Ao encabeçar uma revolução na música popular, o argentino Astor Piazzolla encontrou o caminho que o firmaria como compositor canônico na música de concerto.
Com uma produção marcada pelo diálogo mútuo e incessante entre o popular e o erudito, Piazzolla chega a seu centenário como caso raro de compositor igualmente celebrado dos dois lados de uma fronteira que ele contribuiu para tornar permeável e difusa.
Virtuose do bandoneón —instrumento do qual ele teria, por ser compositor e intérprete, importância equivalente a Chopin e Liszt para o piano—, Piazzolla desfrutou, em ambas as áreas, da melhor formação que poderia ter na Argentina.
De um lado, fazendo arranjos na orquestra de tango de Aníbal Troilo, apelidado como Pichuco. Do outro, como discípulo do principal compositor erudito argentino de todos os tempos, Alberto Ginastera.
Só cinco anos mais velho do que o pupilo, Ginastera incutiu nele o gosto por Stravinsky e Bartók, o hábito de assistir aos ensaios do Teatro Colón, e a curiosidade intelectual não só no campo da música, mas das artes em geral.
Contudo, nessa época, a música erudita e o tango eram terrenos separados por um abismo na Argentina. Compositores eruditos nacionalistas descartavam o "gênero impuro” e preferiam usar como fonte o folclore e o imaginário rural, dos pampas. Ginastera, por exemplo, tirou de seu catálogo a “Sinfonia Portenha”, de 1942, e só usou elementos de tango num breve prelúdio para piano.
A história é bem conhecida. Boulanger, ao analisar ambas, louvou as "obras clássicas”, de Piazzolla, porém indicou que em suas peças populares é onde encontrava o verdadeiro caráter do compositor.
Juntemos a isso aquele ambiente parisiense que transparece nas páginas do conto “O Perseguidor”, de Cortázar, uma vida noturna tomada pelos músicos americanos do bebop, que pegaram um gênero até então dançante como o jazz e o transformavam em refinada música popular de câmara.
De volta à Argentina, Piazzolla comandaria uma revolução análoga no tango, transformando o gênero em música para ser antes escutada do que bailada.
Outras reações seriam menos bem-humoradas, e incluiriam até ameaças à integridade física de Piazzolla. Ele prosseguiu, contudo, impávido em seu "projeto crossover”. De um lado, combinando as melodias sentimentais e nostálgicas de seus tangos com harmonias ousadas e procedimentos contrapontísticos sofisticados importados da música barroca, como a fuga e similares. De outro, urdindo partituras orquestrais em que o elemento de tango fica cada vez mais evidente.
E se, empunhando o bandoneón, Piazzolla abriu caminho para sua música popular, sobretudo nos circuitos dos festivais de jazz —ajudado também pelo êxito instantâneo de “Balada para un Loco”, na voz de sua mulher, Amelita Baltar—, grandes astros da música erudita passaram gradualmente a divulgar sua música.
Os destaques iniciais eram da antiga União Soviética, onde o tango deixara ressonâncias nas décadas de 1920 e 1930, com personalidades icônicas como o violoncelista Mstislav Rostropovich —dedicatário de “Le Grand Tango”— e o violinista Gidon Kremer, que transformou as “Quatro Estações Portenhas” num equivalente de nossa época da obra homônima de Vivaldi.
Vieram nomes como os americanos do Kronos Quartet, os brasileiros do Duo Assad, Yo-Yo Ma, Daniel Barenboim. Talvez não haja exagero em considerar sua “Maria de Buenos Aires” a mais encenada ópera latino-americana do século 20. Tanto em versões originais, como em transcrições, a música de Piazzolla se tornou presente em salas de concerto de todo o planeta —como fica evidente num exame, ainda que sumário, das celebrações internacionais previstas para este ano atípico e pandêmico.
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