Os críticos estão convencidos de que, apesar de seus méritos, Angela Merkel teria falhado na concepção e na implementação de uma política externa adequada para lidar com a China.
As razões variam. A primeira-ministra teria errado ao não ter sido mais firme com Pequim na defesa de direitos humanos, relegando valores a segundo plano. Teria falhado ao priorizar interesses econômicos imediatos em vez de reformas profundas no capitalismo de estado chinês. Ao ter ampliado a dependência econômica alemã em relação à China. Ao não enxergar a ameaça estratégica representada por Pequim.
É quase como se Merkel detivesse o poder de transformar a China numa democracia liberal e tivesse optado por não fazê-lo. Como se, caso efetivamente quisesse, a Alemanha pudesse ter contido a ascensão chinesa. Como se devesse ter optado por não se beneficiar do crescimento chinês como o fez.
Os críticos dizem que a política de Merkel para a China está com prazo de validade vencido. Mas o fato é que a orientação alemã evoluiu com o tempo e com a mudança do mundo nesses últimos 16 anos.
Quando Merkel assumiu o poder, em 2005, o entendimento corrente ainda era o de que a abertura econômica chinesa levaria à liberalização política no país. Essa era a expectativa de muitos na Europa e nos Estados Unidos, com o ingresso da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001.
No meio do caminho, quando ficou claro que Pequim tinha condições de executar outros planos, Merkel revisou os seus. O pós-crise de 2008-2009 evidenciou que a China seguiria sua própria trajetória política e que, além disso, se tornaria economicamente mais importante para o mundo.
Especialmente a partir daí, Merkel aproximou-se de Pequim, estabelecendo, por exemplo, um diálogo estratégico que envolve membros do gabinete dos dois países.
No total, a primeira-ministra foi à China 12 vezes. Capitaneou a conclusão do Acordo de Investimentos entre o país asiático e a União Europeia —que talvez nunca entre em vigor—, resistiu a pressões para que a Huawei fosse banida da infraestrutura de 5G na Alemanha e negociou e fechou acordos com os chineses.
Desde 2015, a China é a principal parceira comercial da Alemanha —como é de boa parte do mundo. Chongqing, a megacidade chinesa, tem há dez anos uma ligação ferroviária com a cidade alemã de Duisburg, o maior porto seco do mundo e uma via-chave para a Nova Rota da Seda.
Em vários momentos, no entanto, Merkel contrariou os interesses de Pequim. No início da sua gestão, recebeu o dalai-lama na chancelaria alemã, dando ampla publicidade ao evento.
Acolheu Ai Weiwei, o artista e dissidente chinês. Apoiou mecanismos mais rigorosos para filtrar investimentos estrangeiros na Europa e na Alemanha, refletindo a preocupação com o capital vindo da China. Gerou incômodo ao tratar de questões envolvendo Hong Kong e Xinjiang de maneira aberta.
Dois fatores determinaram sua política para a China nos últimos anos: a defesa dos interesses econômicos da Alemanha e o desejo de evitar uma reedição da Guerra Fria. Tendo crescido na Alemanha oriental, Merkel parece convencida de que não convém o retorno a um mundo dividido em dois blocos.
A primeira-ministra recusou a ideia de aliar a Alemanha ou a União Europeia aos EUA numa grande competição geopolítica contra a China. Quando, sob Donald Trump, o clima entre EUA e China efetivamente começou a azedar, a alemã foi uma das vozes mais eloquentes do bom senso.
Ao defender autonomia estratégica para a União Europeia nas tensões entre as duas potências, Merkel ampliou a margem de manobra para o bloco e, com isso, para o resto do mundo.
Os críticos esperam que a mudança de comando na Alemanha —a eleição será neste domingo (26), e a primeira-ministra não busca nova recondução— marque um ponto de inflexão nas relações do país com a China. Em alguma medida, é natural que um novo governo busque oferecer respostas ao público alemão, cada vez menos simpático à China, segundo pesquisas.
No entanto, seja qual for o resultado das eleições, a próxima liderança herdará o desafio de lidar com uma China que ao mesmo tempo é parceira, competidora e rival estratégica, como definiu a Comissão Europeia em 2019. Tal como Merkel, o novo (ou a nova) líder terá que equilibrar valores e interesses. Terá que encarar o fato de que a China divide corações e mentes na Alemanha, na Europa e no mundo. Terá que se perguntar o quanto pode efetivamente contar com os EUA agora e no futuro.
A questão, no fundo, é quão diferente a política externa alemã poderá ser em relação à China e que metas podem de fato ser almejadas. Há um limite para aquilo que até os melhores líderes podem alcançar.
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