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Claudia Feitosa-Santana

Legalização do aborto ajuda a reduzir violência?

Autora comenta estudos que correlacionam descriminalização da prática e queda na criminalidade

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Claudia Feitosa-Santana

Neurocientista, arquiteta e engenheira, com mestrado e doutorado pela USP e pós-doutoramento na Universidade de Chicago. Autora do livro "Eu Controlo como me Sinto" (ed. Paidós)

[RESUMO] Neurocientista escreve que devemos refletir sobre as incongruências de nossas opiniões e estarmos abertos a ideias contrárias se quisermos de fato um diálogo sobre temas controversos, como o aborto. Estudos que correlacionam a legalização da interrupção da gravidez à queda na criminalidade podem ser um ponto de conexão entre todos nesse debate, escreve ela.

À medida que a polarização política se intensifica, enfrentar qualquer assunto se torna ainda mais complexo. E que dirá assuntos que sempre foram polêmicos. Pessoas com interesses antagônicos carecem de uma estratégia de comunicação que respeite seu oponente. Desenvolver essa habilidade, porém, passa por entender onde se situam as incoerências de suas próprias opiniões.

Convido você, leitor, a uma reflexão na qual possa identificar alguns paradoxos do seu posicionamento, seja a favor ou contra o aborto, com a finalidade de assumir sua própria falácia cognitiva para migrar da polarização para a conexão.

Fundo em camadas de aquarela cor rosa e o desenho em traço preto de uma mulher e ao lado mãos retirando geometricamente a barriga dela
Silvis

É preciso encarar um dado da realidade: cada feto tem um código genético que jamais será replicado e, uma vez abortado, essa vida será perdida e nunca mais recuperada. O aborto mata.

O paradoxo é evidente quando lembramos que muitas pessoas que defendem a legalização se opõem à pena de morte. Ou quando observamos a fatia crescente da população que é vegetariana por prezar a vida animal, mas não se opõe ao aborto.

Se estamos discutindo a questão da vida —ou, no caso de fetos, o potencial de uma vida a ser vivida—, não deveríamos sempre aplicar as mesmas regras? Quando se trata da pena de morte ou do direito animal, muitos adotam uma abordagem baseada no direito à vida. No entanto, quando o assunto é o aborto, há uma mudança de perspectiva.

O direito do feto é desconsiderado em favor de uma abordagem que se concentra na qualidade de vida da mulher em questão. A alternância analítica, para que os argumentos estejam alinhados com suas crenças e seus valores, revela uma contradição, uma inconsistência cognitiva, mesmo que de forma inconsciente.

Essa lacuna cognitiva também está presente, embora de forma reversa, nos contrários à legalização. Alguns são contra o aborto, mas a favor da pena de morte, por exemplo. Ou seja, uma reflexão realmente profunda sobre o aborto exige, daqueles que são a favor ou contra, um questionamento objetivo de suas próprias incongruências cognitivas.

Essa autocrítica se faz necessária, particularmente aos favoráveis à legalização do aborto, uma vez que a opinião contrária predomina no cenário brasileiro. Interessa muito mais aos favoráveis qualquer estratégia que possa sensibilizar os contrários —e são muitos. A maioria considera que, independentemente da situação, a mulher que interromper a gravidez deve ser processada e presa, diz o Datafolha.

Como você verá a seguir, muitas evidências indicam o aborto como uma política para a diminuição da criminalidade. Curiosamente, são dados desconhecidos de grande parte dos brasileiros. Um assunto que certamente interessa a todos, incluindo os contrários à legalização. Se conseguirmos conversar, temos aqui uma possibilidade de conexão.

O Brasil é um dos países com mais mortes violentas per capita do mundo, segundo o Escritório de Drogas e Crimes das Nações Unidas. Houve mais de 1 milhão de homicídios entre 1980 e 2010 por aqui.Esses crimes seguiram-se ao aumento do número de homens jovens na população e ao de infrações cometidas por crianças, dentre outros. A maioria dos brasileiros se sente insegura ao andar na rua à noite, segundo o Datafolha.

Nos Estados Unidos, estudos dos pesquisadores Steven Levitt e John Donohue apontam que a redução na violência estaria conectada à legalização do aborto. As taxas de criminalidade começaram a cair quase duas décadas após a decisão da Suprema Corte em 1973, conhecida como Caso Roe v. Wade, que liberou a interrupção da gravidez, dizem. Cinco estados que descriminalizaram a prática antes dessa decisão vivenciaram, antecipadamente, a queda de crimes.

Essa teoria provocou muita controvérsia, mas diversos outros estudos confirmaram suas hipóteses. Por exemplo, registraram-se nos EUA, nas décadas seguintes à legalização, redução no número de crianças maltratadas, negligenciadas ou abusadas e constante diminuição de homicídios na faixa de 2 a 4 anos.

Existe ainda a possibilidade de que, com a legalização do aborto, a queda na criminalidade esteja mais relacionada à redução do número de mães adolescentes. Lares desestruturados são uma das condições sociais em geral relacionadas a crimes. No Canadá, constatou-se correlação entre menos mães jovens e declínio da violência. Na União Europeia, a maioria dos países também verificou o efeito, embora menor, da legalização da prática abortiva na criminalidade.

Por outro lado, foi possível observar o efeito reverso —as consequências da lei que restringiu o acesso ao aborto na Hungria. As crianças nascidas a partir da proibição tiveram piores resultados educacionais, maiores probabilidades de ficarem desempregadas e serem pais na adolescência.

Recentemente, Levitt e Donohue revisitaram suas previsões. Mostraram que a legalização foi responsável nos EUA pelo declínio de 1% ao ano na criminalidade, pela redução de 47% no crime violento e de 33% no crime contra a propriedade.

O nascimento de uma criança indesejada não pressupõe necessariamente que ela se envolverá em atividades criminosas. Contudo, essas crianças passam por maior probabilidade de serem negligenciadas, maltratadas, abusadas e abandonadas, fatores de impactos negativos no futuro que podem favorecer envolvimento com crimes.

A violência no Brasil funciona como um dreno cerebral, pois vivemos constantemente preocupados com a falta de segurança, o que reduz nossa produtividade, restringe nossa liberdade, motiva a emigração e afeta a autoestima. Para dizer o mínimo, a criminalidade é uma tristeza nacional.

Em suma, esse artigo sugere que a legalização do aborto pode diminuir a violência. Mesmo sem consenso, é uma hipótese com muitas evidências. Por isso, precisa ser considerada. Infelizmente, o aborto é um caminho imperfeito, mas parece ser necessário enquanto se espera por menos pobreza e mais educação no Brasil.

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