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Dirce Waltrick do Amarante

Mostra de Cecilia Vicuña é fio de esperança em nossa relação com o mundo

Exposição da artista chilena na Pinacoteca resgata tradições dos povos ameríndios

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Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora, entre outros livros, de "Para Ler Finnegans Wake de James Joyce" e "James Joyce e Seus Tradutores". Organizou e cotraduziu "Finnegans Rivolta", de Joyce

[RESUMO] Um dos principais nomes da arte latino-americana atual, a chilena Cecilia Vicuña tem sua primeira grande mostra no Brasil, na Pinacoteca de São Paulo. Em sua obra diversificada produzida nas últimas seis décadas, destaca-se o enfoque político para temas que hoje pautam o debate público, como a valorização de práticas ancestrais e, por meio do uso artístico do lixo, o impacto da poluição e da vulnerabilidade social.

A Pinacoteca de São Paulo, com a colaboração do Museu Nacional do Chile, apresenta até 15 de setembro a exposição "Cecilia Vicuña: Sonhar a Água – Uma Retrospectiva do Futuro". É a primeira grande mostra no Brasil da artista, ativista, poeta, performer e pensadora chilena Cecilia Vicuña, 76, um dos nomes mais importantes da arte latino-americana atual, cuja obra vem ganhando destaque em importantes galerias e museus, como a Tate Modern, em Londres, o MoMa, em Nova York, e o Malba, em Buenos Aires.

Vicunã já esteve no nosso país em outras oportunidades. Em 2018, por exemplo, seus trabalhos foram expostos ao lado de obras de Lygia Clark e de Ana Mendieta, na importante mostra "Mulheres Radicais: Arte Latino-americana, 1960-1985", também na Pinacoteca da capital paulista.

A artista chilena Cecilia Vicuña em 2019
A artista chilena Cecilia Vicuña em 2019 - Angel Valentin/The New York Times

Apesar de sua obra ser extremamente diversificada, ela tem uma unidade: a expressão da ancestralidade, sobretudo a dos povos originários da região andina, com quem a artista tem convivido. Em algum momento da história da América do Sul, como ela observou, esse vínculo com a ancestralidade, que sempre foi frágil, foi tragicamente rompido.

Em sua obra, os fios e os nós compõem grandes e pequenos quipos, remetendo ao instrumento utilizado pelos incas para fazer cálculos, enviar mensagens, contar histórias, criar poemas etc. Ao ganharem protagonismo nas instalações mais recentes, os quipos reatam poeticamente, por meio de muitos nós e fios, o vínculo rompido com a ancestralidade. A artista conta que seu primeiro quipo, intitulado "O Quipo que Não Lembra Nada", era "uma insurreição contra a perda da memória cultural".

Na exposição da Pinacoteca, o público poderá ver pela primeira vez no Brasil seu "Quipo Menstrual", descrito por Vicuña como "um rio de sangue menstrual para nos lembrar quem somos, pessoas vulneráveis que dependem umas das outras: uma oração para a continuidade da vida [...]. Um útero duplo para dar à luz a uma nova realidade, uma cultura da solidariedade na terra".

Os fios, uma das matérias-primas da chilena, são também o futuro, que é o lugar do resgate da ancestralidade, como lembra o título da exposição de Vicuña, o qual tem a ver, principalmente, com o ato de contemplar o meio ambiente para ouvir melhor o coletivo.

A pausa contemplativa é essencial às antigas práticas rituais, tão caras à artista. Se chegamos ao Antropoceno, é porque houve a desvalorização da pausa e a valorização da produção e do consumo, inclusive o das riquezas naturais, que não são inesgotáveis.

No Antropoceno, lembra o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, "a natureza perde toda autonomia e dignidade", pois "é inteiramente absorvida e explorada pela ação humana" (tradução de Lucas Machado, revisada por Daniel Guilhermino).

A exposição de Vicuña chega a São Paulo no mesmo semestre em que Ailton Krenak se tornou o primeiro indígena a integrar a Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Dois sinais emitidos pelo eixo Rio-São Paulo que são, sim, um grito de alerta, mas também uma mensagem de esperança na recuperação da nossa sensibilidade e da nossa capacidade de olhar/sentir o mundo.

O "talento óptico", que Vicuña diz ser essencial e que lhe permitiu vasculhar os horizontes de seu país natal, deu origem, inicialmente, às suas obras "precárias", feitas de "lixinhos". A artista conta que, em 1966, algo lhe chamou a atenção numa praia em Concón, balneário do Chile: um dejeto.

Essa experiência se transformou no poema "Con-cón", que consta da antologia "A Palavra e o Fio", organizada e traduzida por mim: "A matéria-prima estava ali,/ esperando ser vista/ como uma forma de ouvir/ um som interior/ que obriga a realizar/ esta ou aquela união/ uma pena inclinada/ um troféu que voa". "A Palavra e o Fio" é o segundo livro de Cecilia Vicuña lançado no Brasil; "PALAVRARmais", o primeiro, foi publicado em 2017, em tradução de Ricardo Corona.

Em Concón, Vicuña fez uma obra efêmera na praia, uma arte "para o céu e para a areia", como afirmou, intitulando-a "Casa Espiral". Vale lembrar que, para a artista, o termo precário tem a ver com prece, com "aquilo que se obtém por oração", e novamente ela retoma a ancestralidade e os rituais dos povos ameríndios, que não separam a arte da religião, nem tampouco da política.

Desde 1966, esse olhar atento para o lixo fez com que Vicuña concluísse que algo estava mudando, pois, não importava por onde caminhasse, encontrava cada vez mais lixo industrializado e tóxico, em comparação com o orgânico.

A artista observou, contudo, que esses dejetos industrializados se "disfarçavam" de raízes, de vegetais etc. O lixo inorgânico entrava, então, em metamorfose e como que tentava ganhar nova vida como dejetos orgânicos. Vicuña, ao perceber isso, decidiu juntar os dois, pois ambos "fazem parte de um mesmo ciclo vital". Eles morrem, mas renascem ou reencarnam em suas obras, que não param de ser produzidas, culminando nos grandes quipos.

Precário, que significa também "inseguro, apressado ou débil", representa, como já afirmou Vicuña, "toda a precariedade latino-americana e mundial". Nas obras da artista, o lixo, ou seja, aquilo que se descarta, aquilo que não é para ser visto, vem à tona e ganha protagonismo.

Assim, a sua obra reflete e denuncia a poluição do planeta, lembrando tudo o que países ricos enviam para os países pobres, transformando-os em lixeiras.

Os pobres estão presentes na sua obra enquanto migrantes em busca de melhores condições de vida, embora possam chegar por vezes mortos ou bastante debilitados nas areias das praias dos países abastados, como os lixos que encontrou em Concón. A obra de Vicuña denuncia, portanto, também a vulnerabilidade social.

Curiosamente, em 1918/1919 (a data é incerta), a escritora inglesa Virginia Woolf escreveu o conto "Objetos Sólidos". Nele, o protagonista, um político que repete o bordão "Que se dane a política", acaba desistindo do seu ofício ao se deparar com lixo espalhado ao seu redor. Decide então devotar toda a sua atenção a eles: "objetos jogados fora, sem serventia para ninguém, informes, descartados" (tradução de Tomaz Tadeu).

Coincidentemente, ele encontrou seu primeiro dejeto numa praia, assim como aconteceu com Vicuña. Vale lembrar ainda que a artista passou um tempo no exílio, durante a ditadura do general Pinochet, e teve uma vida difícil (precária), principalmente quando viveu em Londres, mas não abandonou os ideias políticos.

O protagonista do conto de Woolf e a artista chilena se assemelham em certos aspectos, ambos se interessam por aquilo que foi descartado. Todavia, se a personagem do conto desiste da política para buscar o que foi posto de lado, Vicuña transforma essa busca em algo ainda mais político.

Não sem razão ela afirma que "o que é deixado de fora talvez seja o mais importante". Diferentemente de Vicuña, o protagonista de "Objetos Sólidos" é incapaz de transformar seus desejos em obra de arte, como, na mesma época, estavam fazendo os dadaístas, com os quais Woolf, aliás, parece dialogar.

A arte precária de Vicuña recria certamente o legado dos dadaístas, mas ela o une, com os fios dos quipos andinos, a muitas outras tradições, em particular as extraocidentais.

Sonhar a Água — Uma Retrospectiva do Futuro

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