Passado um ano da megaoperação policial que desobstruiu vias e prendeu traficantes na cracolândia do centro de São Paulo, a prefeitura reduziu o ritmo de internações de usuários e ainda impôs uma espécie de quarentena àqueles que abandonarem o tratamento.
Em 21 de maio de 2017, aquela ação do governo do estado pegou de surpresa até mesmo a prefeitura da capital, que teve de tirar às pressas do forno um programa anticrack que ainda estava em formatação.
O Redenção foi lançado pelo então prefeito João Doria (PSDB) enquanto usuários de drogas se espalhavam pelo centro, após as barracas onde se vendia e consumia crack terem sido retiradas.
O programa municipal primeiro bateu cabeça. A prefeitura pediu à Justiça autorização para internar dependentes químicos de forma compulsória, mas recuou diante da reação de médicos. Hoje, todas as internações do programa são voluntárias.
Agora, já sob o comando de Bruno Covas, a prefeitura não renovou o contrato com um dos hospitais que atendem dependentes químicos e vai cortar 30% das vagas para internação psiquiátrica. São 90 vagas a menos, das 300 que o programa oferecia.
O corte ocorre na Casa de Saúde São João de Deus, depois de pressão da Promotoria e de entidades de saúde, que propuseram um Termo de Ajustamento de Conduta (ainda não assinado pela prefeitura), em que pedem o encerramento de todos os contratos com hospitais —relatório elaborado em agosto do ano passado por esses órgãos constatou “rebeliões” e brigas entre grupos de internos.
Segundo o coordenador do Redenção, o psiquiatra Arthur Guerra, a Secretaria de Saúde auditou o hospital e não encontrou irregularidade. Ainda assim, o contrato não foi renovado. A justificativa de Guerra é a de que é preciso “qualificar melhor a internação”.
O custo diário por leito no São João de Deus é de R$ 170, e o valor total do contrato com a prefeitura é de R$ 5 milhões. Com o corte, a média de atendimentos caiu de 20 internações por dia para 12,8. As 90 vagas não serão contratadas em outros hospitais.
Os leitos no São João de Deus, em 8 de maio, data de último balanço da prefeitura, tinham 42% de ocupação. Nos outros dois hospitais contratados, Cantareira e Irmãs Hospitaleiras, a ocupação era de 90% e 91%, respectivamente.
O contrato encerrou-se em 20 de abril, mas foi prorrogado até 18 de junho, quando as vagas serão definitivamente cortadas. Segundo o promotor de Justiça Arthur Pinto Filho, a ideia é que o dinheiro gasto com essas internações seja investido em equipamentos de saúde já existentes da própria prefeitura.
Como as internações são voluntárias e os dependentes químicos podem desistir a qualquer momento, a taxa de reincidência é alta, segundo a prefeitura.
Para reduzi-la, a gestão decidiu proibir que os pacientes se internem novamente dentro de um mês da desistência. A justificativa de Guerra é que há desperdício de verba pública com essas reinternações.
“Nós qualificamos melhor a internação. É internado aquele paciente que deseja, que quer se tratar, e que usa a oportunidade, o recurso público, para benefício dele. Não para aquele que fica um dia e quer sair”, diz Arthur Guerra, da prefeitura paulistana.
“Nós até identificamos um número pequeno de pacientes que fazia isso de forma repetitiva”, afirma o psiquiatra. “Usava o hospital de forma inapropriada, como se fosse a porta de um hotel antigo, que fica girando”, completa.
Nathália Oliveira, presidente do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool, diz que a medida pode ser positiva se a internação deixar de ser uma coisa prioritária, “a questão é que poucas coisas têm sido ofertadas no lugar”, afirma.
“O sujeito se trata ou na rua ou na internação, porque não tem moradia social suficiente. Se corta a internação, a opção que se dá é um albergue, que não é moradia, é um pernoite”.
Guerra argumenta que os dependentes químicos ainda podem buscar internação em equipamentos do governo do Estado ou abrigo em tendas e albergues da prefeitura.
Um dos estopins para ação policial em maio passado foi a morte do socorrista Bruno de Oliveira Tavares, 34, que foi sequestrado e morto ao tentar socorrer um usuário.
Há um ano, a cracolândia tomava a rua Dino Bueno com barracas de venda de droga que funcionavam como uma feira livre. Segundo o Denarc (Departamento de Narcóticos), da Polícia Civil, que comandou a operação, os hotéis do entorno funcionavam como laboratórios, onde se tratava a droga. As barracas funcionavam como franquia: para se ter uma, era preciso esperar que alguém “passasse o ponto”, segundo o órgão.
Hoje, as vias foram desobstruídas e as barracas não existem mais —limpezas diárias são feitas para impedir a fixação de estruturas fixas. Mas o tráfico ainda é presente. Os laboratórios foram para mais longe, na zona leste. A polícia tem encontrado depósitos de droga no entorno —o último, num cortiço abandonado na rua dos Gusmões. Traficantes buscam uma pequena quantidade de droga nesses locais e levam para dentro da cracolândia em pequenas quantidades, diz a polícia.
“Hoje não é mais um território exclusivo de uma organização criminosa, este é o grande mérito”, diz o diretor do Dernarc, Ruy Ferraz Fontes.
Desde então, a polícia prendeu 1.650 pessoas na região, apreendeu 663,4 quilos de drogas, 50 armas de fogo e mais de R$ 500 mil em dinheiro, segundo a Secretaria da Segurança Pública de SP.
BALANÇO DO ÚLTIMO ANO
SAÚDE
> 300 vagas de internação psiquiátrica criadas pela prefeitura desde o início de 2017
> 90 delas serão fechadas até 18.jun na Casa de Saúde São João de Deus, porque a prefeitura não renovou o contrato
> 5.615 internações de dependentes de drogas feitas pelo programa Redenção
> 209 internados atualmente
> 12,8 internações por dia, em média, ante 20 no início do ano passado
SEGURANÇA
> 1.650 pessoas presas ou apreendidas
> 663 kg de droga apreendidos
> 50 armas de fogo apreendidas
> R$ 500 mil apreendidos
MORADIA E ZELADORIA
> 3 hotéis do programa Braços Abertos, da gestão Haddad, fechados
> 76 mil atendimentos na região da Luz, incluindo desde corte de cabelo até pernoite em albergues
> 5,3 toneladas de lixo varridas por dia na região
Fontes: Prefeitura e Secretaria da Segurança Pública
As ações tanto da polícia quanto da Guarda-Civil Metropolitana geraram queixas de moradores e frequentadores da região, que reclamam da atuação violenta dos agentes.
Na avaliação do promotor Arthur Pinto Filho, da saúde, preocupa mais a ação da Guarda, que ele chama de “truculenta e ilegal”. “A Guarda não é uma ‘PMzinha’, é totalmente diferente, não tem poder de polícia”, afirma.
O secretário de Segurança Urbana, José Roberto de Oliveira, que comanda a GCM, defende: diz que os guardas municipais agem, dentro da legalidade, para proteger os agentes públicos que trabalham na área e impedir a montagem de novas barracas.
“O trabalho da Guarda é no sentido de sempre, primeiro no diálogo, na conversa. A Guarda é reconhecida por fazer a mediação, conciliação, conversa”, diz. “Não é verdade que a Guarda age violentamente”, completa Oliveira.
A coação, dizem moradores, aumenta à medida que se aproxima a entrega de cinco prédios populares, com 914 apartamentos, em frente à praça Júlio Prestes, erguidos pelo governo do Estado. No primeiro deles, as mudanças começam já na próxima sexta-feira (25).
A prefeitura também pretende construir moradias, além de CEU (Centro Educacional Unificado) e creche, mas ainda precisa de aprovação do conselho gestor da região.
A prefeitura fechou três dos sete hotéis que abrigavam beneficiários do Braços Abertos, programa anticrack da gestão anterior, voltado à redução de danos. Em liminar, a Justiça ordenou a reabertura de dois desses hotéis, mas a prefeitura recorre da decisão.
Janaína Xavier, 38, era uma das beneficiárias do programa. Ela e o marido recebiam R$ 130 por semana de bolsa da prefeitura e viviam em um dos hotéis na região.
Com o fim do programa, alugaram um imóvel de um quarta em uma pensão na região, por R$ 1.000, onde vive com os oito filhos, além de outros cinco que ajuda a criar.
Hoje, sem usar cocaína, razão de seu vício, reclama que a atuação dos governos na região piorou a vida de quem vive na área. “Não mudou nada, só piorou. Hoje somos hostilizados. E quando tem operação policial, não consigo nem chegar em casa”, reclama.
A assistente social Cármen Lopes, 47, trabalhava no Braços Abertos desde o início do programa. Desde que foi demitida, com a substituição pelo Redenção, continua frequentando a área. Na última quarta (16), fazia um trabalho de aromaterapia com os moradores da região: fabricou com eles e distribuiu vidrinhos de óleo erva cidreira com laranja.
“O Redenção quebra o vínculo com os dependentes, é mais difícil estabelecer confiança. Eles ficam arredios. Eu não sou contra a internação, mas ela não deve ser o único caminho”, afirma. “A impressão que dá é que é um trabalho jogado fora.”
Arthur Guerra diz que a internação não é o único caminho, uma vez que o Redenção prevê desde seu início um “projeto terapêutico singular”, em que cada dependente tem tratamento individualizado.
Ele afirma ainda que o estabelecimento do vínculo é difícil por conta do vício em drogas, e nega que isso tenha se acentuado com o Redenção.
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