Por um bom tempo, Spike Lee achou que a luta pela igualdade racial nos EUA estava progredindo. Mas a situação mudou com Donald Trump. Para o diretor, o discurso reacionário do presidente abriu caminho para que grupos violentos e supremacistas voltassem a aterrorizar a população, sobretudo os afrodescendentes.
"Os Estados Unidos estavam evoluindo nos anos do presidente Obama. Mas aí entrou esse outro cara [Trump], então tudo o que Obama fez foi jogado fora. Como James Bond sendo ejetado por aquelas cadeiras propulsoras dos filmes dele", diz o cineasta, rindo. Depois, fecha a cara: "Não, não tem a menor graça. Mas você tem que rir para não chorar".
Lee falou à Folha no último Festival de Cannes, na première mundial de "Infiltrado na Klan". Destaque da Mostra, o longa, que estreia no circuito comercial em 22 de novembro, levou o Grande Prêmio do Júri no evento francês e é uma das apostas para o Oscar.
A trama se baseia na história verídica de Ron Stallworth, investigador policial negro que conseguiu uma façanha quase inacreditável nos anos 1970: tornar-se membro da Ku Klux Klan, grupo supremacista branco responsável por perseguir, agredir e matar vários afrodescendentes.
As conversas entre Stallworth e a KKK eram por telefone. Fingindo ser branco e racista, o agente ludibriou o grupo e a ele se filiou, para investigá-lo melhor.
Nas reuniões, um policial branco, Flip, se passa pelo colega. Spike Lee turbina a história ao fazer, no filme, com que Flip tenha origem judaica, dando à trama ares ainda mais absurdos, já que a Klan também é hostil a judeus.
O elenco traz John David Washington (filho de Denzel) em sua estreia como protagonista. Adam Driver dá vida a Flip, e Topher Grace interpreta o chefão da Ku Klux Klan nos anos 1970, David Duke.
Hoje aposentado, Duke voltou a ser notícia nesta semana ao dizer que detecta princípios da Klan no discurso do candidato Jair Bolsonaro (PSL). "Ele soa como nós", disse, em entrevista à BBC.
"Infiltrado na Klan" se passa nos EUA dos anos 1970, mas fala da atualidade. Spike Lee diz que, após as manifestações racistas de Charlottesville, em 2017, notou o quanto a omissão de Trump reabasteceu a energia de grupos de extrema direita como a Klan.
"Ali, ele teve a chance de unir as pessoas. Mas não fez isso. Pôde denunciar grupos terroristas intolerantes, mas não o fez. E esses grupos se sentiram estimulados."
Apesar da seriedade do assunto, o cineasta optou por falar de violência racial com humor em seu filme. Há quem ache que temas tão graves exijam tratamento mais sisudo, mas Lee discorda. "Kubrick já o fez em 'Dr. Fantástico' [1964, sobre a bomba nuclear]. Ou Billy Wilder, em 'Inferno nº 17' [1953], que se passa em um campo de concentração. Mas é difícil fazer porque é preciso encontrar o tom exato."
São outros dois clássicos, porém, que o cineasta escolheu para referenciar em pontos estratégicos de seu novo longa. "...E o Vento Levou" (1939), de Victor Fleming, e "O Nascimento de uma Nação" (1915), de D.W. Griffith. "São dois dos melhores filmes da história. Mas não na minha lista!", ri o diretor.
Lee tem seus motivos para repudiá-los. Por décadas, "...E o Vento Levou" foi lembrado por romper a barreira racial no Oscar, concedendo a primeira estatueta da história a uma pessoa negra, Hattie McDaniel, melhor atriz coadjuvante. Mas revisões mostrariam que o filme de Fleming tem vários elementos racistas. Já o longa de Griffith, um marco na evolução cinematográfica, legitima a ação da KKK.
"Quando eu estava na escola de cinema, falavam dos aspectos técnicos desses dois filmes. Mas nunca diziam como eram usados como ferramentas de recrutamento para a Ku Klux Klan. Nem de como pessoas foram assassinadas por causa deles", diz Lee.
"Os EUA se tornaram a potência que são hoje não por causa do poder nuclear, mas por causa da cultura. Dominamos o mundo por meio dela: jazz, blues, rock, cinema, TV."
O diretor acredita que a arte é capaz de mudar o mundo. Mas, pessimista quanto ao presente, volta a recorrer à cinefilia para definir o mundo em 2018. "Só me ocorre o título daquele filme de 1982, do Peter Weir: 'O Ano em que Vivemos em Perigo'. É bem essa a nossa situação atual", diz.
Infiltrado na Klan
(BlacKkKlansman). EUA, 2018. Direção: Spike Lee. Elenco: John David Washington, Adam Driver, Laura Harrier. 14 anos. Mostra: Qui. (18), às 21h15, no CineSesc; sex. (19), às 19h10, no Itaú Frei Caneca 1; seg. (22), no Itaú Pompeia 1, às 21h; sex. (26), às 18h40, na Cinesala; seg. (29), às 14h, no Itaú Augusta 1
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