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Carlos Melo

O novo rumo dos ventos e a democracia brasileira

Fenômenos recentes mundo afora poderão ser reproduzidos em São Paulo

Carlos Melo

Cientista político e professor Sênior Fellow do Insper

Eleições no Reino Unido e na França frustraram mais de uma década de avanço do ultraconservadorismo reacionário europeu. Nos Estados Unidos, favorecido pela fragilidade de Joe Biden, Donald Trump lidera a corrida eleitoral, mas a rejeição ao ex-presidente é tamanha que até Kamala Harris, a pouco popular vice de Biden, o derrotaria, como dizem as pesquisas. Na Índia, com resultados aquém das expectativas, Narendra Modi manteve-se no poder, com significativo sentimento contrário ao primeiro-ministro.

Keir Starmer faz seu primeiro discurso como primeiro-ministro britânico - Li Ying - 10.jul.24/Xinhua

Na América Latina, a comunidade internacional e a sociedade boliviana frustraram a tentativa de golpe militar naquele país. No Brasil, o Datafolha indica que 65% dos eleitores paulistanos rejeitariam candidato apoiado por Jair Bolsonaro –a rejeição ao apoio de Lula é 20 pontos mais baixa.

A ultradireita ainda cresce, contudo distante da hegemonia pretendida. É de suspeitar que o extremismo da última década esteja desacelerando. Cedo para crer em "tendência", mas são sinais que exigem atenção. É eloquente que Ciro Nogueira, ex-ministro de Bolsonaro e de elevado instinto de sobrevivência, tenha alertado para os riscos de definhamento da direita radical brasileira, à qual se uniu.

Para vencer a eleição, o Partido Trabalhista inglês fez inflexões ao centro e a setores médios. Na França, o temor ao extremismo do partido Reunião Nacional forjou mobilização popular, diálogo e estratégias combinadas entre as demais forças políticas. Foi surpreendente a vitória da Nova Frente Popular, consolidada como a maior força. Mas, para poder governar —isolando Marine Le Pen e estabilizando o país—, a fragmentada esquerda terá que se ajustar e juntar forças com os centristas de Emmanuel Macron. São Paulo testará se a mudança na atmosfera política é consistente.

O processo é volátil, mas o mais provável é que a disputa se dê entre bolsonarismo e lulismo. Há pouco espaço para alternativas. Pela reeleição, Ricardo Nunes abraçou o apoio de Jair Bolsonaro, que, no velho e ineficaz apelo de "colocar a Rota na rua", lhe impôs o vice; e a linha de campanha, que deve se referenciar no ex-presidente.

Na esquerda, Guilherme Boulos é naturalmente identificado a Lula. Num gesto de força e de liderança políticas, o presidente operou a volta de Marta Suplicy ao PT e definiu a aliança entre a juventude do deputado e a experiência da ex-prefeita. A estratégia reside em ampliar o limitado campo de PSOL e PT, moderar a imagem de Boulos e, para além da feição antibolsonarista, reanimar o espírito de políticas públicas social-democratas e progressistas implantadas por Marta.

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Boulos, Lula e Marta no lançamento da Pedra Fundamental do Campus Zona Leste da Unifesp - Marlene Bergamo - 29.jun.24/Folhapress

De algum modo, um amplo arco de alianças —maior que simples coligações eleitorais— pode contribuir para ajudar a virar a página da história. Mas não bastará o surrado discurso do "enfrentamento ideológico".

Eleitoral e politicamente mais eficaz será enfrentar problemas concretos da cidade: saúde para uma sociedade em transformação etária; o SUS e os planos de saúde de grande parcela da população; considerar a complexa realidade dos evangélicos; entender o desejo de indivíduos empreenderem, independentemente do Estado; as questões da educação moderna; não se aprisionar à polêmica simplista que contrapõe os direitos humanos à segurança pública, assumindo o desafio de políticas concretas superiores à truculência.

Mais: para superar o ultraconservadorismo, a democracia brasileira deverá dar especial atenção às mulheres, pela centralidade que possuem na vida das famílias. Sobretudo as mulheres pobres, ponto mais agudo da desigualdade nacional, que cumprem múltiplas jornadas de trabalho: cuidam de filhos, maridos e pais; desesperam-se com a violência e miséria; apegam-se e são abraçadas pela religião. Melhor que os homens, sabem a dureza de condições longe de satisfatórias.

Enfim, os fenômenos recentes no mundo podem ser reproduzidos em São Paulo. O desafio será propor soluções práticas e modernas, expressando, com emoção, a luta pela democracia e pelo bem-estar.

Com o engenho e a arte de compreender, agir e se aproveitar de um provável novo rumo dos ventos.

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