Descrição de chapéu
Sarah O'Connor

A possibilidade de trabalhar em casa não beneficia apenas a elite

Maior flexibilidade melhorou o equilíbrio entre vida profissional e pessoal para muitos desde o início da pandemia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sarah O'Connor

Colunista do Financial Times

Financial Times

O trabalho tem recebido má repercussão na mídia ultimamente. Tivemos a tendência da "grande renúncia", o movimento "antitrabalho", a "demissão silenciosa" e uma onda de greves. Tudo parece se resumir à sensação de que o trabalho está piorando e as pessoas estão fartas dele. Até me pediram para participar de uma discussão em podcast no ano passado intitulada "Este é o fim do trabalho como o conhecemos?"

Mas não é necessariamente o que os dados dizem, pelo menos no Reino Unido. Quando Alan Felstead e Rhys Davies, da Universidade de Cardiff, realizaram um questionário online em 2018/19 e novamente em 2022, reuniram cerca de 100 mil respostas, de pessoas de todo o país, a perguntas detalhadas sobre seus empregos.

Os acadêmicos descobriram que, em 2022, as pessoas relataram maior capacidade de decidir quando começar e parar o trabalho, mais espaço para tirar licença em caso de emergência, gerentes mais solidários, menos pressão no trabalho, mais voz nas decisões relacionadas ao trabalho, melhores perspectivas de promoção e maior segurança no trabalho. No lado negativo, eles tiveram menos discrição sobre suas tarefas profissionais.

Flexibilidade do trabalho melhorou o equilíbrio entre vida profissional e pessoal para muitos desde o início da pandemia, escreve Sarah O'Connor - Adobe Stock

Vale a pena tratar os dados do questionário online com certa cautela, como os autores prontamente admitem. O tamanho da amostragem foi enorme, mas os entrevistados foram autosselecionados e com certa tendência para mulheres, funcionários públicos e profissionais liberais (embora os acadêmicos tentassem explicar isso com valores ponderados).

Mas outra pesquisa sobre a qualidade do emprego no Reino Unido, realizada anualmente pelo Chartered Institute of Personnel and Development, também se inclina contra a noção de que o trabalho piorou em média: a maioria das métricas permaneceu bastante estável, com alguma melhora no equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

Se a qualidade do trabalho melhorou um pouco, qual seria o motivo? O mercado de trabalho apertado ajudou as pessoas a se sentirem menos inseguras –e pode muito bem ter levado os empregadores a fazer outras mudanças para recrutar e reter funcionários. Depois, há a mudança induzida pela pandemia na direção do trabalho remoto ou híbrido, que Felstead chama de "uma mudança radical, um momento de luz, uma ruptura na história". Nicholas Bloom, professor de economia da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, disse que os níveis de trabalho em casa dobraram aproximadamente a cada 15 anos até a pandemia. Então tivemos "40 anos de aceleração no espaço de três anos".

Felstead e Davies descobriram que a qualidade do emprego melhorou mais nas ocupações que se tornaram mais propensas a envolver trabalho em casa pelo menos um dia por semana. E, notavelmente, esses vencedores não eram apenas profissionais bem pagos que tinham as melhores condições de trabalho, para começar. Isso coloca um ponto de interrogação sobre a ideia de que o trabalho híbrido ampliou o abismo entre os empregos "adoráveis" e os "péssimos".

"Antes da pandemia, os que trabalhavam em casa estavam entre os escalões mais altos, mas esse benefício diminuiu", disse-me Felstead. Pessoas como trabalhadores de call centers, funcionários administrativos, consultores habitacionais e paralegais agora têm muito maior probabilidade de trabalhar em casa pelo menos um dia por semana do que antes da pandemia. E isso parece ter melhorado a qualidade de seus empregos: mais flexibilidade, menos pressão.

Claro, muitas pessoas não podem trabalhar remotamente. Acho que não é surpresa que esses trabalhadores tenham maior probabilidade de pedir demissão ou fazer greve. As pesquisas do CIPD sugerem que as pessoas em empregos de assistência, lazer e fábricas estão entre as que realmente experimentaram uma queda no equilíbrio entre vida pessoal e profissional desde o início da pandemia. O pagamento certamente foi a principal razão para o conflito industrial em um momento de queda dos salários reais, mas Bloom diz que a capacidade de fazer trabalho híbrido equivale a um aumento salarial de cerca de 7% a 8%, com base em pesquisas sobre o quanto as pessoas o valorizam. Essa é uma vantagem que caiu de forma altamente desigual.

O trabalho híbrido veio para ficar? A pesquisa de Bloom e seus colegas, que usou um grande modelo de linguagem de inteligência artificial para analisar 250 milhões de anúncios de emprego em cinco países de língua inglesa, mostra que a parcela de postagens que oferecem explicitamente trabalho totalmente remoto ou híbrido disparou de menos de 5% antes da pandemia para cerca de 10% ou mais em todos os países (mais de 15% no Reino Unido) em 2023. Mas vale lembrar que o "novo normal" ainda não foi testado em um mercado de trabalho onde o desemprego é alto e os trabalhadores competem por empregadores, e não o contrário.

Espero que os patrões não tentem voltar no tempo, mesmo que descubram que podem. O trabalho híbrido parece ter melhorado a vida profissional –não para todos, mas também não apenas para a elite. Muitos empregos ainda são ruins, mas se alguns são menos ruins, ou mais agradáveis, é um progresso que não devemos jogar fora.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.