele disse: "Filma".
E foi assim que essa conversa, t�o pr�xima do cinema direto quanto inesperada, fez parte de nosso document�rio, "Um Homem de Fenyang". N�o foi o �nico momento em que algo semelhante aconteceu na filmagem, reflexo de um realizador cuja vida e o cinema est�o profundamente entrela�ados.
Fenyang, prov�ncia do Shanxi, norte da China. Estamos perto da Mong�lia. Os ventos glaciais de Ulan Bator castigam a terra amarela que s� conhecia dos filmes de Jia Zhang-ke e do primeiro filme de Chen Kaige. T�nhamos ido at� Fenyang para registrar algo espec�fico. As mem�rias de inf�ncia e adolesc�ncia irrigam os primeiros filmes de Jia Zhang-ke, e quer�amos reencontrar os amigos e familiares que, naquela regi�o t�o singular da China, o haviam inspirado.
Tamb�m queria tatear outra camada da mem�ria: por meio de seus filmes, Jia Zhang-ke registrou uma geografia f�sica e humana em muta��o acelerada. Num pa�s onde a palavra que mais encontramos foi "demoli��o", Jia registrou aquilo que n�o mais seria. Ofereceu assim um potente registro de seu tempo, talvez uma das principais miss�es do cinema. Da� a ideia de voltar com Jia aos locais onde ele havia filmado e registrar o que tinha mudado depois que sua c�mera tinha parado de rodar.
Hong Nan-che, onde foi filmado "Um Toque de Pecado". Nessa pequena aldeia, tudo parece, ao contr�rio, parado no tempo. Uma est�tua de Mao guarda a pra�a central. Jia fala sobre como, na China contempor�nea, a viol�ncia virou uma forma de express�o daqueles que, submetidos � l�gica do mercado, n�o conseguem ser ouvidos. Chegamos perto do final do dia de filmagem. Jia silencia.
E ent�o come�a a falar sem que uma pergunta lhe tenha sido feita. A tradutora me diz que ele fala de seu pai. De como ele sofreu durante a Revolu��o Cultural, do quanto ele temeu por Jia quando ele realizou seus primeiros filmes, do pouco tempo que Jia teve para conversar com o pai antes da sua morte. "Talvez seja assim, uma rela��o pai-filho", diz.
Um amigo poeta que viu o document�rio sugere que, quando Jia conta que o pai queimou todos os seus cadernos durante a Revolu��o Cultural, ele n�o p�de deixar de pensar que o conjunto dos filmes de Jia vai ser sempre uma esp�cie de resgate da mem�ria do pai, uma recupera��o do que o pai n�o p�de dizer a ele. O cinema como uma forma de preencher parte daquilo que foi perdido.
Aquele momento ecoa at� agora. Estranhamente, ele me remete � minha m�e, e n�o ao meu pai. A tudo que n�o soubemos nos dizer. A como filmei "Central do Brasil" na esta��o em que ela havia trabalhado aos 18 anos, algo que s� vim saber quando o filme estava pronto, e ela havia partido havia mais de dez anos. E tento ainda entender por que Jia escolheu aquela tarde para contar algo que, indiretamente, me diz t�o profundamente respeito.
Nota: a Folha e o Espa�o Ita� de Cinema - Augusta fazem na quarta (2), �s 20h, pr�-estreia de "Jia Zhang-Ke - Um Homem de Fenyang", de Walter Salles. Ap�s a sess�o, o cineasta debate com o cr�tico da Folha In�cio Ara�jo e com Renata Almeida, diretora da Mostra Internacional de Cinema. Ingressos gratuitos na bilheteria a partir das 19h.
WALTER SALLES, 59, � cineasta. Seu filme "Jia Zhang-ke, Um Homem de Fenyang" estreia nesta quinta (3) nos cinemas.
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