Tiro no p�
Por que rever a Lei da Anistia � um erro
RESUMO Julgamento de crimes cometidos pelo Estado ocupa centro do debate nos 50 anos do golpe no Brasil. Para deputado e ex-guerrilheiro, � improv�vel e incongruente levar � pris�o "militares de pijama" por fatos daquela �poca quando foco deveria ser fazer cessar a tortura, vigente desde antes do regime militar e ainda existente.
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Foi francamente ir�nico o resultado da recente pesquisa do Datafolha sobre a Lei da Anistia. H� uma maioria favor�vel a rev�-la para poder julgar os torturadores e uma maioria, maior ainda, para rejulgar a n�s, ex-guerrilheiros pelas a��es que cometemos.
Por um instante me vi, com meus 63 anos, no tribunal, respondendo pelos dois sequestros de embaixadores dos quais participei, aos 19, e que propiciaram a liberta��o de 110 presos pol�ticos, alguns eventualmente destinados � Casa da Morte. Na �poca fui condenado duas vezes � pris�o perp�tua (com mais 30 anos de lambuja para a encarna��o subsequente) pelas auditorias militares.
Costumo dizer que, daquilo tudo, n�o me orgulho nem me envergonho. Mas j� tive pesadelos horrendos: a organiza��o me ordena a executar o embaixador su��o, Giovanni Enrico Bucher -um sujeito boa-pra�a que n�o gostava da ditadura- porque tinham se recusado a libertar todos nossos presos. Tenho uma pistola na m�o, mas n�o quero me tornar um assassino. Acordo coberto de suor frio.
Gra�as a Deus, aquilo terminou bem, e nossos 70 companheiros foram mandados a Santiago do Chile porque consegui convencer nosso comandante, Carlos Lamarca, a aceitar a recusa de alguns dos presos "estrat�gicos" e negociar a sua substitui��o por outros que a ditadura M�dici aceitava soltar. Hoje vejo num sequestro desse tipo, de um diplomata inocente, amea�ado de execu��o, mesmo sob uma ditadura, um ato no limite do terrorismo, no que pese o nosso desespero de ent�o. Em alguns casos, esse limite foi ultrapassado. Penso no marinheiro ingl�s metralhado na pra�a Mau�, na bomba de Guararapes ou na execu��o daquele militante que queria deixar uma organiza��o.
BALAN�A
� poss�vel equiparar esse punhado de atos criminosos � tortura generalizada, institucionalizada, sancionada desde o n�vel presidencial que se abateu n�o apenas sobre n�s, resistentes armados, como sobre opositores sem viol�ncia, como no caso do PCB, e milhares de "simpatizantes" e outros, presos por equ�voco?
Claro que n�o; mas essa anistia "rec�proca" foi resultado de uma correla��o de for�as dos idos de 1979, um acordo pol�tico que permitiu a liberta��o dos presos e nossa volta do ex�lio.
O primeiro problema de rever essa lei para poder julg�-los, 40 e tantos anos depois dos fatos, � a repercuss�o sobre outros complicados processos de redemocratiza��o pelo mundo afora. Frequentemente, para remover um regime de for�a, � preciso pactuar com os que ainda ocupam o poder e ainda t�m enorme capacidade de fazer dano.
As torturas e execu��es na �frica do Sul e na Espanha n�o foram menores do que no Brasil -� o m�nimo que se pode dizer- mas l� a op��o foi n�o colocar os antigos repressores nos bancos de r�us.
Na �frica do Sul, a l�gica da Comiss�o da Verdade foi reconstituir os fatos e obter dos respons�veis pelo odioso apartheid a confiss�o, n�o com vistas � condena��o penal, mas � expia��o moral e a supera��o conjunta de tudo aquilo. Tamb�m foram colocados na mesa para uma catarse de supera��o coletiva certos epis�dios sangrentos dentro da maioria negra.
Confesso que senti satisfa��o ao ver o general Jorge Rafael Videla terminar a vida numa pris�o argentina. Penso, no entanto, que a raz�o decisiva para julgar (uma parte) dos comandantes daquele regime assassino foi o prosseguimento das conspira��es militares j� no per�odo democr�tico, com quarteladas durante os governos de Raul Alfons�n e Carlos Menem.
No Chile, alguns poucos foram julgados, mas o general Augusto Pinochet Ugarte continuou comandando o Ex�rcito por um bom tempo na transi��o e s� sofreu embara�o jur�dico no Reino Unido, jamais no Chile.
N�o h� uma formula �nica, "correta". No que pese o sentimento de busca de justi�a das v�timas e seus familiares -que respeito profundamente, � diferen�a daqueles que querem apenas surfar politicamente na causa- trata-se de uma decis�o jur�dica, por um lado, e de uma quest�o pol�tica, por outro. Juridicamente, o STF j� se pronunciou a esse respeito. Politicamente, vejo a revis�o como contraproducente e concordo plenamente com a presidente Dilma Rousseff quando se manifesta contr�ria � anula��o da anistia.
NARRATIVAS
Desde os anos 80, vem prevalecendo, grosso modo, a narrativa da esquerda sobre os "anos de chumbo". Os verdugos dos por�es do DOI-Codi viveram vidas existencialmente miser�veis. Uma parte, desproporcional, j� morreu de morte morrida; outros tornaram-se criminosos comuns, bicheiros, contrabandistas.
No estamento militar h� um sentimento geral de condena��o �quela m�quina de torturas e execu��es -que acabaram inclusive atentando fortemente contra a hierarquia militar e sujando a imagem das For�as Armadas-, embora sem nenhuma propens�o a aceitar a narrativa da esquerda. N�o iremos convencer os militares a adotar, agora, um manique�smo reverso ao deles, na �poca.
Por todo ordenamento jur�dico brasileiro, hoje seria totalmente imposs�vel -a n�o ser que se viesse a adotar toda uma nova legisla��o de exce��o- condenar esses militares de pijama, na maioria septuagen�rios ou octogen�rios, a servir penas na pris�o.
Num pa�s onde assassinos abjetos como os que torturaram e mataram o jornalista Tim Lopes saem da pris�o por "progress�o de pena" em quatro ou cinco anos, fazer um ex-general ou coronel do DOI-Codi ir para a cadeia por crimes cometidos h� mais de 40 anos � improv�vel e incongruente.
Qual o risco pol�tico de coloca-los agora no banco do r�us?
Tendo prevalecido a nossa narrativa, desde os anos 1980, seria da l�gica jornal�stica agora ouvir a deles, desde o palco e holofotes que agora lhes est�o sendo propiciados. Alguns se arrependem. Qual a sinceridade disso? H� os que assumem friamente seus crimes, e a� temos a novidade, o gancho para difundir sua contranarrativa: "Isso mesmo, torturei, cortei dedos, matei, joguei no rio, no mar e da�? Guerra � guerra".
Se h� uma maioria de brasileiros que fica compreensivelmente horrorizada, h� uma minoria que se identifica e se sente reconfortada em ver, afinal, sua "verdade" difundida agora com todas as letras. "Levanta-se a bola" para figuras como Ustra ou Malh�es, propicia-se farta cobertura de m�dia para que eles se comuniquem com uma extrema-direita desorganizada, difusa, mas real. Ganham espa�o para bulir com aquele sentimento que leva o p�blico do primeiro "Tropa de Elite" -quando Jos� Padilha ainda n�o pagara tributo ao politicamente correto- a aplaudir as torturas infligidas ao traficante com um saco pl�stico.
A prioridade no Brasil, em rela��o � tortura, n�o � tentar, inutilmente, mediante a revis�o da anistia, colocar na cadeia um ou outro torturador do DOI-Codi dos anos 1970, mas fazer cessar aquela tortura que continua ocorrendo hoje, agora, a todo momento, em dezenas de delegacias de roubos e furtos ou destacamentos de policiamento ostensivo, contra marginais pobres e negros.
Aquela velha tortura de sempre, de antes e de depois do Estado Novo e do regime militar, quando ela foi, excepcionalmente, infligida tamb�m � classe m�dia intelectualizada e politizada.
Nesse sentido, apesar de todos os bons e altivos argumentos e da justificada indigna��o de quem sofreu e gostaria de ver punidos aqueles criminosos, a revis�o da "anistia rec�proca" de 1979 � um erro pol�tico cujo maior problema �, na pr�tica, dar uma segunda chance e propiciar um p�blico renovado para uma narrativa que j� enterramos nos anos 1980. �, no fundo, um tiro no p�.
ALFREDO SIRKIS, 63, � autor de "Os Carbon�rios" (Record) e deputado federal pelo PSB-RJ.
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