Corte de R$ 25,9 bi prometido por Haddad prevê fim de brechas legais que impulsionaram benefícios

Cerca de R$ 10 bi da economia virão das mudanças na lei; normas permitem concessão de BPC fora dos critérios

Brasília

O corte de R$ 25,9 bilhões em gastos obrigatórios anunciado pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda) prevê o fim de brechas legais que favoreceram a escalada de gastos com benefícios sociais nos últimos anos. As mudanças tiveram o aval do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na última quarta-feira (3).

Um dos casos mais emblemáticos é uma portaria da época da pandemia de Covid-19 que permite a concessão do BPC (Benefício de Prestação Continuada) a pessoas que não estão no Cadastro Único ou não comprovam o enquadramento no limite de renda para acessar o benefício.

A medida foi adotada no momento em que o isolamento social era necessário para conter uma doença para a qual ainda não havia vacina. Mais de um ano após a declaração do fim da emergência de saúde pública, o texto segue em vigor.

O ministro Fernando Haddad (Fazenda) em evento no Palácio do Planalto; governo promete cortar R$ 25,9 bilhões para 2025

A estratégia do governo é rever essas normas e até mesmo aprovar uma lei no Congresso Nacional para dar maior respaldo legal às ações de revisão de gastos.

Segundo um integrante da equipe econômica, cerca de R$ 10 bilhões do corte de gastos estão ligados às mudanças legais, enquanto o restante pode ser executado sem passar pelo Legislativo.

O governo articula incluir as propostas no projeto de lei que trata da desoneração da folha de 17 setores empresariais e dos municípios de até 156 mil habitantes. O texto tem o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), como relator. Parte da economia de despesas pode inclusive ajudar a compensar o impacto das renúncias fiscais.

Técnicos ouvidos pela Folha afirmam que a legislação atual já dá o respaldo necessário ao governo para seguir adiante com os processos de revisão, mas a opção foi incluir no projeto dispositivos que reforcem esse comando. Assim, quem não fizer a revisão estará descumprindo a lei.

A estratégia resolveria problemas como as dificuldades para cessar repasses do BPC, um dos benefícios mais judicializados. Também permitiria ajustes nas ferramentas de controle e monitoramento das revisões, além de definir prazos para bloqueio, suspensão e cessação dos pagamentos.

O plano do governo é, no primeiro momento, convocar para atualização cadastral 900 mil beneficiários do BPC que estão há mais de quatro anos sem passar por reavaliação, bem como aqueles que estão fora do CadÚnico, acima do limite de renda ou tiveram o benefício concedido pela via judicial.

O início da revisão estava previsto para novembro, mas o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome trabalha para antecipar o cronograma.

Na Previdência, serão chamadas pessoas que recebem auxílio-doença há mais de um ano ou aposentadoria por invalidez há mais de dois anos sem revisão.

Também estão na mira o seguro-defeso (pago a pescadores artesanais na época em que a atividade é proibida), cujos pagamentos só serão liberados após recadastramento, e o Proagro (seguro rural para pequenos e médios produtores), que passará por novo aperto nas regras, além da continuidade da revisão dos benefícios unipessoais do Bolsa Família.

A equipe econômica também quer endurecer regras de repasse de recursos para estados e municípios. Uma das iniciativas é exigir dos entes o cadastro de todos os funcionários no eSocial para ter direito a cotas extras dos fundos de participação ou à redução na contribuição patronal ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).

Outra proposta é adotar maior rigor na compensação previdenciária, um acerto de contas feito com estados e municípios quando um antigo segurado do INSS se aposenta pelos regimes próprios desses entes.

A ideia é exigir reciprocidade, isto é, o dinheiro só será repassado da União para o estado ou município se o ente também quitar suas obrigações na situação oposta. Hoje, quase não há esse fluxo de pagamento dos regimes próprios estaduais e municipais para o INSS.

Segundo quatro integrantes do governo, a conta dos R$ 25,9 bilhões é uma estimativa inicial do quanto o Executivo precisa cortar para manter as despesas discricionárias (que incluem custeio e investimentos) no mesmo nível deste ano. Um técnico afirma que é isso que dará sustentabilidade ao arcabouço, não só sob a ótica fiscal, mas também política.

A partir desse número, a Casa Civil pactuou com os ministérios medidas concretas a serem adotadas já em 2024, com cálculos iniciais do potencial de cada uma. Alguns ministérios previam números menores para suas ações, mas as projeções estão sendo refinadas. Novas reuniões ocorreram nesta quinta (4) e sexta (5).

O gasto com o BPC é um dos que mais preocupam a equipe econômica. O programa tem hoje quase 6 milhões de beneficiários —dos quais 1 milhão foi incluído nos últimos dois anos. A despesa com o programa está prevista em R$ 105,1 bilhões neste ano e poderá crescer mais R$ 10 bilhões no ano que vem se nada for feito.

As concessões do benefício tiveram uma aceleração considerável a partir do segundo semestre de 2022. Até então, o público do programa oscilava entre 4,6 milhões e 4,7 milhões, com pequenas variações mensais.

Em julho daquele ano, o governo habilitou 93 mil novos beneficiários. No mês seguinte, mais 90 mil. Desde então, as concessões têm se mantido superiores a 50 mil por mês.

Embora houvesse um represamento de pedidos, devido à fila do INSS, técnicos do governo veem uma situação de descontrole.

Segundo dados do governo, há hoje 339,5 mil beneficiários do BPC fora do Cadastro Único. Eles são candidatos naturais a passarem pela averiguação. Os técnicos também vão examinar 763,4 mil benefícios concedidos pela via judicial e 174 mil que estão acima do limite de renda do programa, que é de ¼ do salário mínimo por pessoa (equivalente a R$ 353). É possível que uma mesma pessoa se encaixe em mais de uma dessas situações.

Segundo um dos técnicos envolvidos nas discussões, não se trata de cancelar sumariamente os benefícios com indícios de irregularidade, mas sim de abrir um processo de averiguação, que será conduzido de acordo com as regras de cada política. O BPC, por exemplo, segue um conceito de composição familiar diferente de outros programas, como o Bolsa Família. Isso não será alterado num primeiro momento.

A taxa de cessação considerada como guia para os ministérios é tida como conservadora, para não gerar estimativas de economia excessivamente otimistas. Outro integrante do governo reforçou a visão de que, se as ações forem bem conduzidas, é possível poupar até mais que R$ 25,9 bilhões.

A expectativa é acompanhar não só o impacto do cancelamento de benefícios indevidos, mas também sua repercussão no número de novos requerimentos. No BPC, a explosão das concessões veio acompanhada de um aumento nos pedidos, de 146,6 mil por mês na média de 2023 para 170,9 mil mensais em 2024. Um dos focos é também desacelerar as concessões.

Um integrante da equipe econômica afirma que a implementação da revisão dos benefícios ajudará a conter as despesas em 2024 e 2025, mas Lula não desautorizou o estudo de novas medidas de ajuste. Os debates internos sobre novas iniciativas devem continuar nos próximos meses.

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