• Por Daniel Bolson
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Um tablado com ares de deck foi criado nessa sala, projeto de Daniel Bolson, para criar uma sensação de área externa, com um espaço para rede e plantas junto à janela (Foto: Cristiano Bauce )

Um tablado com ares de deck foi criado nessa sala, projeto de Daniel Bolson, para criar uma sensação de área externa, com um espaço para rede e plantas junto à janela (Foto: Cristiano Bauce)

Nunca estivemos em uma relação tão próxima com nossa casa quanto agora. Me parece que ela foi colocada a prova em suas mais variadas características. Estou escrevendo essa coluna há 6 meses e, ao longo desse tempo, falei sobre algumas questões da interferência do lar com o nosso cotidiano. Dessa vez, diretamente de dentro da minha casa, nessa experiência peculiar em que precisamos estar enclausurados. Uma situação que atinge a todos, não escolhe classe social e que, se não for encarada de maneira coletiva, não se verá luz. O planeta vem, de forma cada vez mais frequente, dando respostas à tanta falta de cuidado e desigualdades. Ouvi Gilberto Gil falando esses dias de uma sensação de algo como “um vento que entrou pela janela de todo mundo, uma poeira que levantou e não baixa”.

Entendo que a casa reflete muito o estado de espírito de quem lá habita – pelo menos comigo é assim. Se a minha casa está um caos, com bagunça e coisas por fazer, nada mais é do que um reflexo de um momento do meu cotidiano em confusão. Arrumar os espaços parece por vezes trazer uma sensação de calma, como que se as ideias fossem se clareando, indo para o lugar certo junto da organização. Outro final de semana eu, que sou o louco da mudança de layout, decidi, no meio do tédio que me consumia após uma semana sozinho no meu pequeno apartamento de 36 m², mudar toda a configuração da minha sala, empilhando metade dos móveis em um canto para poder estender uma canga e pegar uma horinha de sol através da janela. Me vi agradecido por viver em um lugar onde bate uma luz natural gostosa à tarde, pela minha janela que ventila bem a sala.

A importância de visuais para elementos da natureza, assim as plantas ajudam na sensação de aconchego dentro de casa. Projeto de Daniel Bolson. (Foto: Cristiano Bauce)

A importância de visuais para elementos da natureza, assim as plantas ajudam na sensação de aconchego dentro de casa. Projeto de Daniel Bolson. (Foto: Cristiano Bauce)

As reais necessidades em uma casa aparecem como não se vivenciou antes: do simples fato de podermos ter alguma janela com um horizonte a enxergar o movimento da rua. Ver natureza, a copa de uma árvore, a transformação das folhas e do florescer. Ter uma rede em casa, uma pequena horta, uma área de serviço para poder higienizar as coisas de quem chega e de quem sai de casa. Volto num ponto que insisto há horas: o da sacada, da gentileza urbana que gera um ambiente aberto em meio a torres verticais que por vezes nos oprimem, ainda mais em tempos de Big Brother com os vizinhos, em que podemos identificar pequenos hábitos cotidianos dos vizinhos, como crianças brincando, o senhor que mora em frente à sua janela mexendo nas plantas ou fazendo churrasco na varanda. Em meio a arquitetura vertical e ao concreto, podemos perceber vida e movimento de semelhantes. Brinco com meu grupo de amigos arquitetos que os clientes nunca entenderam tanto como agora os conceitos dos nossos projetos e suas qualidades, afinal nunca se viveu tanto cada centímetro da casa.

Em um mundo cada vez mais conectado, virtual, por vezes alguns movimentos podem reverberar uma sensação de solidão. Um sentimento de certo vazio no meio de tantos programas, lives, tecnologias, movimentações e iniciativas. Eu sinceramente não estou conseguindo me ligar a nada. Uma amiga falou esses dias sobre a sensação de luto que estamos vivendo. Sim, tomamos uma rasteira de nossas rotinas com esse recolhimento necessário para o momento, e é claro que isso tem um impacto. Levantar e romantizar essa situação também não preenche um vazio da nossa realidade atual.

De repente, me vejo, no segundo estágio de isolamento, voltando ao interior para passar um período, sem data certa para acabar, de volta ao meu quarto de infância, com todas as lembranças, hábitos e rotinas que a casa dos meus pais me traz. Esse tempo que nos foi paralisado parece ter um sentido de reavaliação das nossas evoluções pessoais, memórias e experiências, tanto de forma individual, como coletiva. No meio desses convívios intensos que a reclusão nos colocou, há também a necessidade de compreender nossas individualidades. Respeitar o espaço de cada um é fundamental, seja na sociedade e na vizinhança, ou dividindo um mesmo espaço, um lar.

Buscar um espaço confortável para trabalhar em casa, se possível separado dos demais ambientes, ajuda na organização do trabalho. Nesse projeto de Daniel Bolson, foi criado um anexo no pátio do apartamento térreo, para o atelier de trabalho da moradora (Foto: Cristiano Bauce)

Buscar um espaço confortável para trabalhar em casa, se possível separado dos demais ambientes, ajuda na organização do trabalho. Nesse projeto de Daniel Bolson, foi criado um anexo no pátio do apartamento térreo, para o atelier de trabalho da moradora (Foto: Cristiano Bauce)

O momento presente lida também com nossa necessidade de sempre projetar a felicidade e o bem-estar em algo que ainda não aconteceu: na casa mais ampla, no “quando eu trocar um sofá, reformar a cozinha, arrumar o jardim”. Compreendermos o que temos, pensar sobre o que construímos com o tempo, aceitarmos e trabalhar com isso, reconhecendo nossos privilégios de ter um espaço em que podemos nos resguardar, nosso recanto de paz, descanso, e conforto, seja como ele for. A realidade é que as discussões no nosso país vão muito além de métodos de organização em casa. Falam de necessidades de habitação básicas, em meio a tantas outras carências.

É momento de revisitarmos pequenos prazeres. Acordar e colocar uma música que se gosta, dançar sozinho na sala, do privilégio de poder preparar com calma a própria refeição. Viver dia a dia, trabalhar com as ferramentas que temos. Manter nossa saúde mental. Se permitir fazer nada, descansar, tomar seu tempo. Ser solidário, mesmo que isso signifique apenas saber ouvir o outro. Tempo de valorizar a sensação de liberdade, de poder sair num final de semana ensolarado, caminhar a pé para casa após o trabalho, de encontrar os amigos em uma noite de sábado, de ver um show de um artista que se gosta, num movimento conjunto de multidão e perceber a energia que isso nos traz. Como diz a música de Chico Buarque, "vai passar...."