A arte longa de Truffaut
RESUMO Diretor, ator e cr�tico, Fran�ois Truffaut (1932-84) deixou 21 longas, diversos curtas e centenas de artigos publicados em revistas. Neste texto, o diretor da Cinemateca Francesa escreve sobre o cineasta, que ser� objeto de uma exposi��o sob sua curadoria no Museu da Imagem e do Som de S�o Paulo, a partir de 14 de julho.
*
"Eu fa�o filmes para realizar meus sonhos de adolescente, para me fazer bem e, se poss�vel, fazer bem aos outros." Essa frase de Fran�ois Truffaut exprime simples, clara e plenamente seu amor pelo cinema e seu desejo de faz�-lo. Esse homem organizou sua vida para atingir seu objetivo. Morto em 21 de outubro de 1984, aos 52 anos, devido a um tumor cerebral, ele deixou a sensa��o de ter levado a vida a toda velocidade, como que apressado pelo tempo e como se quisesse conseguir fazer tudo enquanto ainda fosse poss�vel.
Vinte e um longas-metragens, um punhado de curtas, centenas de artigos sobre cinema publicadas num grande n�mero de publica��es –principalmente na revista mensal "Cahiers du Cin�ma" e na semanal "Arts"–, pref�cios dedicados a livros de homens que ele admirava ou que o ajudaram (Renoir, Bazin, Welles, Rossellini, Ophuls, N�stor Almendros, Sacha Guitry, Tay Garnett etc.), o famoso livro de entrevistas "Hitchcock/Truffaut", publicado em 1966, traduzido em diversas l�nguas [no Brasil, pela Companhia das Letras], reeditado sem parar desde ent�o.
Sucess�o Pierre Zucca | ||
![]() |
||
Jean-Pierre L�aud (esq.), Claude Jade e Fran�ois Truffaut durante filmagem de "Domic�lio Conjugal" (1970) |
Sem contar o Truffaut ator. Seja em alguns de seus filmes –"O Garoto Selvagem" (1970), "A Noite Americana" (1973) e "O Quarto Verde" (1978)– ou no filme de Spielberg "Contatos Imediatos do Terceiro Grau" (1977). Sem esquecer a publica��o de sua correspond�ncia, que recupera muitas cartas, dos milhares que escreveu durante a vida a todo tipo de gente, pr�xima ou distante. Enfim, miss�o cumprida, vida vivida, resultado, tudo somado, satisfat�rio.
AMARGO
Isso n�o impede que sua morte tenha deixado um gosto amargo, um sentimento de inacabado, de melancolia profunda, n�o somente para os seus, para os mais pr�ximos, suas atrizes e seus atores, e sua fam�lia da Les Films du Carrosse [produtora fundada por ele em 1957]. Quantos cineastas hoje, garotos e garotas, se inspiram em sua obra e em seu gosto pelo romanesco, lamentando n�o t�-lo conhecido, cruzado ou trombado com ele? E isso n�o apenas na Fran�a mas no Jap�o, nos Estados Unidos e no resto do mundo? Truffaut fez "De Repente num Domingo" (1983), seu �ltimo filme, quando ele tinha ainda muitos projetos engatilhados. Muitos roteiros bastante avan�ados, coescritos com Jean Gruault (o projeto "00-14") ou Claude de Givray ("Ladra e Sedutora", que Claude Miller filmou em 1988), sem esquecer um projeto com o qual ele se importava muito, "Nez de Cuir", que ele vislumbrava com G�rard Depardieu –de quem se tornou parceiro– e Fanny Ardant.
Fraco, doente, acreditando-se convalescente ou querendo acreditar estar, Truffaut mantinha a esperan�a de continuar seu trabalho para, de alguma forma, completar o quadro, como diz o delirante e apaixonado Julien Davenne em "O Quarto Verde". Sim, completar o quadro. Mas qual deles? O de um homem inteiramente dedicado a sua �nica paix�o: o cinema. Um tipo de devo��o radical, exclusiva. Sagrada. Desprovida de narcisismo.
Ap�s sua morte, muitos classificaram Fran�ois Truffaut na categoria bem-comportada dos cineastas "acomodados", que traiu seus ideais de juventude, sem enxergar nele a incr�vel for�a da obstina��o e da ideia fixa, que consistia em seguir um sonho adolescente: "Eu quero que meus filmes deem a impress�o de terem sido filmados com 40�C de febre", dizia ele.
Acredita-se, com raz�o, que a obra inteira � coerente, harmoniosa, redonda: ela �. Muitos filmes se encadeiam numa bela l�gica.
A "saga Doinel", s�rie original e �nica que v� crescer um personagem, vivido por Jean-Pierre L�aud, de 14 a 38 anos, em cinco epis�dios de sua educa��o sentimental. Os filmes "paix�o", de "Jules e Jim" (1962) a "A Mulher do Lado" (1981), passando por "Um S� Pecado" (1964), "A Sereia do Mississipi" (1969), "As Duas Inglesas e o Amor" (1971), "A Hist�ria de Ad�le H." (1975), "O �ltimo Metr�" (1980), nos quais Truffaut se esfor�a em exorcizar sua vis�o f�nebre do amor louco: "Nem com voc� nem sem voc�". A fala de Madame Jouve (V�ronique Silver) em "A Mulher do Lado" resume perfeitamente essa equa��o imposs�vel, na qual o casal apaixonado queima suas asas at� a morte: "Como as grandes aves de rapina, ele plana sobre n�s, ele para e nos amea�a"� Sim, o amor d�i".
Os cinco filmes adaptados da "s�rie noire": "Atirem no Pianista" (1960), vis�o po�tica � la [Raymond] Queneau do mundo dos g�ngsteres, "A Noiva Estava de Preto" (1968), com m�sica de Bernard Herrmann, a ser revisto por sua aud�cia narrativa e pela for�a da ideia fixa (uma mulher decide de uma vez por todas matar), "A Sereia do Mississipi", belo filme "doente" no qual Belmondo � fr�gil, por vezes manhoso, enquanto a hero�na, interpretada de forma magn�fica por Catherine Deneuve, conduz a hist�ria mentindo descaradamente.
A beleza dos casais em Truffaut: Aznavour-Marie Dubois ("Atirem no Pianista"), Jeanne Moreau e seus dois amantes, Oskar Werner e Henri Serre ("Jules e Jim"), Desailly-Fran�oise Dorl�ac ("Um S� Pecado"), Belmondo-Deneuve ("A Sereia do Mississipi"), Deneuve-Depardieu ("O �ltimo Metr�"), Fanny Ardant-Depardieu ("A Mulher do Lado") ou Fanny Ardant-Trintignant ("De Repente num Domingo"). Sim, os casais s�o m�gicos, mesmo se sempre t�m algum defeito, um gr�o de areia, como nas can��es de amor que terminam tristemente. Amam-se, largam-se, voltam a se juntar porque o amor � mais forte, mas h� sempre um momento no qual o desequil�brio aparece, no qual a busca pela harmonia fracassa. E a� machuca.
H� tamb�m, � claro, os filmes sobre a inf�ncia: do curta "Os Pivetes" (1957) a "Idade da Inoc�ncia" (1976), passando por "Os Incompreendidos" (1959) e "O Garoto Selvagem" (1970), nos quais Truffaut, numa esp�cie de retorno imagin�rio a sua pr�pria inf�ncia, tenta descobrir os mist�rios dos seres e da linguagem, conciliando ao mesmo tempo seu gosto pela escola das ruas e sua cren�a no aprendizado da linguagem, �nica arma que permite forjar um destino, at� mesmo ter seu lugar na sociedade.
PORTA ABERTA
Nessa obra constru�da de maneira consciente, harmoniosa, aparece uma abertura, um sentimento de incompletude, uma porta aberta para um futuro sem ilus�o. Truffaut morreu muito cedo e muito jovem para que nos contentemos de s� lamentar sua falta.
Acima de tudo, h� um grande mist�rio em seu cinema, alguma coisa que, de um filme para o outro, volta para fazer eco, um ricochete. Como uma mania. Vistos e revistos, seus filmes assumem, segundo o tempo e a �poca, cores mutantes, tonalidades novas; � uma surpresa rev�-los, com um outro olhar, como se o tempo jogasse a favor deles, ou contra eles, e como se eles nos olhassem em uma outra idade de nossa pr�pria vida.
� assim "O Homem que Amava as Mulheres" (1977), com o genial Charles Denner, duplo ideal do cineasta. O que retorna nesse filme � o amor, a conquista amorosa (e sexual) sob a forma de uma obsess�o e de uma mania. Depois das 18 horas, Bertrand Morane [personagem de Denner] n�o suporta mais a companhia dos homens. Ele vai � ca�a, como um "conquistador", com seus olhos de p�ssaro noturno, ar ansioso. Isso o coloca num estado imposs�vel, como se sua vida dependesse disso. Ent�o ele retorna a sua obsess�o pelas mulheres, as "pequenas ma��s" e os "longos caules", na sua inf�ncia e adolesc�ncia, fazendo-a nascer de uma rela��o muito particular com sua m�e, totalmente indiferente a ele. Roteiro hiper "truffautiano", se pensarmos como a pr�pria m�e do jovem Fran�ois Truffaut era indiferente quanto a seu filho �nico. Dessa falta de amor, da falta de interesse de uma m�e por seu filho, nasceu uma voca��o, a de fazer filmes, ou a de amar todas as mulheres.
Ideia fixa, obsess�o por conseguir viver apenas do que se ama: o cinema. Esse esquema ficcional t�o romanesco � caro a Truffaut e retorna sob uma forma m�rbida e eleg�aca em "O Quarto Verde", no qual o pr�prio cineasta, ator, devota um culto a sua mulher e a seus amigos mortos. H� uma liga��o l�gica, ao mesmo tempo evidente e secreta, entre Bertrand Morane, que cultua todas as mulheres (que ele teve), e Julien Davenne, que, fechado numa c�mara mortu�ria, coloca a alian�a no dedo de sua mulher morta. Dois filmes que conversam, acompanhados pela m�sica sublime (post-mortem) de Maurice Jaubert. O cinema ou a arte de celebrar os mortos, ou os vivos (como Denner) que ignoram ainda que ela erra em torno deles.
SERGE TOUBIANA, 65, � cr�tico de cinema, diretor da Cinemateca Francesa desde 2003 e autor de "Truffaut, Uma Biografia", com Antoine de Baecque (Record; esgotado), e "Amos Gitai - Ex�lios e Territ�rios" (Cosac Naify).
�RSULA PASSOS, 27, � redatora da "Ilustr�ssima".
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade