Descrição de chapéu Folha, 100 Colunas Eternas

'Memórias do Cárcere' impactou profundamente Florestan Fernandes

Sociólogo analisou, em coluna de 1984, 'sentido intelectual, moral e político' da obra de Graciliano Ramos

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Um dos mais importantes autores da literatura brasileira, Graciliano Ramos (1892-1953) foi preso pela ditadura do Estado Novo quando ela ainda começava a se desenhar, no início de 1936. Sem acusação formal ou processo, o escritor alagoano foi detido em Maceió por suposto envolvimento com a chamada Intentona Comunista.

Passando por diversos presídios, incluindo a Colônia Correcional, em Ilha Grande (RJ), ele ficou preso até janeiro de 1937. Foi nesse período que começou a escrever o clássico "Memórias do Cárcere".

Publicado postumamente, em 1953, o livro narra o cotidiano de Graciliano como preso político, em condições insalubres, e relata episódios simbólicos da repressão na ditadura de Getúlio Vargas, como a deportação de Olga Benário para a Alemanha nazista.

Em 1984, foi adaptado para o cinema pelo diretor e roteirista Nelson Pereira dos Santos. E, neste mesmo ano, o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século 20, escreveu a respeito do livro e sua adaptação cinematográfica na Folha.

retrato em preto e branco de florestan fernandes em pé em uma biblioteca
O sociólogo e professor da USP, Florestan Fernandes, foi também deputado constituinte pelo PT, partido que ajudou a fundar - Folhapress

Autor de obras fundamentais da sociologia brasileira, como "A Etnologia e a Sociologia No Brasil" (1958) e "Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento" (1968), Florestan colaborou com a Folha por mais de quarenta anos, publicando textos esparsos a partir da década de 1940. Em 1989, passou a ter uma coluna fixa no jornal, que manteve até o ano de sua morte.

Quando escreve a respeito de "Memórias do Cárcere", texto que integra a série "Colunas Eternas", parte das celebrações dos 100 anos da Folha, o sociólogo vive o final da ditadura militar que se iniciou em 1964. Ao enxergar no filme o mesmo "sentido intelectual, moral e político" do livro, revela a importância de ambos para a compreensão da "substância colonial" das ditaduras, que lhes dá "a maligna capacidade de sobreviver aos que elas aprisionam e libertam".

Memórias do Cárcere

20.ago.1984

Há quantos anos li "Memórias do Cárcere" [de Graciliano Ramos]? Não me lembro. Não seria preciso ter vivido sob o inferno do Estado Novo para sofrer o impacto da grandeza daquele livro, que vincula a criação artística exemplar à ira moral e política mais consequente.

Os que falam de "literatura crítica" e de "arte engajada" quase sempre permanecem na periferia dos símbolos e na superfície da luta política. Graciliano Ramos travou o combate ao nível mais profundo da defesa da dignidade do eu e da condenação irretratável do despotismo institucionalizado. Temperamento e circunstâncias acenderam a chama do "intelectual revoltado", gerando-se assim a única obra de denúncia integral e de desmascaramento completo existente em nossa literatura.

Não voltei a ler o livro. Nem agora, que senti um ímpeto irrefreável de incentivar os leitores a não perderem a sua transposição cinematográfica. O vigor do livro, na minha memória, prende-se à revolta íntima, ao afã de denunciar e de desmascarar além e acima dos limites do inconformismo ideológico e político, de buscar uma objetividade tão intransigente e penetrante que nos lembra a "verdadeira ciência", no sentido de Marx.

Ao sobrepujar seu rancor e as humilhações sofridas, o intelectual descobre o significado da prisão e da violência que imperam em toda a sociedade brasileira, de modo a identificar o microcosmo dentro do qual fora lançado como o limite mais brutalizado e esquecido do todo, mas, ao mesmo tempo, o mais expressivo e relevador.

De um golpe, o Estado Novo e as várias franjas psicológicas, policiais, militares ou políticas da opressão mostravam-se no que eram, em sua realidade histórica específica e nas projeções que a soldavam ao passado escravista e colonial mais ou menos remoto e recente, ou seja, em sua realidade histórica "estrutural".

Em um país no qual a descolonização foi confundida com a troca de guarda na casa reinante e com a monopolização do poder pelos estratos dominantes dos estamentos senhoriais, "Memórias do Cárcere" balizava-me o aparecimento de uma nova consciência política da realidade nacional e de uma repulsa ao conformismo típica dos movimentos de rebelião, que iriam engravidar a história das "noções proletárias".

Constituía uma dificílima tarefa criadora transpor para a linguagem do cinema um livro como esse, que comoveu a nação, mas permaneceu ignorado pelos estudiosos do Brasil na sua perspectiva original mais elucidativa e provocadora, em ruptura com a "história oficial" e, especificamente, com as várias modalidades então existentes de "sociologia de gabinete" e de "ciência social acadêmica". Pela segunda vez um escritor escrevia uma obra-prima dentro do seu métier (se se tomam "Os Sertões" [de Euclides da Cunha] como paralelo), só que, agora, o produto transcendia à ordem existente como um todo e a punha em xeque. O cinema poderia responder dialeticamente a essa realização?

Só assisti uma vez ao filme de Nelson Pereira dos Santos e seus colaboradores (entre os quais a competência dos técnicos nada fica a dever à excelência dos atores). A impressão que me ficou, corroborada por uma longa reflexão crítica, levou-me à certeza de uma correspondência dialética efetiva.

O filme opera com os três níveis do livro: o psicológico e da memória propriamente dita, que focaliza as ocorrências do dia a dia; o dos acontecimentos, no qual a história também se objetiva através da memória e da experiência direta com a realidade do Estado brutal, chocante e repulsivo, retrato da sociedade de que fazia parte e daqueles que a comandavam, para os quais ele constituía uma "necessidade política"; o da "repetição da história", parcialmente visível através de ocorrência do cotidiano e dos acontecimentos, mas em sua maior parte matéria da análise crítica desmascaradora, pela qual a brutalização e bestialização do homem refletiam como a ditadura se incluía em uma cadeia de continuidades, que faziam do presente um espelho fiel do passado oligárquico, do passado escravista neocolonial e do passado escravista colonial, pretensamente desaparecidos. O que é preciso assinalar: o filme faz tudo isso pelas vias próprias do cinema, sem parasitar no talento de Graciliano Ramos nem mimetizar o portentoso quadro de referências obrigatório.

"Memórias do Cárcere", na versão cinematográfica, explora mais desenvoltamente a linguagem artística e as possibilidades que estão ao alcance do cinema de fragmentar a realidade para, em seguida, recompor o concreto nos diversos níveis em que ele aparece na percepção, na cabeça e na história dos homens.

Quem ama o livro por ele mesmo não vai recuperá-lo no filme. Quem ama as várias verdades que Graciliano Ramos enfrentou com hombridade e coragem irá ver no filme uma engenhosa e íntegra transposição do livro. Seria pouco dizer que ambos se completam.

Nelson Pereira dos Santos explica a técnica cinematográfica como Graciliano Ramos a técnica literária, como recurso de descoberta da verdade, arma de denúncia intelectual e instrumento de luta política.

Como a "sua" situação histórica é datada de hoje, o alvo imediato é, naturalmente, a ditadura atual e as condições que lhe conferem uma substância colonial inocultável. Esse é o aspecto por assim dizer genial do filme.

A atualidade das "Memórias do Cárcere" não poderia estar em algo exterior, como o "acaso" de uma ditadura ainda mais racional no uso da corrupção, da opressão e da violência institucionalizadas. Portanto, terminar o filme com as sequências que foram escolhidas para esse fim representa uma solução magistral, que confere ao filme o mesmo sentido intelectual, moral e político do livro, a mesma força de uma indignação avassaladora.

Em suma, ele se evidencia como um presente colonial, que não desaparecerá por si só ou por uma impossível ação redentora dos que tecem as continuidades do despotismo. Sair das prisões não é vencer as ditaduras. Para acabar com elas, no solo histórico da América Latina, seria preciso destruir o arcabouço colonial no qual elas se assentam e que lhes dá a maligna capacidade de sobreviver aos que elas aprisionam e libertam...

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