Mensagens indicam que Bolsonaro sabia de leilão de joias, diz Polícia Federal

PF também cita depoimento em que general relata ter feito pagamento fracionado ao ex-presidente por venda de relógios

Brasília

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) sabia da movimentação para a venda de um conjunto de joias presenteado pela Arábia Saudita, segundo a Polícia Federal. De acordo com a investigação, o desvio ou tentativa de desvio de presentes recebidos pelo governo brasileiro teve como alvo bens cujo valor de mercado soma R$ 6,8 milhões.

As informações estão presentes no relatório que embasou o indiciamento do ex-mandatário e mais 11 pessoas no caso.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) na conferência conservadora Cpac - Evaristo Sá - 6.ju.2024/AFP

O sigilo do documento foi retirado nesta segunda-feira (8) pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal).

Ele determinou a liberação do acesso integral aos advogados e abriu vista para análise da PGR (Procuradoria-Geral da República) no prazo de 15 dias, conforme prevê o Código de Processo Penal.

Agora, o órgão terá o prazo de 15 dias para pedir mais provas, arquivar o caso ou apresentar denúncia.

Em manifestação nesta segunda-feira, Bolsonaro ironizou o erro inicial da Polícia Federal sobre o valor do suposto desvio de joias —trecho do relatório inicialmente falava em R$ 25 milhões, mas a corporação depois retificou o valor para R$ 6,8 milhões.

O ex-presidente não se pronunciou, no entanto, sobre as evidências que mostrariam que o ex-presidente tinha conhecimento da tentativa de venda de um kit de joias ouro rosé.

De acordo com a PF, isso fica claro numa troca de mensagens entre ele e o seu ex-ajudante de ordens, Mauro Cid, em que este manda um link de um leilão e o ex-presidente responde "selva".

O termo é uma forma de saudação comum no Exército, com um "ok" ou um "tudo certo", por exemplo, e que surgiu inicialmente em batalhões na Amazônia.

A PF relatou também que, durante a sua análise do celular de Bolsonaro, foram encontrados cookies e históricos de navegação da página da empresa Fortuna Auction, responsável pelo leilão.

Foto incluída no relatório da PF com Jair Bolsonaro em mesa com o ex-ajudante de ordens Mauro Cid e o pai dele, Lourena Cid
Foto incluída no relatório da PF com Jair Bolsonaro em mesa com o ex-ajudante de ordens Mauro Cid e o pai dele, Lourena Cid - Reprodução/PF/Reprodução/PF

Os cookies são arquivos que são trocados entre uma página da web e o navegador para facilitar o acesso e a trocas de outras informações.

"Esta sequência apresentada: primeiro, o envio de link do leilão por Mauro Cid, segundo, o registro de acesso à página por meio de histórico e cookies por Jair Bolsonaro, em seu aparelho telefônico, e terceiro, a utilização da expressão 'Selva' reforçam a utilização deste jargão para confirmar a ciência, do ex-presidente, de que o kit ouro rosé fora exposto a leilão", disse a polícia.

O kit rosé, segundo a PF, é composto por um conjunto de itens masculinos da marca Chopard contendo uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, um rosário árabe e um relógio recebidos pelo então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, após viagem a Arábia Saudita, em outubro de 2021.

A análise dos dados coletados pela PF no telefone celular de Mauro Cid revelou que o kit foi levado do país no final do mês de dezembro de 2022, por meio do avião da Presidência da República, e submetido à venda, em procedimento de leilão nos Estados Unidos.

A polícia ainda acrescentou que, no dia do leilão do kit rosé, Cid enviou ao contato do ex-presidente um link da rede social Facebook que provavelmente seria de uma transmissão ao vivo dos leilões da empresa Fortuna Auction e escreveu "daqui a pouco é o kit".

De acordo com a PF, como o item não foi arrematado, Cid enviou mensagens eletrônicas para a loja perguntando se o item poderia constar do próximo leilão e quais seriam os próximos passos a respeito do kit.

Porém, no dia 13 de fevereiro, Cid enviou um novo email à loja informando que o proprietário havia mudado de ideia e gostaria que o item fosse devolvido.

Segundo a PF, neste momento, o grupo estava preocupado em fazer o kit voltar ao Brasil e solicitar que ele fosse enviado ao endereço onde residia o ex-presidente e seus assessores, em Orlando, nos EUA, o que ocorreu.

No dia 1º de março, Cid voltou a questionar a loja sobre quando iriam enviar o item de volta, numa espécie de "operação resgate", acelerada após reportagem publicada pelo jornal Estado de S. Paulo, em 3 de março, que revelou o caso.

O documento da PF também cita um depoimento do general da reserva Mauro Lourena Cid, pai do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, em que o militar afirma ter entregado US$ 68 mil ao ex-presidente, de forma fracionada, pela venda de relógios recebidos pela Presidência.

O general disse que o seu filho solicitou a ele que recebesse, em sua conta bancária nos EUA, os valores decorrentes de uma venda de bens do então presidente. Em razão disso, ele teria disponibilizado sua conta bancária.

"O declarante disse que Mauro Cid relatou posteriormente que se tratava da venda de relógios de propriedade do então presidente Jair Bolsonaro. Ao ser questionado como se deu os repasses dos valores, Lourena Cid afirmou que os valores foram repassados de forma fracionada conforme a disponibilidade de encontros com o ex-presidente", disse.

Mauro Cid também afirmou, em depoimento do dia 28 de agosto de 2023, ter combinado com seu pai que o saque dos US$ 68 mil dólares, decorrente da venda dos relógios, ocorreria de forma fracionada e que os valores seriam entregues à medida que alguém conhecido viajasse dos Estados Unidos ao Brasil.

"O colaborador enfatizou que o dinheiro seria entregue sempre em espécie de forma a evitar que circulasse no sistema bancário normal", disse a PF.

De acordo com a investigação policial, os elementos de provas da investigação apontam que houve "uma associação criminosa voltada para a prática de desvio de presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro e/ou por comitivas do governo brasileiro, que estavam atuando em seu nome, em viagens internacionais".

Esses presentes eram entregues por autoridades estrangeiras e, depois, negociados para venda no exterior.

Segundo a polícia, os valores das vendas foram convertidos em dinheiro em espécie e ingressaram no patrimônio pessoal do ex-presidente, sem utilização do sistema bancário formal, "com o objetivo de ocultar a origem, localização e propriedade dos valores".

De acordo com a polícia, as investigações trouxeram indícios de que "os proventos obtidos por meio da venda ilícita das joias desviadas do acervo público brasileiro" retornaram para o patrimônio de Bolsonaro e de sua família, por meio de lavagem de dinheiro, enquanto ele estava nos Estados Unidos, depois de ser derrotado nas eleições presidenciais para Lula (PT).

A PF identificou, na análise das movimentações financeiras de Bolsonaro no Brasil e no exterior, que o ex-presidente não utilizou recursos depositados em suas contas bancárias para custear seus gastos nos EUA entre 30 de dezembro de 2022 e 30 de março de 2023.

"A utilização de dinheiro em espécie para pagamento de despesas cotidianas é uma das formas mais usuais para reintegrar o 'dinheiro sujo' à economia formal, com aparência lícita", disse a PF.

O ex-presidente é suspeito dos crimes de associação criminosa (com previsão de pena de reclusão de 1 a 3 anos), lavagem de dinheiro (3 a 10 anos) e peculato/apropriação de bem público (2 a 12 anos).

A PGR analisa agora se denuncia o ex-presidente. Se isso ocorrer, caberá depois à Justiça decidir se ele vira réu.

Declarado inelegível pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) até 2030 por ataques e mentiras sobre o sistema eleitoral, o ex-presidente já havia sido indiciado em março pela PF em outro inquérito, envolvendo a falsificação de certificados de vacinas contra a Covid-19.

Além do caso da venda das joias e da carteira de vacinação, Bolsonaro é alvo de outras linhas de investigações, que apuram os crimes de tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado democrático de Direito, incluindo os ataques de 8 de janeiro de 2023.

Parte dessas apurações está no âmbito do inquérito das milícias digitais relatado por Moraes e instaurado em 2021, que podem em tese resultar na condenação de Bolsonaro em diferentes frentes.

Caso seja processado e condenado pelos crimes de tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição do Estado democrático de Direito e associação criminosa, Bolsonaro poderá pegar uma pena de até 23 anos de prisão e ficar inelegível por mais de 30 anos.

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.