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Luiz Armando Bagolin

Mostra lança luz sobre glória e aflições de Michelangelo no fim da vida

Últimas três décadas do artista são tema de exposição no Museu Britânico, em Londres

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Detalhe do afresco "Juízo Final", pintura na Capela Sistina do artista Michelangelo Reprodução

Luiz Armando Bagolin

Professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP

[RESUMO] "Michelangelo, as Últimas Décadas", em cartaz em Londres até 28 de julho, enfoca o renascimento do artista às vésperas dos 60 anos, quando voltou a Roma para pintar o afresco "Juízo Final" na Capela Sistina. Embora já consagrado e em idade considerada avançada para a época, o artista demonstrou um dinamismo surpreendente nos 30 anos seguintes, produzindo alguns dos principais trabalhos de sua carreira. A exposição reúne desenhos, esboços para grandes projetos, poemas e cartazes que revelam pensamento e aflições de Michelangelo em período tão intenso.

Em 1534, com quase 60 anos, Michelangelo retornou a Roma, a pedido do papa Paulo 3º, a fim de executar uma pintura encomendada pelo papa anterior, Clemente 7º, para a parede atrás do altar da Capela Sistina, cujo dossel o artista havia pintado entre 1508 e 1511. Tratava-se de uma versão épica da representação do Juízo Final.

Esta obra, que faria a fama de Michelangelo alcançar seu ponto mais alto em sua produtiva carreira como escultor, pintor e eventualmente arquiteto, marcaria o reinício do artista à frente de um novo e magnífico conjunto de obras e demandas que se estenderiam por mais 30 anos, até 1564, quando morreu aos 88.

Parte do afresco "Juízo Final", de Michelangelo, na capela Sistina, no Vaticano - Reprodução

É exatamente este período, uma espécie de renascimento de Michelangelo nas três últimas décadas de sua vida, o tema de exposição no Museu Britânico, em Londres: "Michelangelo, as Últimas Décadas", com curadoria de Sarah Vowles.

"A percepção popular de Michelangelo concentra-se nas famosas obras de sua juventude: o David, por exemplo, ou o teto da Capela Sistina. O que esperamos fazer nesta exposição é apresentar às pessoas a notável variedade e inventividade de sua carreira entre os 59 e 88 anos, celebrando sua contínua criatividade e determinação diante dos desafios universais da velhice", explicou a curadora. "Ao trazer à tona a própria voz de Michelangelo, por meio de cartas, poesias e outros documentos, e ao considerar suas amizades e suas próprias dúvidas e vulnerabilidades muito humanas, esperamos que os visitantes tenham a chance de apreciar tanto as obras quanto o homem sob uma luz diferente e mais íntima."

Nos últimos anos de sua vida, Michelangelo esteve envolvido em trabalhos para o Palazzo Farnese, a Porta Pia e a Piazza del Campidoglio, sem mencionar o projeto para a basílica e a cúpula de São Pedro, entre muitos outros. Este último, talvez, tenha sido o que mais lhe trouxe aflições.

Michelangelo reclamou diversas vezes da fadiga que tal projeto lhe causava, chegando a anotar no verso de um de seus desenhos "non sono architetto" (não sou arquiteto). Os patrocinadores, contudo, não estavam nem um pouco interessados em seus sentimentos a respeito; apenas lhe ordenavam as obras, crédulos de seu grande engenho e arte.

Em carta escrita a Giorgio Vasari, datada de agosto de 1557, Michelangelo revela o impasse a que chegou sobre o projeto da nova basílica:

"Senhor Giorgio, amigo querido. Eu invoco Deus como testemunha de que, contra minha vontade e com grande pressão, fui colocado pelo papa Paulo na construção de São Pedro em Roma há dez anos; e se o trabalho naquela construção tivesse continuado como naquela época, eu estaria agora envolvido com ela, conforme desejei, para retornar lá: mas devido à falta de trabalho, o progresso diminuiu muito: e desacelera, quando chega à parte mais trabalhosa e difícil: de modo que abandoná-la agora não seria nada além de uma grande vergonha e a perda de todo o prêmio pelos esforços que suportei nesses dez anos por amor a Deus".

Michelangelo sempre preferiu trabalhar sozinho, mas agora, enquanto lutava contra os desafios físicos da velhice, teve que aprender a se adaptar. Ele formalizou um sistema que ocasionalmente usava em seus dias mais jovens, trabalhando em colaboração com um pintor especialista em painéis para satisfazer a demanda de patronos não papais.

Ele criava uma composição que um pintor —geralmente Marcello Venusti, seu principal colaborador— traduzia para o painel, adicionando um cenário e outros detalhes.

Por exemplo, os desenhos de Michelangelo para "A Purificação do Templo", concebendo as figuras em forma de luneta (uma meia lua), foram adaptados por Venusti em uma pintura vertical que os colocava entre colunas salomônicas dramáticas destinadas a evocar não apenas o templo em Jerusalém, mas também o próprio São Pedro.

O sistema colaborativo foi imensamente bem-sucedido. Permitiu que os patronos possuíssem uma obra de arte concebida pelo eterno Michelangelo, executada por outro artista com a aprovação do mestre. Em novembro de 1561, ainda a propósito dos trabalhos para a Basílica de São Pedro, ele comentou:

"Senhores Deputados. Sendo eu velho e vendo que César está tão ocupado em seu ofício pelas coisas da construção, porque os homens muitas vezes ficam sem liderança; portanto, pareceu-me necessário dar, a este César, Pierluigi como seu companheiro, o qual conheço como uma pessoa útil e honrada para a construção; porque ele também estava acostumado com a construção e porque, morando em minha casa, ele poderá me informar à noite o que foi feito durante o dia. Aos quais vossas senhorias farão ordenar seu mandato de provisão iniciado no primeiro deste mês, na quantidade daquela de César: caso contrário, eu o pagarei do meu; porque estou resolvido, conhecendo a necessidade e o benefício da construção, que ele permaneça lá".

Esse sistema de colaboração era muito comum no período, contrariando em geral teses românticas que apregoam a genialidade de um artista produzindo de modo solitário o tempo todo. Uma obra, ainda que apenas supervisionada ou guiada por Michelangelo, tinha o mesmo valor de uma inteiramente de sua mão.

Na exposição em Londres há um desenho raro, um esboço preparatório para pintura, intitulado "Epifania"(cerca de 1550-1553), com mais de dois metros de altura por dois de largura. Composto por uma junção de 25 folhas de papel, este desenho foi feito por Michelangelo para ajudar Ascanio Condivi na pintura de um painel homônimo (que pertence ao acervo da Casa Buonarotti, em Florença).

Condivi foi um dos biógrafos de Michelangelo, elogiando de maneira superlativa suas obras e sua maestria ("Vita di Michelangelo raccolta per Ascanio Condivi da la Ripa Transone", 1553), como aliás convinha ao gênero biografia à época. O desenho pode, assim, ter sido oferecido como forma de troca ou compensação pelo livro, mas também ser visto como uma honra para o jovem Condivi, que teria como base de sua pintura um desenho do grande mestre.

O desenho acompanha a obra na mostra, a exemplo de muitos outros, como um nu masculino de costas que foi um dos numerosos estudos para o "Juízo Final" (1535-1541). Há também o fabuloso "O Castigo de Tício" (1532). Um jovem nu está se debatendo atado a uma rocha (apenas o braço e a perna esquerda estão soltos), enquanto uma grande águia (era um abutre na versão original do mito) tenta lhe devorar o fígado.

No canto direito da representação, há o esboço rápido de um tronco retorcido cujas raízes se entranham naquela mesma rocha, com a sugestão de um perfil grotesco, misto de uma figura humana e animal ensaiando um grito de horror.

Após 1550, Michelangelo irá se dedicar apenas ao desenho, à escultura e à poesia. A exposição do Museu Britânico tenta explorar tanto a obra quanto a vida privada, apresentando-o não apenas como um artista icônico, mas também uma pessoa com afetos e paixões intensas.

Se, por um lado, as biografias o descrevem como uma figura irascível, capaz de desafiar até o papa Júlio 2º, por outro, desconhece-se em geral a figura de um Michelangelo fraternal, amoroso e paterno.

A exposição enfoca duas das suas relações mais significativas durante este período tardio: com o jovem nobre romano Tommaso de' Cavalieri e com a poeta aristocrática Vittoria Colonna. Ambas as amizades estimularam a criação de poemas e obras plásticas delicadas por parte do velho mestre: para Tommaso, Michelangelo fez alegorias mitológicas, como a "Queda de Fáeton"; para Vittoria, ofereceu iconografias religiosas como "Cristo na Cruz", que evocava a tragédia e o triunfo da morte de Cristo.

Michelangelo era um católico devoto e, à medida que envelhecia, ficava cada vez mais preocupado com o estado de sua alma. Ele enviava grandes somas de dinheiro para Florença, por meio de seu sobrinho Leonardo, para que fossem usadas em fins caritativos, e tanto sua arte quanto sua poesia demonstravam um envolvimento profundo e íntimo com questões de salvação.

Um dos exemplos mais comoventes da exploração pessoal da fé por Michelangelo é um grupo de desenhos da Crucificação, presentes na mostra, provavelmente feitos durante os últimos dez anos de sua vida, que mostram o artista idoso recorrendo ao ato de desenhar como um meio, talvez, de meditação espiritual —usando variações de um único tema para explorar seus sentimentos sobre mortalidade, sacrifício, fé e a perspectiva de redenção.

Talvez ele também acreditasse nos máximos elogios que recebeu em vida, que o tinham como um enviado de Deus. O poeta Benedetto Varchi, por exemplo, escreveu que o artista fora "mandado à terra por Deus, para dar a última realização e a extrema perfeição às artes mais belas".

O que importa, contudo, é compreender que no final, para Michelangelo, todas as coisas que realizou faziam parte da mesma força, imune a disputas mundanas ou retóricas, porque alimentadas pela arte e pelo pensamento. Em carta de 1549 enviada a Varchi, a propósito do certame pelo primado das artes, entre a pintura e a escultura, ele decretou:

"Para que pareça que eu recebi, como de fato recebi, o seu livreto, responderei algo a que me perguntou, embora com ignorância. Digo que a pintura parece ser mais valorizada, quanto mais se aproxima do relevo, e o relevo é considerado pior, quanto mais se aproxima da pintura; por isso, costumava parecer-me que a escultura era a lanterna da pintura, e que entre uma e outra havia a diferença que há do Sol para a Lua.

Agora, depois de ter lido no seu livreto, onde você diz que, falando filosoficamente, as coisas que têm um mesmo fim são a mesma coisa, mudei de opinião: e digo que, se maior julgamento e dificuldade, impedimento e fadiga não fazem maior nobreza, então a pintura e a escultura são a mesma coisa; e para que assim fosse considerado, não deveria cada pintor fazer menos escultura do que pintura; e da mesma forma, o escultor de pintura que de escultura.

Entendo por escultura aquela que é feita pela força de retirar; aquela que é feita pelo modo de adicionar é semelhante à pintura: basta que, vindo ambas de uma mesma inteligência, ou seja, escultura e pintura, elas podem fazer uma boa paz juntas, e deixar tantas disputas; pois leva mais tempo do que fazer as figuras.

Aquele que escreveu que a pintura era mais nobre que a escultura, se ele tivesse entendido tão bem as outras coisas que escreveu, teria escrito melhor; minha criada poderia fazê-lo. Inúmeras coisas, ainda não ditas, haveria a dizer sobre ciências semelhantes; mas, como eu disse, exigiriam muito tempo, e eu tenho pouco, pois não só sou velho, mas quase no número dos mortos: portanto, peço que me tenham por desculpado. E a vocês me recomendo e agradeço tanto quanto sei e posso pela honra excessiva que me fazem, e que não me é conveniente".

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