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Marcelo Coelho
O dedo no nariz
A cultura cat�lica palpita de corpo em toda parte. Os quadros dos santos explodem de chagas
Nas "Confiss�es de um Poeta", Ledo Ivo relembra um dia de grande chuvarada, na pra�a da Matriz de n�o sei que cidade brasileira. Da igreja sa�a um grupo de seminaristas em excurs�o.
O aguaceiro veio de repente, e todos correram para se proteger. Todos, menos o superior da diocese. "Corre, corre, dom Fulano!", gritavam os seminaristas. Mas o prelado prosseguia no mesmo passo.
"Bispo n�o corre", sentenciou dentro da batina ensopada, pisando nas po�as com seus sapatos pretos.
Os tempos mudaram, como atesta um v�deo que circulou na internet, com o papa Francisco. Cometi a imprud�ncia de compartilh�-lo no Facebook.
Choveram protestos, at� dos leitores mais fi�is. Do que se tratava? A meu ver, nada de mais.
Sentado no banco traseiro de um carro prateado, com c�meras e rep�rteres querendo entrar pela janela, Francisco fazia uma discreta higiene no nariz.
O polegar, dentro da narina, descreveu uma r�pida meia-lua. Algo foi retirado de l�. Depois de uma breve pausa, o papa...
Sim, o papa comeu a melequinha! Compartilhei a not�cia sem coment�rio. Meu objetivo n�o era tripudiar a imagem do pont�fice. O v�deo certamente era invasivo. Mas achei bom, achei normal, gostei, sorri.
H� coisas muito piores a fazer do que ingerir esse tipo de mat�ria. Fiz isso uma vez, quando crian�a, e n�o estava sozinho na ocasi�o.
Lembro-me bem. Estava na casa de uma tia, muito cat�lica por sinal, e que tinha problemas de surdez. Talvez por isso, ela ficava �s vezes ausente da cena, sem prestar aten��o em nada. Dizia mesmo que, quando a conversa ficava chata, ela desligava o aparelho.
Sei que ela estava sentada � minha frente, com os seus olhos puros e verdes fixados em mim. Foi como se me hipnotizasse. Pus o dedo no nariz, e naquela �nica vez, experimentei o gosto --salgado, seco, sem nojo-- do que retirara l� de dentro.
Com uma risada de surpresa, ela saiu de seu transe --e eu tamb�m. Como fui capaz da proeza? Eu sabia que n�o era algo que se faz em p�blico.
Pode ser que eu precisasse certificar-me de que ela estava ali. Pode ser, tamb�m, que eu precisasse certificar-me da minha pr�pria exist�ncia. T�nhamos sido colhidos, quem sabe, numa esp�cie de vazio temporal.
Um buraco negro, v� l�, em que a nossa pr�pria exist�ncia, e a consci�ncia de estar nela, desapareceram silenciosamente. N�o era eu, n�o era ela; a impropriedade --das mais leves, afinal-- se cometera sem sujeito.
De resto, todo mundo p�e o dedo no nariz. Tive o prazer de fazer essa revela��o, j� adulto, a um menino a quem repreendiam a const�ncia nessa atividade.
S� n�o sei por que tantas pessoas fazem isso dentro do carro. Basta olhar para os lados quando o sinal est� vermelho. Alguns cantam. Outros p�em o dedo no nariz. Sabemos (me incluo nessa) que qualquer um pode nos surpreender nessa inocente intimidade.
Estar dentro do carro, mesmo com o vidro aberto, aparentemente nos torna imunes � cr�tica. O carro � o meu castelo. O teto de lata �, ainda assim, um teto. De l�, posso xingar qualquer pedestre. Por que n�o o dedo no nariz?
Os jogadores de futebol (mas n�o os de basquete ou de v�lei) fazem pior em campo; o uso de cotonetes em p�blico, embora n�o corriqueiro, conhece menor reprova��o.
Escarradeiras eram comuns nos tempos de Machado de Assis; at� recentemente, a cera do ouvido podia ser retirada com a unha do mindinho, desde que a fizessem crescer, "� catita": esse o termo.
O "processo civilizador", para lembrar o conhecido livro de Norbert Elias, imp�e crescentes disciplinas sobre as atividades corporais. Est� provavelmente errado quem pensa que a Idade M�dia era uma �poca de puritanismo; em Chaucer, Boccaccio ou Dante fala-se mais da "quest�o do corpo" do que em qualquer cat�logo de arte contempor�nea.
Mais do que deseja a austeridade protestante, a cultura cat�lica palpita de corpo em toda parte. Os quadros dos santos explodem de chagas e de sangue. Sempre achei estranho, ali�s, o guardanapo que o padre usa na missa depois de tomar o vinho. No cristianismo, de resto, Deus se fez de carne, carne que come peixe e p�o, carne que atravessaram pregos.
A imprensa cerca o papa. Ele p�e o dedo no nariz. H� muita simbologia nisso. Quem quiser que atire a primeira pedra.