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Dirce Waltrick do Amarante

PL Antiaborto apagou em segundos exemplo histórico de Simone Veil

Há 50 anos ministra discursou no Parlamento da França em defesa da descriminalização do aborto

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Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora, entre outros livros, de "Para Ler Finnegans Wake de James Joyce" e "James Joyce e Seus Tradutores". Organizou e cotraduziu "Finnegans Rivolta", de Joyce

[RESUMO] Autora compara discurso histórico da ministra da Saúde da França, Simone Veil, em defesa da legalização do aborto, proferido no Parlamento francês em debate que se arrastou por 25 horas, à votação relâmpago, de apenas 24 segundos, da Câmara dos Deputados no Brasil que deu urgência a projeto de lei que criminaliza a prática após 22 semanas de gestação, mesmo em casos de estupro.

Há 50 anos, em 1974, a então ministra da Saúde da França, Simone Veil, discursou em defesa da legalização do aborto no Parlamento de seu país diante de um plenário majoritariamente masculino. O acalorado debate durou 25 horas.

Antes disso, Veil precisou enfrentar o ódio de parte da população, que lhe enviava cartas furiosas e a insultava publicamente. No entanto, como lembra a jornalista francesa Annick Cojean no livro "Uma Lei para a História: a Legalização do Aborto na França" (Bazar do Tempo), em tradução de Julia Vidile, Veil não cedeu em nenhum momento, afinal, "os sofismas e as injúrias de homenzinhos de pouca envergadura não podiam atingi-la. Sua história pessoal lhe dava força e estatura".

Simone Veil, então ministra da Saúde da França, fez discurso história em defesa da legalização do aborto no Parlamento, em Paris, em 26 de novembro de 1974 - AFP/AFP

A legalização do aborto entrou em vigor na França em janeiro de 1975.

Em nosso país, essa importante efeméride para todas as mulheres do mundo coincidiu com um retrocesso inaceitável em relação ao direito legítimo que as brasileiras têm de determinar o rumo de suas vidas. Em 24 segundos, o plenário da Câmara dos Deputados, com o apoio do presidente da casa, Arthur Lira (PP-AL), aprovou a urgência de votação de projeto que equipara o aborto, após 22 semanas de gestão, ao crime de homicídio, mesmo em caso de estupro.

O discurso de Veil, que pode ser lido no livro citado acima, inicia com uma série de perguntas: "Por que consagrar uma prática ilícita e, assim, nos arriscar em encorajá-la?". Ela mesma responde: "É impossível impedir os abortos clandestinos, bem como aplicar a lei penal a todas as mulheres que seriam passíveis de sofrer seus rigores".

Essa realidade, que não era específica da França do século passado, é ainda atual no Brasil, onde obviamente se fazem abortos clandestinos, porém, se algumas mulheres têm condições financeiras de pagar por eles, outras não podem contar com "clínicas especializadas".

Aqui, o aborto é crime, salvo algumas exceções: má formação do cérebro do feto; gravidez que coloca em risco a vida da gestante; e gravidez que resulta de estupro. Todavia, as mulheres que apresentam essas condições precisam prová-las para a Justiça, desencadeando um processo burocrático que pode levar muito tempo —quando essa saga termina, a gestação já está em estado bastante avançado. Há inúmeros casos, amplamente discutidos na imprensa, que confirmam a dificuldade dessas gestantes em ter direito a um aborto legal.

Além disso, principalmente em caso de estupro, não bastasse o trauma pelo qual a mulher passou, é preciso que ela exponha a violência sofrida perante à Justiça. O sentimento de vulnerabilidade não raro pode causar prejuízo à sua saúde mental.

No seu discurso, Simone Veil faz questão de enfatizar que "a apreciação dos casos eventuais de estupro ou incesto levantaria problemas de provas praticamente insolúveis dentro do prazo adaptado à situação". Em outros casos, que precisam de laudo médico ou de comissões especializadas no assunto, diz a ministra, "mais uma vez, as mulheres menos capazes de encontrar o médico mais compreensivo ou a comissão mais indulgente se veriam num beco sem saída".

No Brasil, a legislação sobre o tema, em vez de avançar e proteger a mulher de sofrimentos e constrangimentos decorrentes de inúmeros exames e provas que o direito ao aborto exige, parece prestes a retroceder ainda mais, a ponto de fazer da vítima de estupro uma criminosa a ser encarcerada. A pergunta que não se pode deixar de fazer é: por que esse retrocesso? E a quem ele interessa?

O mais incompreensível é que mulheres legisladoras se uniram aos homens, apoiam esse retrocesso . É necessário retornar ao discurso de Veil, quando ela afirma: "Eu gostaria, antes de tudo, de compartilhar com os senhores uma convicção de mulher —peço desculpas por fazê-lo diante desta assembleia quase exclusivamente compostas por homens: nenhuma mulher recorre com alegria ao aborto. Basta escutar as mulheres".

Será que essas legisladoras não ouvem umas às outras? Ou estariam comprometidas apenas consigo mesmas, com seus interesses pessoais e os dos grupos aos quais pertencem? Não há como não lembrar de Paulo Freire, para quem "o verdadeiro compromisso é a solidariedade, e não a solidariedade com os que negam o compromisso solidário, mas com aqueles que, na situação concreta, se encontram convertidos em ‘coisas’".

As mulheres serão mais uma vez convertidas em coisas, seus corpos serão apenas o receptáculo de "algo" mais importante do que elas mesmas, caso venha a ser aprovada essa nova lei do aborto. No discurso de Veil, sua maior preocupação era com a segurança da mulher, a ponto de que, para ela, o Estado deveria garantir que o aborto fosse feito "em meio hospitalar público ou privado". Veil ressalta, portanto, "o terceiro objetivo do projeto de lei: proteger a mulher".

Não seria interessante acrescentar a essa nova legislação a responsabilidade do homem que provocou a gravidez? Ele não teria a obrigação de cuidar do filho mesmo antes de a criança nascer, já que, ainda na barriga, ela já é considerada um ser que tem vida?

A respeito dos progenitores, Veil dedica pouco tempo a eles. Afirma apenas que, embora se tenha cogitado que a decisão da interrupção da gravidez devesse ser tomada também pelo marido ou companheiro, "não é possível instituir uma obrigação jurídica nessa matéria". No caso de gravidez que coloca em risco a vida da mãe, por exemplo, cabe à mulher, e apenas a ela, decidir se deseja ou não se sacrificar.

O fato é que as mulheres, no Brasil, estão sempre lutando por seus direitos, tentando provar que existem, que têm voz e são donas de seu próprio corpo. Os homens aparentemente ainda podem tudo, até mesmo engravidar sua parceira e eximir-se de qualquer responsabilidade.

Ultimamente, a misoginia tem se tornado cada vez mais comum, mesmo no ambiente acadêmico, de onde eu falo. Não é raro que pesquisadoras sejam consideradas incapazes por seus pares, e não é incomum que elas se calem diante desse comportamento incivilizado dos colegas. Neste ano, ouvi professores usarem frases como "não trate de assuntos que não domina" ao se dirigirem a uma colega de profissão.

O machismo segue sem freio em todas as instâncias, cresce e toma corpo, talvez porque as mulheres tenham recuado, principalmente quando presenciam ataques misóginos contra outras mulheres.

Diante dessa realidade, não é de espantar que em 24 segundos um só homem tenha conseguido, graças ao seu poder de presidente da Câmara, acelerar uma votação nefasta e bloquear a possibilidade de debates históricos, como o discurso de Simone Veil, tão importante para as mulheres de todo o mundo.

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