Teoria da cegueira deliberada

Leia nesta página:

RESUMO

O presente artigo propõe uma abordagem crítica sobre a Teoria da Cegueira Deliberada. Para tanto, faz-se uma análise dos aspectos jurídico-penais de sua aplicação nos crimes de lavagem de capitais, tendo em vista sua crescente utilização em âmbito nacional, especialmente em casos de grande visibilidade e repercussão político-social, como, por exemplo, a “Operação Lava Jato”. Metodologicamente, privilegia-se a revisão bibliográfica, com o intuito de analisar sua precisão técnica, bem como apresentar os critérios mais aceitos para a recepção da referida teoria por parte da doutrina e jurisprudências pátrias. Ademais, busca-se demonstrar a inequívoca proximidade entre o conceito de dolo eventual e de culpa consciente, atentando-se para o fato de não haver, no ordenamento jurídico brasileiro, previsão legal para o crime de lavagem de capitais na modalidade culposa. Finalmente, serão verificadas as repercussões da utilização dessa teoria na atualidade, por meio de um viés dogmático-jurídico.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Teoria da cegueira deliberada. Dolo eventual.

ABSTRACT

The present article intends to present a critical approach concerning the “willful blindness” doctrine. In pursuance of said intent, an analysis will be conducted, in regard to legal-criminal aspects of said doctrine, primarily concerning its operation on money laundering cases, given its increasing implementation countrywide, especially in high-profile cases, in terms of visibility and social/political repercussion, such as the operation known as “Lava-Jato” or “Car Wash”. As far as methodology is concerned, bibliographical review will be favored, so as to provide for an analysis on the technical accuracy of its employment, as well as establishing generally accepted parameters, comprising Brazilian legal writers and courts, in relation to importing said doctrine. Furthermore, this study seeks to demonstrate the undeniable proximity between the concepts of oblique intent and subjective recklessness, highlighting the fact that there is no legal provision whatsoever criminalizing involuntary money laundering in Brazilian Law. Finally, there will be an investigation on the reflexes of adopting that doctrine in the present scenario, always through a legal-dogmatic view.

KEYWORDS: Criminal Law. Theory of deliberate blindness. Eventual intention.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA

CONCEITO E ORIGEM

REQUISITOS PARA A APLICAÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA

OBJETIVO

O objetivo do artigo é verificar quais os impactos que a aplicação dessa teoria pode trazer para o ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que diversos doutrinadores alertaram para o fato de a mesma se equiparar à responsabilidade objetiva, algo que não é permitido no nosso ordenamento jurídico.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para o desenvolvimento da pesquisa foram lidos diversos autores para uma melhor elucidação acerca do tema, primeiramente fora analisado o surgimento da lavagem de capitais, quando esse crime foi trazido para o ordenamento brasileiro e posteriormente fora analisado a origem da teoria da cegueira deliberada e a sua aplicação no Brasil.

No Brasil através da Convenção de Viena de 1988 aprovou-se a criação da Lei 9.613/1988 que se trata sobre a lavagem de capitais e sendo assim criada COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) cuja sua função prevista no artigo 14, caput dessa lei. Entretanto, no ano 2012 teve alteração da Lei 9.613/88 para 12.683/2012, com a mudança ela passou a ser mais eficiente para persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro.

Sendo assim, com a alteração a Lei 9.613/88 trouxe para o ordenamento brasileiro a teoria da cegueira deliberada, sendo uma construção doutrinária de origem Common Law, cuja sua utilização na Inglaterra no ano de 1861 passou a ser convalidado para fins de responsabilidade penal. Passou a ser incorporado a outros ordenamentos jurídicos e sendo utilizado para casos de tráfico de drogas e de lavagem de dinheiro.

A teoria da cegueira deliberada surgiu em um julgamento na Inglaterra em 1861, onde o senhor Sleep colocou alguns barris de parafusos de cobre, pertencentes ao Estado, que tinham uma demarcação em forma de flecha para os diferenciar dos demais, em uma embarcação mercantil. Nesse caso, o juiz de primeira instância o condenou pelo delito de malversação de bens públicos, tendo em vista que Sleep preferiu ignorar a demarcação contida nos barris.

Em 1899 essa teoria foi utilizada pela primeira vez no direito estadunidense no caso Spurr vs. United States, onde o presidente do Commercial National Bank of Nashville visitou-os cheques pertencentes a uma pessoa jurídica sem verificar se a mesma possuía fundos.

Nesse caso, discutia-se a possibilidade de o presidente ter se mantido em ignorância ou não, tendo em vista que deveria ter feito o questionamento acerca da existência de fundos para cobrir o cheque.

Referida teoria deve ser aplicada em casos onde o agente não possui maneiras de se esquivar de conhecer que algo de ilícito está ocorrendo. Usando como escopo a “cegueira deliberada” o agente finge não saber, preferindo se esquivar da responsabilidade de culpa que contra ele possa ser auferida para obter vantagens. Essa teoria também é chamada de teoria da avestruz, visto que tal animal esconde a cabeça em um buraco para não ver o que acontece a sua volta.

No Brasil, a teoria da cegueira deliberada foi utilizada em 2005 no caso do assalto ao Banco Central em Fortaleza – Ceará, em primeira instância o juiz entendeu que os gerentes da concessionária preferiram se cegar diante de fortes indícios de que o dinheiro utilizado na compra de onze veículos era de origem ilícita, a transação foi feita em dinheiro em espécie, mais especificamente em notas de R$ 50,00. (SANNINI NETO, 2015 e AROUCK, 2017)

O juiz entendeu ainda que ao aceitar o pagamento os gerentes fingiram não ver a realidade na qual estavam inseridos intencionalmente, utilizando essa falsa ignorância em prol dos mesmos ao invés de avisar às autoridades acerca da transação suspeita feita pelos acusados.

Porém, em segunda instância os acusados foram absolvidos pelo Tribunal Regional da 5ª Região, por entenderem que exige a ciência expressa do autor e não apenas dolo eventual e dessa forma, a teoria da cegueira deliberada não poderia ser aplicada por se assemelhar à responsabilidade objetiva, instituto não permitido no ordenamento pátrio.

INTRODUÇÃO: A presente pesquisa científica discute a possibilidade de equiparação da Teoria da Cegueira Deliberada, Willful Blindness Doctrine ou Conscious Avoidance Doctrine, conforme preconizada pelo direito e jurisprudência americana, e o Dolo Eventual, conforme preconizado pelo Código Penal, doutrina e jurisprudência brasileira. Cabe ressaltar que a temática abordada se reputa bastante atual. A aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada ganhou destaque com o julgamento, pelo STF, da Ação Penal 470 (“Mensalão”). Outrossim, a temática vem se renovando com a aplicação da teoria na denominada Operação Lava-Jato, que em determinados julgados expressamente justifica a aplicação da referida teoria pela sua equiparação ao Dolo Eventual. Inicia-se o primeiro capitulo do trabalho analisando a teoria do dolo, conforme preconizado pela doutrina brasileira. Com isso, serão constatados os elementos que compõe o dolo, bem como a diferenciação entre o dolo direito e dolo eventual, de suma importância para o presente trabalho. Ademais, será analisada a atual aplicação do dolo eventual na jurisprudência brasileira.

Primeiramente, será traçado um panorama geral dos conceitos de fato típico, com enfoque nos elementos subjetivos, de dolo (direto e eventual), culpa (inconsciente e consciente) e, também, o conceito analítico de delito admitido no Brasil, que é definido nos termos da Teoria Finalista da Ação, passando-se, após, à análise do crime de lavagem de capitais.

Em seguida, será explicado o conceito de crime de lavagem de capitais a partir de revisão bibliográfica sobre o tema; e será analisada a evolução da lei antilavagem de capitais no Brasil - Lei 9.613 de 1998, alterada pela Lei 12.683 de 2012.

A teoria da cegueira deliberada (conscious avoidance, willful blindness ou deliberate ignorance) tem origem inglesa e aponta não ser necessário que se demonstre o dolo direto nas situações das quais se extrai que o agente poderia ter tomado plena consciência da ilicitude de seu ato, mas deliberadamente evita qualquer diligência, mantendo-se, portanto, “cego”. No caso, considera-se desnecessário demonstrar consciência e vontade diretas justamente em razão da adoção de medidas afirmativas que evitam a tomada de consciência de que se pratica um ato ilegal. O agente não tem conhecimento pleno da ilicitude de sua conduta somente porque delibera por evitá-lo. Noutras palavras, as circunstâncias indicam a ilegalidade, o agente as percebe, mas escolhe não adotar nenhuma medida para tomar conhecimento do ato ilícito. Esta teoria é aplicada sobretudo em crimes financeiros como a lavagem de dinheiro. É o caso do agente que, ao vender um imóvel de alto valor, por exemplo, recebe tudo em dinheiro – sem utilizar o sistema bancário – desconfia que o numerário possa ter origem ilícita, mas ainda assim conclui a transação, colocando-se deliberadamente em posição de “cegueira” a respeito das indicações de ilegalidade. Não há, no entanto, restrição à aplicação da teoria em outras circunstâncias, sobre delitos que sejam compatíveis com esta disposição de evitar a consciência de que se pratica um ato ilegal. O TRF da 4ª Região, por exemplo, aplicou-a para sustentar a condenação pelo cometimento do crime do art. 33 da Lei nº 11.343/06: “Age dolosamente não só o agente que quer o resultado delitivo, mas também quem assume o risco de produzi-lo (art. 18, I, do Código Penal). Doutrina da "cegueira deliberada" equiparável ao dolo eventual e aplicável a crimes de transporte de substâncias ou de produtos ilícitos e de lavagem de dinheiro” (AC 5004030-81.2014.404.7007, j. 27/07/2016). O mesmo tribunal aplicou a teoria ao crime de descaminho: PENAL. DESCAMINHO. ARTIGO 334, §1º, "D", DO CÓDIGO PENAL. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. MOTORISTA DO CAMINHÃO. DOLO EVENTUAL. CEGUEIRA DELIBERADA. (...)

1. Nos crimes de contrabando e/ou descaminho, a materialidade e a autoria são comprovadas, em regra, com os documentos elaborados e lavrados pela autoridade fiscal competente e responsável pela diligência por ocasião da apreensão das mercadorias.

2. Comprovados a autoria, a materialidade e o dolo, e sendo o fato típico, antijurídico e culpável, considerando a inexistência de causas excludentes de ilicitude e de culpabilidade, resta evidenciada a prática do delito do art. 334, §1º, alínea 'd', do Código Penal combinado com o art. 29 do Código Penal.

3. Age dolosamente não só o agente que quer o resultado delitivo, mas também aquele que assume o risco de produzi-lo (art. 18, I, do Código Penal). Ao indivíduo que, como motorista de caminhão, tem como modo de vida o transporte de mercadorias, não é dado excluir a sua responsabilidade criminal escolhendo permanecer ignorante Boletim Criminal Comentado – Julho-2019 (semana nº 01)

Quanto ao objeto ou objetos da carga, quando teria condições de aprofundar o seu conhecimento. (...)

O TRF da 5ª Região, por sua vez, fez incidir a teoria no crime de receptação: “Ao ignorar a origem de um produto, o sujeito ativo da receptação qualificada põe-se numa espécie de estado de cegueira deliberada, assumindo, por consequência, a luz da previsão legal, o risco de incorrer na prática da conduta censurada pelo referido dispositivo. E tal cautela deve ser exigida, especialmente, das pessoas que atuam no exercício da atividade comercial de compra e venda de sucata, mormente quando se tratar de trilhos, em razão do conhecido comércio ilegal desse material retirado ilicitamente das ferrovias federais.

Tais comerciantes não devem ser míopes na certificação da licitude dos referidos bens porque, caso contrário, assumem o risco de estar praticando o crime previsto no art. 180, parágrafo 1º, do CP, ao adquirir ferro produto de crime desobedecendo o comando normativo consubstanciado no dever de buscar informação” (AC 11636, j. 21/07/2015).

Não bastasse, o Tribunal de Justiça de São Paulo invocou a teoria para fundamentar a imposição das penas relativas à improbidade administrativa, que, sabe-se, pressupõem o elemento subjetivo: “AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Prejuízo ao erário devidamente confirmado pelas provas produzidas - Contratação de serviços de plantões médicos junto ao Pronto Socorro de Avaré por intermédio de Termo de Parceria, em valor muito superior ao contrato anterior, e sem a realização de licitação - Superfaturamento constatado - Aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada - Ato de improbidade administrativa devidamente comprovado, ante a constatada cavilosidade dos corréus - Procedência da ação mantida - Diferimento do recolhimento das custas deferido - Apelação do réu Joselyr não provida e provida em parte a da ré IBDPH” (AP 0009252-56.2010.8.26.0073, j. 09/04/2014). Em suma, é possível aplicar a teoria da cegueira deliberada quando a realização do tipo penal não contempla a consciência direta do tipo subjetivo, mas esta circunstância é decorrente da decisão do próprio agente, que evita tomar conhecimento de uma ilegalidade aparente. O agente ignora determinados elementos penalmente relevantes, mas por opção sua, em uma situação na qual lhe seria plenamente possível, caso quisesse, se inteirar do que ocorria

2. Conceito de crime

Como se sabe, o conceito analítico de crime, adotado majoritariamente no Brasil, consubstancia-se na noção de que somente será considerada criminosa a conduta típica, ilícita e culpável - “Teoria Tripartite”. Presentes tais substratos, surge para o Estado o jus puniendi, que é o direito de punir (punibilidade). Ausentes, não há que se falar em crime. Discorrer sobre todos os aspectos desse complexo edifício que subjaz a teoria do delito, fugiria aos limites deste estudo. Assim, passa-se a abordar os pontos mais nevrálgicos do conceito analítico de crime em relação à Teoria da Cegueira Deliberada.

2.1. Teorias do dolo

Estabelecida a definição de tipicidade, em especial, a imprescindibilidade da presença dos elementos subjetivos para a sua caracterização, bem como definido o atual con-Artigo Teoria da cegueira deliberada: reflexões sobre sua aplicação nos crimes de lavagem de capitais 238 De Jure | ISSN 1809-8487 | v. 17 | n. 30 | jan.-jun. 2018 | p. 233-259 conceito analítico de crime - fato típico, ilícito e culpável -, faz-se necessária a caracterização do dolo. Somente a partir do conhecimento sobre as teorias do dolo é que será possível compreender a Teoria da Cegueira Deliberada, procurando definir claramente suas limitações e sua correta - ou impossibilidade de - aplicação. A redação do artigo 18, I, do Código Penal Brasileiro, adota, expressamente, a teoria da vontade, em relação ao dolo direto, e a do assentimento, para os casos de dolo eventual. De acordo com Bitencourt (2014, p. 380), para a teoria clássica, também chamada de teoria da vontade, dolo é tido como vontade consciente de querer praticar a infração penal.

Já para a teoria do consentimento (ou assentimento) o dolo surge sempre que o sujeito ativo possuir a previsão do resultado possível e decidir prosseguir com a conduta, assumindo o risco de atingir o resultado previsto.

2.2. Conceito de culpa

Embora o Código Penal não tenha a previsão nesse sentido, existem duas espécies de culpa amplamente discutidas pela melhor doutrina.

A primeira é a culpa inconsciente (sem representação), que é a ação sem previsão do resultado previsível, a também chamada de “culpa ex ignorantia”. Ou seja, aqui o sujeito ativo atua sem representar o perigo existente em sua conduta. Embora exista a possibilidade de previsão do resultado, o agente deixa de prevê-lo por desatenção ou mesmo desleixo.

A segunda é a culpa consciente (com representação), também chamada de culpa com previsão. Aqui o sujeito ativo sabe do perigo presente em sua conduta, ou seja, existe a previsibilidade, contudo este age com inobservância de seu dever de cuidado, acreditando fielmente que o resultado não se concretizará. Lucas Nacur Almeida Ricardo De Jure | ISSN 1809-8487 | v. 17 | n. 30 | jan.-jun. 2018 | p. 233-259 239 Segundo Bittencourt, “a previsibilidade é o elemento identificador das duas espécies de culpa. A imprevisibilidade desloca o resultado para o caso fortuito ou força maior, retirando-o da seara do Direito Penal”. (2014, p. 382). 2.5. Dolo eventual x culpa consciente: teoria da vontade Como se verá no decorrer deste trabalho, o limiar entre a culpa consciente e o dolo eventual é deveras tênue.

Ambos possuem como pressuposto a ocorrência da previsibilidade combinada com a representação (ou previsão) do resultado, de forma que a grande diferença reside justamente na aceitação ou não da possibilidade de produção do resultado. Segundo Zaffaroni e Pierangeli, o dolo eventual […] é a conduta daquele que diz a si mesmo ‘que aguente’, ‘que se incomode’, ‘se acontecer, azar’, ‘não me importo’. [...] aqui não há uma aceitação do resultado como tal, e sim sua aceitação como possibilidade, como probabilidade. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2001, p. 498).

Em outras palavras, o agente, embora preveja o resultado, aceita o risco da sua produção. Já na culpa consciente, o agente prevê, mas acredita sinceramente na sua não ocorrência, de modo que não assume o risco, sendo certo que caso acreditasse na produção do resultado, teria deixado de praticar a conduta. De acordo com Bitencourt (2014, p. 385), existem duas teorias que procuram distinguir as figuras mencionadas alhures, a Teoria da Probabilidade e a Teoria da Vontade.

Para a primeira, basta a representação do resultado como provável, de Artigo Teoria da cegueira deliberada: reflexões sobre sua aplicação nos crimes de lavagem de capitais 240 De Jure | ISSN 1809-8487 | v. 17 | n. 30 | jan.-jun. 2018 | p. 233-259 forma a admitir sua ocorrência, para configuração do dolo eventual. Já para a segunda, que é a adotada no ordenamento jurídico brasileiro, além da representação do resultado como provável, é necessário o elemento volitivo, isto é, o querer do agente em assumir os riscos de produção do resultado. Nesse sentido, destaca o autor: [...] a distinção entre dolo eventual e culpa consciente resume-se à aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado. Persistindo a dúvida entre um e outra, dever-se-á concluir pela solução menos grave, qual seja pela culpa consciente, embora, equivocadamente, não seja essa a orientação adotada na praxis forense (BITTENCOURT, 2014, p. 386). Feitos tais esclarecimentos necessários, passa-se agora a analisar o que são os crimes de lavagem de capitais e, em seguida, como a jurisprudência pátria vem aplicando a Teoria da Cegueira Deliberada.

TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA

Esta teoria também conhecida como teoria do avestruz, ignorância deliberada, cegueira intencional ou provocada, willful blindnessOstrich Instructions ou doutrina da evitação da consciência (Conscious Avoidance Doctrine), teve origem na Inglaterra, no julgamento do caso Regina v. Sleep, de 1861.

Essa doutrina foi criada para as situações em que um agente finge não enxergar a ilicitude da procedência de bens, direitos e valores com o intuito de auferir vantagens.

Desde então, foi acolhida nos Estados Unidos e, seguindo a teoria do delito da “common law”, passou por refinamento doutrinário. Contudo, com a evolução da jurisprudência estadunidense, a cegueira deliberada tornou-se aplicada de várias formas, isto é, conforme as conveniências do caso concreto, deixando de apresentar um fundamento sistêmico pronto e acabado.

Segundo essa teoria, o agente, de modo deliberado, se coloca em situação de ignorância, criando obstáculos, de forma consciente e voluntária, para alcançar um maior grau de certeza acerca da potencial ilicitude de sua conduta. Vale dizer, o infrator provoca o seu desconhecimento acerca do ilícito, de modo que sua ignorância deliberada passa a equivaler-se ao dolo eventual ou, até mesmo, à culpa consciente.

Os primeiros casos de sua aplicação foram nos crimes de tráfico de drogas e de contrabando, comumente praticados em território norte-americano em épocas passadas.

Nota-se, no entanto, que a maioria dos códigos penais não contempla expressamente uma definição de dolo, deixando tal tarefa a cargo da doutrina e da jurisprudência, cuja resposta punitiva varia de caso a caso.

Na Espanha, o Tribunal Supremo, no julgamento da Sentencia de 10 de dezembro de 2000, restringiu-se à simples menção da cegueira deliberada, envolvendo o caso de um crime de receptação, no qual o sentenciado havia transportado significativas quantidades de dinheiro em espécie a um paraíso-fiscal. Alegou o acusado, naquela ocasião, que não tinha conhecimento acerca da origem ilícita do dinheiro, isto é, que era proveniente do tráfico de drogas.

Nada obstante, a Corte Constitucional espanhola firmou o entendimento de que o sentenciado sabia da procedência ilícita do dinheiro, bem como das operações financeiras irregulares, motivo pelo qual ele havia provocado, propositadamente, a própria cegueira, ou seja, não quis saber acerca do que poderia e deveria ter conhecido.

O elemento subjetivo não é aferido a partir da consciência ou vontade do agente (teoria da vontade), mas de elementos peculiares do dolo eventual, sobretudo da análise das circunstâncias do evento delituoso, com base na teoria do assentimento ou da anuência

A teoria da cegueira deliberada tem sido objeto de amplas discussões jurídicas no Brasil. Desde a sentença do caso do furto do Banco Central em Fortaleza, a teoria tem sido cada vez mais invocada para embasar acusações e condenações.

Utilizada também no caso mensalão e na operação "lava jato", a teoria da cegueira deliberada — que, grosso modo, busca equiparar a reprovabilidade de uma casuística (a) de conhecimento do acusado acerca do plano fático a outra de (b) falta de conhecimento do acusado do plano fático em razão de sua omissão deliberada para não obter esse conhecimento —, é um constructo de matriz anglo-saxã. Sendo assim, a sua incorporação ao Direito brasileiro, de natureza eminentemente romano-germânica, deve ser feita com algumas ponderações preliminares.

Para a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, é necessário que o agente tenha conhecimento da elevada possibilidade de que os bens, direitos ou valores sejam provenientes de crimes e que o agente tenha agido de modo indiferente a esse conhecimento. Em síntese, pode-se afirmar que a Teoria da Cegueira Deliberada busca punir o agente que se coloca, intencionalmente, em estado de desconhecimento ou ignorância, para não conhecer detalhadamente as circunstâncias fáticas de uma situação suspeita. 

No que tange à aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, NASCIMENTO (2010) sustenta que:

“Para a teoria da cegueira deliberada o dolo aceito é o eventual. Como o agente procura evitar o conhecimento da origem ilícita dos valores que estão envolvidos na transação comercial, estaria ele incorrendo no dolo eventual, onde prevê o resultado lesivo de sua conduta, mas não se importa com este resultado. Não existe a possibilidade de se aplicar a teoria da cegueira deliberada nos delitos ditos culposos, pois a teoria tem como escopo o dolo eventual, onde o agente finge não enxergar a origem ilícita dos bens, direitos e valores com a intenção de levar vantagem. Tanto o é que, para ser supostamente aplicada a referida teoria aos delitos de lavagem de dinheiro “exige-se a prova de que o agente tenha conhecimento da elevada probabilidade de que os valores eram objeto de crime e que isso lhe seja indiferente” 

Alguns casos brasileiros que obtiveram a aplicação da teoria da cegueira deliberada, objetivando analisar os argumentos do juízo que incidiram na aplicação da referida e em quais delitos ela fora aplicada.

O primeiro deles consiste no famoso caso do assalto ao Banco Central, ocorrido no ano de 2005, em Fortaleza (CE). O objeto do presente caso foi o furto de cerca de 167 milhões, e a aplicação da teoria da cegueira deliberada se deu ante dois sujeitos que realizaram a venda de veículos aos integrantes do grupo que praticou o delito.

Ambos foram denunciados (Processo nº 200581000145860, da 11ª Vara do Ceará) pelo delito de lavagem de dinheiro, haja vista a atipicidade das compras de veículos realizadas, diante do alto valor pago pelos veículos (cerca de 980 mil).

Nesse posto, ambos foram denunciados por lavagem de dinheiro pois, muito embora não tivessem conhecimento acerca da origem do dinheiro, proveniente do furto ao Banco Central, era-se dedutível a ilicitude dos valores e a propensão ao caso ser uma tentativa de lavar dinheiro e, nesse ponto, incorreram na aplicação da teoria da cegueira deliberada.

O motivo justificador do magistrado pela aplicação da teoria teve como base a possibilidade de existir dolo eventual no delito de lavagem de dinheiro, alegando ser incontroverso vender 11 veículos para um agente e não cogitar a possibilidade de a origem dos valores ser ilícita, restando para o magistrado a evidência quanto ao desinteresse dos agentes. Em sentido contrário, o TRF5 absolveu os agentes, alegando que a modalidade do delito de lavagem de dinheiro perpetrado somente abarcaria a prática por dolo direto.

Curiosamente, ainda que o caso em comente já possua 14 anos, ainda é amplamente citado em discussões sobre a teoria da cegueira deliberada, podendo-se interpretar como o início do estudo sobre a teoria no cenário brasileiro.

O segundo caso a ser apresentado consiste no escândalo do mensalão (Ação Penal nº 470), o qual ficou caracterizado pela corrupção política a partir da compra/venda de votos no congresso, descoberto no ano de 2005 e 2006.

No caso em comento a cegueira deliberada foi tratada pelo STF, tendo ministros como Rosa Weber e Celso de Mello defendendo a aplicação da teoria por entender que o delito de lavagem de dinheiro compreende o dolo eventual, contrariando entendimento sobre o abarcamento de somente dolo direto na lavagem de capitais.

Já o último caso citado, abordando o tema da cegueira deliberada como um conjunto, haja vista deter quantum incerto, diante da continuação do caso, consiste na Operação Lava Jato. O escopo da referida operação consistiu no desdobramento de diversos esquemas de corrupção envolvendo a administração pública, políticos e empresas privadas.

Iniciada em 2014, a Operação Lava Jato foi o primeiro caso conhecido a ter a teoria da cegueira deliberada aplicada após a alteração substancial da lei de lavagem de dinheiro ocorrida em 2012.

Com isso, além de o delito passar a ser melhor vislumbrado após as alterações, a Operação Lava Jato também trouxe novidades no âmbito dos crimes de powerful e, nesse ponto, imperioso reconhecer que todas as decisões exaradas são diferentes das anteriormente vistas, pela complexidade do caso e pela “novidade” dos temas.

Imperioso destacar o fato pelo qual os magistrados da referida operação, dando destaque ao Dr. Sergio Fernando Moro (não mais exercendo o cargo de magistrado), já dispunham de propensões a aplicar a teoria, posto que em seus próprios escritos (livros e artigos) já detinham disposições favoráveis à transposição da teoria para o Direito Penal brasileiro.

Nos casos onde se teve a aplicação da teoria da cegueira deliberada a aplicação deu-se em face de delitos de lavagem de dinheiro, onde ambos fundamentam as decisões pela existência de dolo eventual nos delitos perpetrados.

Verifica-se, através de uma breve análise aos casos aplicados, que a teoria fora aplicada em processos onde as provas juntadas não foram capazes de elucidar a existência de dolo direto, muito embora fosse possível desconfiar de fatos incomuns realizados nos estabelecimentos.

Concluindo, muito embora tenha relatado três casos conhecidos pela população, com lapsos temporais longos, curiosamente nos três a teoria da cegueira deliberada fora aplicada em delitos de lavagem de dinheiro.

Contudo, em breves buscas realizadas nos portais de jurisprudência do TRF4, STJ e STF, é possível perceber a aplicação da teoria da cegueira deliberada em delitos de tráfico de entorpecentes, delitos previdenciários, de receptação e, inclusive, no ambiente externo ao Direito Penal, no âmbito da improbidade administrativa e do Direito do Trabalho.

Por fim, reconhece-se que inexistem óbices jurisprudenciais acerca da aplicação da teoria da cegueira deliberada no Brasil, podendo ser um dos reflexos do expansionismo do Direito Penal, o que se faz concluir que, de certa forma, a teoria já foi recepcionada no cenário judiciário brasileiro.

REFERENCIA:

https://jus.com.br/artigos/21395/breves-comentarios-sobre-a-teoria-da-cegueira-deliberada-willful-blindness-doctrine

PODGOR, Ellen. Supreme court speaks about willful blindness. Disponível em: Acesso em 28 ago. 2019

ROBBINS, Ira. P. The Ostrich Instruction: Deliberate Ignorance as a Criminal Mens Rea, 81 J. Crim. L. & Criminology 191 (1990-1991), p. 196. Disponível em: . Acesso 19 set. 2019

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17 ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei n. 12.50 de 2011.

São Paulo: Saraiva, 2012 BRASIL. 13ª Vara Federal de Curitiba/PR. Ação Penal 5026212-82.2014.4.04.7000/PR. Juiz Sergio Moro. Disponível em: Acesso 13 set. 2017

Decreto-Lei n. 2.848, de 31 de dezembro de 1941. Disponível em . Acesso em 13 de out. de 2018.

Lei n. 7.209 de 11 de julho de 1984. Disponível em: . Acesso 9 out. 2019.

Lei n. 9.613 de 3 de março de 1996. Disponível em: . Acesso 3 out. 2019.

Lei n. 12.683 de 9 de julho de 2012. Disponível em . Acesso 4 out. 2019.

Supremo Tribunal Federal. Informativo 684. Disponível em: http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo684.htm Acesso em: 13 mar. 2019.

Tribunal Regional Federal da 5ª região. Apelação Criminal 5520-CE 2005.81.00.014586-0. Relator Rogério Moreira. 09 nov. 2008. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2019

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, V. 1.: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2019

Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos