Em SP, líderes do The Elders alertam para risco de erosão do sistema multilateral

Grupo lista desrespeito a normas e a decisões de órgãos internacionais como desafios para governantes atuais

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São Paulo

Mary Robinson, 80, e Gro Harlem Brundtland, 85, ocuparam altos cargos políticos de seus países no contexto pós-queda do Muro de Berlim. Robinson foi presidente da Irlanda de 1990 a 1997 —como chefe de Estado, com funções majoritariamente cerimoniais—, e Brundtland foi primeira-ministra da Noruega em três ocasiões, tendo deixado o posto pela última vez em 1996. Depois, assumiram posições de destaque no sistema ONU: a irlandesa como alta comissária para os Direitos Humanos (1997-2002), e a norueguesa como diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (1998-2003).

Na opinião de Robinson e Brundtland, que são membros do grupo de ex-estadistas The Elders (os anciões, em inglês), o mundo com o qual ambas tiveram de lidar era menos complexo do que o atual. De certa forma, era mais fácil ser um líder internacional naquele tempo.

Elas se reuniram em São Paulo com outros integrantes do The Elders para defender uma mensagem desgastada num mundo mais multipolar, fraturado e assolado por conflitos: a de que o sistema multilateral precisa ser seguido. Para as ex-líderes, o desrespeito a normas internacionais pode ter um efeito cascata na erosão de toda a arquitetura de cooperação entre países.

Gro Harlem Brundtland, ex-premiê da Noruega (à esq.), Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda (centro) e Zeid Ra'ad Al Hussein (à dir.), ex-alto comissário da ONU para Direitos Humanos, durante entrevista em São Paulo. - Bruno Santos - 29.mai.24/Folhapress

A escolha do Brasil como sede da reunião não foi por acaso. A organização quis aproveitar o fato de o país ser presidente de turno do G20 e anfitrião da COP30 —a conferência do clima da ONU— no próximo ano.

Ao final das reuniões na capital paulista, Robinson, Brundtland e o ex-diplomata jordaniano Zeid ibn Ra'ad, 60, também ex-alto comissário da ONU para Direitos Humanos (2014-2018), falaram à Folha.

"Quando assumi o cargo [de presidente da Irlanda], um ano após a queda do Muro de Berlim, havia muita esperança e uma sensação de otimismo. Desperdiçamos muito disso, não soubemos administrar bem a transição para uma era pós-soviética", afirma Robinson. "Quando me tornei alta comissária para os Direitos Humanos na ONU, havia governos —grandes e pequenos, desenvolvidos e em desenvolvimento— que eram meus amigos e apoiavam o processo. Hoje, todos parecem estar lutando por seu espaço, com mais nacionalismo e divisão."

"Estamos preocupados com a erosão do sistema, com a não adesão à lei internacional e com o enfraquecimento de cortes internacionais quando elas atingem aqueles que determinadas pessoas acham que não deveriam ser atingidas, como [Binyamin] Netanyahu em Israel", afirma Robinson.

"Existe hoje um mundo mais multipolar do que existia no pós-Guerra Fria e até o começo deste século. Mais opiniões diferentes surgiram nas últimas décadas, mas isso não precisa minar o sistema multilateral", diz Brundtland. "Não existe alternativa à colaboração internacional. Nenhuma das importantes ameaças contra a humanidade pode ser enfrentada sem ela".

Ra'ad, por sua vez, aponta um risco de que o desrespeito a decisões de órgãos internacionais, como o Conselho de Segurança da ONU ou o TPI (Tribunal Penal Internacional), leve ao comprometimento de uma série de outras normas e tratados acordados entre os países nas mais diferentes áreas.

"A maioria das regras está no sistema ONU, que tem uma espécie de apito de árbitro de futebol. Quando esse apito soa, espera-se que a comunidade internacional entenda. Para o bem da ordem internacional, para o bem da paz, é preciso respeitar esse apito", diz.

O grupo The Elders reúne estadistas veteranos e foi lançado em 2007 pelo ex-presidente sul-africano e líder antiapartheid Nelson Mandela (1918-2013), com o apoio do empresário britânico Richard Branson. O ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso participou da organização desde a sua fundação até 2016, quando passou a ser um membro emérito.

Concluído o encontro em São Paulo, o grupo publicou uma declaração na qual diz que o mundo atravessa o momento mais perigoso desde a Segunda Guerra Mundial. "Os princípios da Carta da ONU estão sob risco de serem subjugados pelo nacionalismo agressivo e pela rivalidade das grandes potências", diz o texto.

Para Robinson, o mundo enfrenta três ameaças existenciais: as mudanças climáticas, o risco de uma nova pandemia e a crise de uma escalada militar com armas nucleares. "Em meio a elas existe a preocupação com a inteligência artificial —que pode ter impactos positivos, mas potencialmente tem muitos impactos negativos."

Para Brundtland, como ex-diretora-geral da OMS, uma eventual nova pandemia seria um exemplo de como o sistema multilateral não tem funcionado. Recentemente, os países não conseguiram chegar a um acordo nas negociações sobre um tratado internacional para coordenar a resposta a uma futura enfermidade de disseminação global.

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