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Militares e indicados políticos ocupam saúde indígena e agravam crise sanitária

Coordenador armado, cloroquina e desvio de verba para Covid marcam atual gestão

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Homem indígena trajando verde e usando máscara passa por caminho estreito ao redor do qual há cruzes brancas fincadas na terra revirada; ele aponta uma delas

Cemitério em Boa Vista (RR) onde estão sendo enterrados indígenas vítimas da Covid-19, inclusive bebês Yanomami Emily Costa-25.jun.20/Amazônia Real

Tatiana Merlino
São Paulo | Repórter Brasil

A vida de Amado Menezes, liderança indígena da etnia Sateré-Mawé, do Amazonas, foi marcada por lutas. A penúltima foi contra autoridades da saúde indígena que interromperam o apoio à barreira sanitária montada na entrada da aldeia para proteger os indígenas da Covid-19.

Já a última batalha de Amado foi contra o vírus: durou 23 dias. Ele morreu em outubro de 2020 aos 69 anos. "Perdemos nossa maior liderança", lamenta o advogado Tito Menezes ao falar da morte de seu tio.

A ordem para a retirada do apoio à barreira sanitária partiu do Dsei Parintins, órgão responsável pela saúde indígena e que deveria, em meio à pandemia, proteger as comunidades.

A Repórter Brasil investigou a troca de comando, feita pelo governo de Jair Bolsonaro, nos 34 Dseis existentes no país e os impactos negativos que algumas delas vem causando na saúde dos povos originários.

Em pelo menos quatro deles houve indicações de militares ou de aliados políticos que acumulam denúncias de inexperiência, acusações de truculência na interação com as comunidades e má gestão em meio à pandemia. Dos quatro, três foram indicados durante o governo do presidente Jair Bolsonaro.

Pessoa paramentada como profissional de saúde ausculta mulher indígena, que usa máscara e está sentada em uma rede dentro de uma casa de madeira
Vacinação em território indígena atendido pelo distrito de saúde Parintins - Dsei Parintins - Amazônia Real - 7.out.20

Entre os casos mais graves, estão a de um coordenador trabalhando armado e intimidando indígenas, barreiras sanitárias removidas, desvio de verbas para o combate à pandemia e suspeita de distribuição, para as aldeias, de cloroquina —medicamento sem eficácia comprovada para combater o vírus.

“Muitos cargos têm sido ocupados por profissionais sem nenhuma especialização, seja na saúde em geral, na saúde indígena ou em povos indígenas. Isso gera um resultado que não pode ser diferente: uma piora no atendimento a esses povos”, afirma Maria Augusta Assirati, ex-presidente da Funai.

Um dos exemplos mais explícitos do aparelhamento por militares e indicados políticos, o Dsei-Leste Roraima teve cinco coordenadores num período de um ano e oito meses —a partir de abril do ano passado, no começo da pandemia.

Um desses indicados, o capitão do Exército Tárcio Alexandre Pimentel, que assumiu a coordenação do Dsei em maio de 2020, está sendo investigado pelo Ministério Público Federal de Roraima por ter distribuído cloroquina às comunidades indígenas.

“A gestão de Pimentel foi conturbada, ele não conseguiu dialogar nem com comunidades e nem com o MPF", relata Luís Ventura Fernandes, coordenador do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) Norte.

Dos cinco coordenadores, Pimentel é o único investigado. No entanto, quem mais indicou coordenadores para este distrito foi o senador Chico Rodrigues (DEM-RR).

Depois de ter ficado famoso por ter sido pego com R$ 33 mil na cueca, Rodrigues está sendo investigado pela Polícia Federal e pelo Tribunal de Contas da União sob acusação de fornecer equipamentos de combate à covid-19 superfaturados ao Dsei, favorecendo empresas comandadas por familiarese aliados.

Um avião que já foi de sua propriedade foi flagrado em um garimpo ilegal em um território indígena, conforme revelou a Repórter Brasil.

“É um absurdo ter tantas mudanças num momento tão difícil. Há problemas no atendimento e na notificação dos casos de covid. Também não há transparência sobre recursos aplicados”, afirma Fernandes, do Cimi.

Procurado pela reportagem, Pimentel não se pronunciou. Já a assessoria de Rodrigues afirmou: “Não temos conhecimento de que algum parente do senador tenha qualquer empresa ligada à área de fornecimentos de material hospitalar.”

Outro militar indicado durante a gestão de Bolsonaro, o major do Exército Francisco Dias Nascimento Filho, nomeado em julho de 2019, para coordenar o Dsei Yanomami também é alvo de críticas. De acordo com relatos de indígenas e dos próprios empregados do Dsei, Nascimento ia armado para o distrito e intimidava funcionários e representantes do movimento indígena.

Um ano depois, o coordenador perdeu o cargo. Os motivos não foramrevelados. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) informou apenas que ele "foi exonerado pois a Sesai prima pela boa gestão e pelo diálogo permanente com o Controle Social da Saúde Indígena". Procurado pela reportagem, Nascimento disse não ter nada a declarar.

Quem assumiu então, em julho de 2020, foi Rômulo Pinheiro Freitas. Sua gestão também vem sendo alvo de críticas, por falta de transparência e falhas na aplicação de vacinas.

De acordo com a Hutukara Associação Yanomami, além de problemas na vacinação pelo Dsei, não foi feita a licitação da hora-voo de helicópteros para transportar equipes de saúde e pacientes. O caso está sendo investigado pelo Ministério Público Federal. “Estamos apurando se houve falhas, especialmente diante de notícias de óbitos de crianças por Covid-19”, afirma o procurador Alisson Marugal.

A associação também denuncia tentativas de desvio de vacinas, após deputados estaduais terem solicitado a redistribuição de vacinas destinadas aos indígenas para a população do estado.

Procurado pela reportagem, Freitas solicitou que as perguntas fossem enviadas à Sesai, que não se pronunciou. O Exército afirmou que “trata-se, em ambos os casos [nos Dseis Leste e Yanomami], de militares da reserva”. E que “a Força não realizou qualquer indicação ou proposta institucional de militares da ativa ou da reserva para ocupar os cargos constantes da demanda apresentada”.

No Dsei Manaus, sobram indicações políticas e falta diálogo com indígenas.

"Os gestores que chegam não têm experiência e não conseguem levar a sério a legislação nem os contratos”, reclama Germilson Chaves, da etnia Mura, que trabalhou no Dsei de 2010 a outubro de 2020, quando foi demitido. O atual coordenador é Januário Neto, que assumiu em outubro de 2020, por indicação política. Ele é próximo do senador Eduardo Braga (MDB-AM).

"Há uma série de denúncias de que pessoas estão sendo demitidas porque não estão de acordo com a política do novo coordenador, que é muito centralizador”, afirma Pedro Silva Souza, do Cimi.

Mulher paramentada como profissional da saúde, de jaleco, máscara e touca, conversa com homem indígena vestido de amarelo que carrega uma criança, ele de máscara; atrás, há uma pequena fila de famílias indígenas com uma segunda profissional observando a  conversa dos dois
Equipe de saúde faz atendimento em aldeia Yanomami - Agência Saúde - 1.jul.20/Ministério da Saúde

De acordo com ele, desde que Neto assumiu, houve piora no atendimento do Dsei: “Pouca permanência das equipes nas terras indígenas, falta de combustível e de recurso para aluguel do barco”. Marcivana Sateré-Mawé, da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime), concorda. Para ela, falta o Dsei dialogar com as comunidades.

Procurado, Januário disse que os profissionais do distrito passam por avaliação, “sendo substituídos em caso de baixo rendimento”.

A gestão anterior, de Mário Ruy Lacerda, também sofreu críticas. Em maio de 2020, moradores de Três Unidos denunciaram a falta de apoio do Dsei Manaus quando, na região, houve contaminação de técnicos de enfermagem, falta de EPIs e de energia elétrica no principal centro de saúde da região.

Assim como Januário, Lacerda foi indicado elo senador Eduardo Braga e pediu exoneração do Dsei para concorrer à prefeitura de Manicoré em 2020. Procurado, disse ter feito “tudo o que era possível, criando inclusive, o comitê de saúde do trabalhador que foi pioneiro e foi referência para a Sesai criar em todos os Dseis”.

Por fim, no Dsei Parintins (AM), a retirada ao apoio logístico à barreira sanitária foi decidida durante a gestão de Jose Augusto Souza, conhecido como Nenga, no cargo desde 2017, que foi vice-prefeito de Barreirinha pelo PDT e é ligado ao deputado estadual do Amazonas Josué Neto (Patriota). Procurado pela reportagem, ele não se pronunciou.

Em reportagem publicada pela Amazônia Real, o Dsei alego que apoiar a barreira não seria o papel do órgão. Sem ela, os casos de Covid nas aldeias da etnia duplicaram em setembro e outubro, segundo a agência de notícias Amazônia Real.

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