Mil disfarces de Get�lio Vargas convergem num gesto de coer�ncia
RESUMO O teatral suic�dio de Get�lio, impelido pelas press�es pol�ticas internas e externas sobre seu governo e ocorrido h� 60 anos, fez com que o poder pol�tico do estadista perdurasse ap�s sua morte. �ltimos anos de sua vida s�o tema do terceiro e �ltimo tomo da biografia que lhe consagra Lira Neto, aqui resenhado.
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Os efeitos pol�ticos do suic�dio de Get�lio Vargas (1882-1954), que hoje completa 60 anos, j� se dissiparam h� muito tempo, mas o ato continua a reverberar pela singularidade.
Tr�gico, violento e irrecorr�vel, ele discrepa dos costumes conciliat�rios vigentes desde pelo menos meados do s�culo 19, quando se fixou o padr�o das revolu��es com pouco ou nenhum derramamento de sangue e das transi��es negociadas em que parte da velha ordem se transfere como por osmose � nova (1889, 1930, 1945, 1964, 1985). Discrepa tamb�m da personalidade do suicida, conciliador-mor que encarnou como ningu�m o papel de sedutor matreiro capaz de se safar das piores encrencas. Como todo gesto extremo, ter� sido preparado por uma complexa malha de causas.
Foto Marcelo Justo/Folhapress | ||
� sabido que Get�lio sentia atra��o pelo suic�dio honroso, destinado a prevenir alguma condi��o intoler�vel na eventualidade de uma derrota definitiva. Pelo menos duas vezes ele mencionou a possibilidade por escrito, quando era arrastado, em outubro de 1930, ap�s muita hesita��o, � ofensiva rumo ao Rio, sem saber que resist�ncia encontraria pelo caminho, e em julho de 1932, quando foi surpreendido pelo �mpeto da contrarrevolu��o constitucionalista que irrompeu em S�o Paulo. Um de seus filhos viria a suicidar-se em 1977, o que parece sugerir alguma propens�o inata.
Para que essa atra��o se convertesse em ato, por�m, foi preciso que todas as portas se fechassem. Com os mandantes da tentativa de assassinar Carlos Lacerda (da qual resultou a morte de um oficial da Aeron�utica) alojados em seu pal�cio, com o "mar de lama" que as investiga��es subsequentes revelaram, Get�lio enfrentava uma avassaladora campanha pela ren�ncia, que logo se traduziu em ultimato militar transmitido pelo pr�prio ministro da Guerra (Ex�rcito). Naquela madrugada de 24 de agosto de 1954, ele ainda negociou uma licen�a que o manteria afastado do cargo at� a conclus�o das dilig�ncias. Os militares, contudo, foram irredut�veis.
Relatos da �poca indicam um presidente amargurado, aos 72 anos, com os desmandos na fam�lia cometidos �s suas costas e, ao mesmo tempo, receoso de que ela passasse a objeto de execra��o p�blica: um irm�o e um filho talvez estivessem a par da prepara��o do atentado; outro filho vendera uma propriedade a Greg�rio Fortunato, chefe da guarda pessoal do pal�cio e mentor do crime, pago com empr�stimo banc�rio avalizado por Jo�o Goulart, ministro do Trabalho at� a v�spera e afilhado pol�tico do presidente.
Num homem t�o racional e met�dico, mesmo os lances da paix�o foram comedidos pelo c�lculo. Psicologia � parte, o extraordin�rio nesse suic�dio � seu alcance pol�tico -num derradeiro passe de m�gica o velho prestidigitador inverte a mar�, derrota os inimigos quando mal haviam aberto o champanhe (conforme o relato de Lacerda sobre o fat�dico amanhecer) e se consagra na mem�ria popular, comandando seu vasto eleitorado por algumas d�cadas desde o al�m-t�mulo (h� ind�cios de que ele tencionava apoiar Juscelino e seguramente gostaria de ter visto Jango ou Leonel Brizola como sucessores).
ATENTADO
Ao contr�rio do suic�dio, o atentado � quase inexplic�vel. De sua execu��o desastrada, Lacerda emergiu como m�rtir vivo (fora ferido no p�) conclamando os militares a fazer justi�a ao colega de farda assassinado. Mesmo que o crime fosse bem-sucedido, por�m, naquele ambiente exasperado as consequ�ncias seriam devastadoras para o governo, sobre o qual recairiam as suspeitas pela elimina��o do principal inimigo de Get�lio na imprensa. Por r�sticos que fossem, � estranho que os autores da trama n�o se dessem conta disso.
Atentado e suic�dio formam o cl�max do terceiro volume da biografia escrita por Lira Neto,"Get�lio - Da Volta pela Consagra��o Popular ao Suic�dio (1945-1954)" [Companhia das Letras, R$ 49,50, 430 p�gs.], agora lan�ado, completando uma empreitada de 1.654 p�ginas. Ali, esse autor que gosta de explorar perip�cias e lances pitorescos, mas trata seu material com exatid�o escrupulosa, d� a vers�o dos condenados, apresentada anos depois do epis�dio.
As confiss�es teriam sido obtidas sob coa��o. Os dois acusados apenas seguiam Lacerda, em busca de algo que o comprometesse. Quando, na madrugada de 5 de agosto, o major Rubens Vaz estacionou na rua Tonelero e Lacerda desceu do carro para entrar no pr�dio onde morava, um dos r�us teria se aproximado para anotar o n�mero da placa, sendo interpelado pelo militar, que tamb�m sa�ra do carro. Seguiu-se uma luta entre ambos; Lacerda, que mal entrara no pr�dio, come�ou a atirar, atingindo por engano o major. Um segundo tiro, desferido pelo acusado com quem se atracava, matara o oficial. O inqu�rito teria sido uma fant�stica farsa.
S�o m�nimos os ind�cios em apoio dessa vers�o. Lira Neto os registra com gosto, contente por envolver acontecimento t�o m�tico nessas fuma�as de mist�rio: a arma de Lacerda, que de fato disparou, n�o foi periciada; os boletins m�dicos do ferimento no p� desapareceram. Mas o bi�grafo endossa a vers�o oficial, sustentada por todas as evid�ncias dispon�veis, entre elas o relato de tr�s jornalistas do "Di�rio Carioca" que por acaso viram a cena a poucos metros de dist�ncia (um deles, o vizinho Armando Nogueira, foi o primeiro a report�-la). � preciso uma s�lida f� em teorias conspirat�rias para acreditar que n�o houve atentado.
GUARNI��O
A guarda pessoal, que na �poca tinha 83 integrantes, havia surgido em 1938. Numa noite de maio daquele ano, seis meses depois do golpe em que Get�lio se fez ditador, um destacamento integralista (esp�cie de fascismo cat�lico-tropical) invadiu o Pal�cio Guanabara com o objetivo de assassin�-lo e tomar o poder. O assalto foi recha�ado pela guarni��o e por auxiliares do autocrata, mas a fuzilaria se prolongou enquanto o Ex�rcito e a Pol�cia Especial demoravam, de forma suspeita, a enviar refor�os.
Foto Marcelo Justo/Folhapress | ||
Benjamin Vargas, irm�o mais novo de Get�lio, teve papel crucial na defesa do pal�cio naquela madrugada e parece ter sido respons�vel pelo fuzilamento sum�rio, nos pr�prios jardins do Guanabara, de uma dezena de golpistas presos quando o ataque foi debelado ao amanhecer.
Em 1932, esse mesmo irm�o se pusera � frente de um batalh�o de volunt�rios, recrutado entre capangas e apaniguados da fam�lia Vargas em S�o Borja para combater os paulistas. Nesse batalh�o, que numa arrua�a de fronteira chegou a invadir territ�rio argentino, figurava Greg�rio Fortunato, o futuro Anjo Negro, a quem foi confiada, depois do assalto integralista, a miss�o de chefiar o bando convertido em guarda permanente dedicada � prote��o do ditador.
Lira Neto narra incidentes espantosos durante a ditadura do Estado Novo em que Bejo -como o irm�o atrabili�rio e alco�latra era chamado em fam�lia- provoca desafetos em boates, d� tiros a esmo, chega a ferir terceiros e continua imp�vido. Certa vez mandou sequestrar e espancar um jornalista; o assecla encarregado da tarefa seria mais tarde um dos dois condenados pela execu��o do atentado contra Lacerda. Nesse submundo provinciano em que se cruzavam compadrio e delinqu�ncia, em que o h�bito caudilhesco da viol�ncia se ampliara na impunidade garantida pela ditadura, formou-se o "mar de lama" que tragou o mandato democr�tico de Get�lio.
CARTA-TESTAMENTO
Mas, como no movimento entre tese/ant�tese/s�ntese, atentado e suic�dio somente se resolvem no terceiro elemento m�tico dessa narrativa, a carta-testamento, tamb�m ela objeto de controv�rsia duradoura. Existem duas vers�es desse texto.
A primeira, manuscrita certamente pelo pr�prio Get�lio, � mais curta. Seu tom � apressado, algo prosaico, e certas passagens exalam ressentimento. O autor reclama da "fraqueza de amigos que n�o me defenderam" e da "felonia de hip�critas e traidores a quem beneficiei". O fecho � pedestre e anticlim�tico: "A resposta do povo vir� mais tarde...".
A segunda vers�o, datilografada, logo distribu�da e replicada � exaust�o nas r�dios e jornais, foi a que passou � hist�ria. � uma magn�fica exorta��o pol�tica, escrita com simplicidade intensa e solene. Sua qualidade liter�ria quase faz esquecer o quanto ressoa de demagogia nacionalista e de culto � personalidade em seu teor.
"N�o me acusam, me insultam, n�o me combatem, caluniam, e n�o me d�o o direito de defesa." Feitas as negativas desse introito, que valem por uma refuta��o, o texto relembra que, depois de "dec�nios de espolia��o", o autor se fez chefe da Revolu��o de 1930, instaurou "um regime de liberdade social", foi deposto e retornou ao governo "nos bra�os do povo".
Passa a enfrentar a resist�ncia de grupos "nacionais e internacionais" ao aumento do sal�rio m�nimo, � restri��o nas remessas de lucros para o exterior, � cria��o da Eletrobras. Vinha lutando "m�s a m�s, dia a dia, hora a hora" -o tempo da narrativa s� se acelera- at� concluir: "Nada mais vos posso dar, a n�o ser o meu sangue", o que confere uma resson�ncia crist� ao sacrif�cio feito em nome do povo e que sela sua alian�a ("uma chama imortal") com o l�der imolado.
Segue-se uma saraivada desconcertante de ant�teses: "Ao �dio respondo com o perd�o. E aos que pensam que me derrotaram respondo com minha vit�ria. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo n�o mais ser� escravo de ningu�m". No �ltimo par�grafo, uma s�rie de frases curtas, sincopadas, prepara o crescendo de suspense que se desata no majestoso traslado da senten�a final: "Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na hist�ria".
Parece haver algum consenso entre os historiadores quanto � sequ�ncia de eventos. Get�lio faz anota��es para uma carta que deixaria caso as circunst�ncias o for�assem ao suic�dio. Lira Neto conta que Alzira, sua filha e secret�ria, diz ter visto essas anota��es uma semana antes entre os pap�is do presidente que, interpelado por ela, desconversou, atribuindo-as a um momento de "desabafo". Essa vers�o j� dizia que "velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor".
Em algum momento daqueles dias, Get�lio discute o assunto com o jornalista Jos� Soares Maciel Filho, amigo e redator de seus principais discursos, a quem pede que redija uma segunda vers�o, como haviam feito em outras ocasi�es. Maciel, que na juventude fora aluno do fil�sofo Benedetto Croce na It�lia e depois criara um jornal no Rio para sustentar a Revolu��o de 30, era um ide�logo nacionalista que ocupou cargos altos na burocracia getuliana. Para tranquilizar o assessor, � plaus�vel que o presidente tenha alegado reservar o texto para uma situa��o extrema que provavelmente nunca ocorreria.
CEN�RIO
Claro que todo esse cen�rio � apenas a condensa��o teatral de um drama muito maior. O raio de manobra do governo vinha se estreitando, conforme era tracionado por uma din�mica de polariza��o entre for�as econ�micas e interesses sociais contradit�rios, que Get�lio (como Jango 20 anos mais tarde) tentou conciliar enquanto conseguiu.
Como sempre, o cobertor era curto. O pa�s precisava de recursos externos para investimentos em infraestrutura, mas a prodigalidade que os americanos haviam mostrado na Segunda Guerra e no come�o da Guerra Fria, quando era priorit�rio manter boas rela��es com o Brasil, cedera lugar, a partir de 1952, a uma atitude mais dura e � exig�ncia de que os empr�stimos tramitassem menos via governos e mais via institui��es privadas, o que reclamava um "ambiente de neg�cios", como se diria hoje, mais amig�vel.
O foco das tens�es era o regime de c�mbio, que sofreu idas e vindas no per�odo, conforme o governo cedia �s press�es estrangeiras, aos exportadores de caf� ou aos importadores nacionais. Programas de estabiliza��o financeira (encetados pelos sucessivos ministros da Fazenda, Hor�cio Lafer e Oswaldo Aranha) eram solapados pela necessidade pol�tica do governo de ceder �s demandas crescentes. A economia crescia a uma taxa m�dia anual pr�xima a 6%, mas a infla��o, que estivera em 8% no quadri�nio anterior, chegou a cerca de 20% anuais no mandato de Get�lio.
Pelo flanco sindical, o governo era acossado por greves e pela radicaliza��o do semiclandestino Partido Comunista, que, em mais uma reviravolta determinada por Moscou, rompera com Get�lio e adotava uma pol�tica de agita��o oper�ria. Em maio de 1954, o presidente concedeu o controvertido reajuste de 100% no sal�rio m�nimo, elevando-o a valor real pr�ximo ao de hoje, quando a renda per capita � quase cinco vezes maior que a da �poca.
O governo, entretanto, mantinha controle sobre o Parlamento, onde a C�mara dos Deputados votou, em junho de 1954, um pedido de impeachment do presidente, derrotado pelo placar de 136 votos contr�rios e apenas 35 a favor.
A oficialidade militar, impregnada pelas divis�es que cindiam a opini�o p�blica e alvoro�ada pela perda de poder aquisitivo dos soldos, ainda abrigava um setor "progressista", simp�tico ao nacionalismo do presidente ou ao menos apegado ao regime constitucional de 1946. O assassinato do major Vaz gerou uma catarse corporativa que fez a balan�a de for�as pender pelo afastamento, via ren�ncia ou deposi��o.
Get�lio fora um oportunista por excel�ncia, adotando os disfarces ideol�gicos que mais lhe convinham a cada conjuntura, mas seria um equ�voco ignorar a linha de continuidade a estruturar essa trajet�ria cujas apar�ncias parecem t�o mut�veis.
Sua avers�o � democracia parlamentar, sua concep��o do Estado centralizado como indutor do desenvolvimento e do equil�brio entre classes e regi�es, at� mesmo sua prud�ncia em mat�ria fiscal e a inclina��o por um regime plebiscit�rio que mantivesse o l�der por tempo indefinido no poder -tais aspectos integram uma doutrina � qual permaneceu constante, emanada do pensamento positivista do franc�s Auguste Comte (1798-1857).
No final do s�culo 19, essa doutrina, adaptada por disc�pulos brasileiros, desempenhou forte influ�ncia na mentalidade republicana, especialmente a ga�cha. Naquele Estado, fac��es positivistas e liberais chegaram a se enfrentar em duas guerras civis (1893-5 e 1923). Influ�ncia parecida aconteceu na mesma �poca em outros pa�ses latino-americanos, e diga-se de passagem que o recente "bolivarianismo" tem suas ra�zes nesse mesmo substrato.
Em linguagem marxista, as teorias de Comte refletiam na Fran�a uma parcela do pensamento burgu�s engajada na universaliza��o de direitos que a Revolu��o de 1789 apregoou, mas intimidada pela amea�a � propriedade representada pelas insurrei��es oper�rias de 1848 e 1870. Era preciso patrocinar mudan�as dentro de um curso dirigido, "racional" (a doutrina exercia peculiar fascina��o sobre engenheiros e militares). Tais ideias vinham a calhar quando transplantadas ao contexto de uma elite hostil ao bacharelismo, dissidente e autorit�ria, reformista e conservadora, como aquela que produziu o estadista Get�lio Dornelles Vargas.
ENFOQUE
Panorama t�o amplo escapa, como n�o poderia deixar de ser, aos prop�sitos do bi�grafo; seu enfoque sempre minucioso est� concentrado no c�rculo �ntimo do presidente. Neste terceiro volume, o narrador utilizou os rascunhos que Alzira Vargas preparou para seu segundo livro de mem�rias, nunca publicado, assim como as numerosas cartas que trocou com o pai, entre 1945 e 1950, quando ele cumpria seu ostracismo como estancieiro na fazenda de S�o Borja e ela atuava, no Rio de Janeiro, como sua articuladora.
Al�m de filha devotada e secret�ria diligente que lhe providenciava roupas, rem�dios e charutos, Alzira parecia possu�da, como o pai e ao contr�rio de certos parentes, pela paix�o da pol�tica enquanto responsabilidade p�blica. Era tamb�m uma mulher corajosa, arguta e dotada de tino maquiav�lico, o que torna a leitura da correspond�ncia muito instrutiva.
Suas met�foras, extra�das do l�xico feminino, s�o quase sempre tiradas divertidas nas quais ela informa o pai sobre o que se passa na corte do presidente Dutra -a famosa "copa e cozinha"- para ent�o abrir o leque das op��es a seu ver dispon�veis e declarar-se � espera de ordens. Lira Neto revela que Samuel Wainer foi enviado para a famosa entrevista com Get�lio ("voltarei como l�der de massas") ao que tudo indica numa manobra engendrada pela filha no Rio.
Anos mais tarde, na �ltima reuni�o ministerial que Get�lio presidiu, �s primeiras horas do 24 de agosto, seriam dela e de Tancredo Neves as vozes categ�ricas a favor de retomar pela for�a o mandato prestes a ser usurpado, prendendo imediatamente os generais insubordinados.
PROTAGONISTAS
Se h� muito de cinematogr�fico no andamento dos livros de Lira Neto, n�o resta d�vida sobre quem s�o os protagonistas dessa hist�ria, que vai sendo ocupada do meio para o fim pela preciosa rela��o entre um pai declinante e sua filha dileta -at� que o delicado fio que prende esse Lear a sua Cord�lia se rompa na torrente final da trag�dia.
No entanto, parece que foi faltando tempo ao autor (o trabalho inteiro consumiu cinco anos), de modo que o terceiro e o segundo volume, embora admir�veis, talvez n�o alcancem o n�vel primoroso do primeiro nem tenham sua originalidade, favorecida por tratar da fase inicial, menos divulgada, da vida do personagem.
Ele foi assunto de diversas abordagens biogr�ficas, em geral oficiosas (a pr�pria Alzira escreveu a sua, "Get�lio Vargas, Meu Pai", publicada em 1960). Em 1974, o criterioso historiador John W. Foster Dulles, bi�grafo de Lacerda e filho do secret�rio de Estado norte-americano entre 1953 e 1959, publicou "Get�lio Vargas: Biografia Pol�tica". Mais recentemente, o historiador Boris Fausto lan�ou seu excelente e conciso "Get�lio Vargas - O Poder e o Sorriso" (2006).
Apesar desses antecessores ilustres, � prov�vel -devido �s ambi��es narrativas, ao rigor documental da imensa pesquisa e ao desengajamento do ponto de vista- que a biografia de Lira Neto assuma a posi��o de obra definitiva sobre o personagem por longo tempo, moldando a vis�o das pr�ximas gera��es de estudiosos, leitores e espectadores.
PRESENTE
Quanto ao leitor atual, n�o ser� ele tentado a ver analogias inquietantes entre aquele passado nem t�o remoto e o presente? O PT em vez do PTB, Lula em vez de Get�lio (Dilma em vez de Dutra?), o PSDB no lugar da UDN, o PMDB no do PSD -a demagogia, a corrup��o, a direita golpista-; ser� que estamos presos ao mesmo c�rculo que se repete? Mas basta ressaltar as diferen�as mais importantes para concluir que essa identidade � aparente.
Em 1954, o capitalismo estava enraizado no pa�s de modo ainda mais prec�rio do que hoje, quando uma propor��o maior da sociedade e do territ�rio foi incorporada a sua din�mica e absorveu parte de seus benef�cios. Em �ltima an�lise, o sentido hist�rico da ditadura militar (1964-85) foi exatamente for�ar pela viol�ncia uma tr�gua nas lutas sociais, que permitisse a acumula��o destinada a completar a tarefa iniciada desde os anos 1930, a moderniza��o capitalista.
Lamentamos as metr�poles atulhadas e a depreda��o da natureza, mas foi esse processo vertiginoso que trouxe a mortalidade infantil de 128 �bitos por mil nascimentos (1955), por exemplo, aos atuais 14, e a expectativa de vida dos 45 anos (1950) aos atuais 75, ambos �ndices objetivos de melhora nas condi��es coletivas de vida.
Por motivos que extrapolam esta resenha, mas que decorrem em parte do amadurecimento institucional ap�s tantas aventuras frustradas, o Ex�rcito deixou de ser o fio desencapado da pol�tica, que potencializava os impasses at� conduzi-los a solu��es de for�a. A estrutura constitucional passou a funcionar porque a trama de interesses na economia e na sociedade se tornou mais forte e complexa. Por falta de respaldo suficiente, direita e esquerda exaltadas tiveram de abandonar h� 40 anos qualquer tentativa s�ria de golpismo.
As rela��es com os Estados Unidos tamb�m evolu�ram, conforme nossa depend�ncia daquela economia se tornou menor, de maneira que uma posi��o nacionalista se traduziria, hoje, mais em termos de competi��o por mercados e tecnologias do que nos moldes tradicionais de uma resist�ncia anti-imperialista.
O manique�smo ideol�gico dos anos 1950 se dissolveu numa esp�cie de centrismo tecnocr�tico, administrativista, no qual as alternativas, por mais encarni�ada que continue sendo a luta de suas falanges pelo poder, n�o passam de vers�es um pouco mais � esquerda ou � direita -precisamente como PT e PSDB na atualidade, separados por diverg�ncias mais de grau e estilo do que de ess�ncia.
OTAVIO FRIAS FILHO, 57, diretor de Reda��o da Folha, � autor de "Sele��o Natural - Ensaios de Cultura e Pol�tica" (Publifolha) e da colet�nea teatral "Cinco Pe�as e Uma Farsa" (Cosac Naify).
ZED NESTI, 44, artista pl�stico, participa da 2� Mostra do Programa de Exposi��es 2014, no Centro Cultural S�o Paulo at� 26/10.
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