Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Canadá amplia suicídio assistido; saiba o que a prática fez no país

É bárbaro estabelecer um sistema burocrático que oferece a morte como tratamento confiável

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La Maison Simons, comumente conhecida como Simons, é uma importante loja de moda canadense. No final de outubro, ela lançou um filme de três minutos: um tributo melancólico, fluido e místico. Seu assunto era o suicídio de uma mulher da Colúmbia Britânica, Jennyfer Hatch, 37, que foi autorizada ao que a lei canadense denomina "assistência médica na morte", devido ao sofrimento causado pela síndrome de Ehlers-Danlos –uma série de distúrbios que afetam os tecidos conjuntivos do corpo.

Em uma entrevista citada no National Post do Canadá, o diretor comercial da Simons afirmou que o filme "obviamente não era uma campanha comercial". Em vez disso, representava um desejo do espírito público de "construir as comunidades em que queremos viver amanhã e deixar para nossos filhos".

Paciente é atendido em unidade de terapia intensiva em Toronto, no Canadá
Paciente é atendido em unidade de terapia intensiva em Toronto, no Canadá - Carlos Osorio - 15.abr.21/Reuters

Para essas comunidades e filhos, a mensagem do vídeo é clara: eles devem acreditar na santidade do suicídio medicamente assistido.

Nos últimos anos, o Canadá estabeleceu algumas das leis de suicídio medicamente assistido mais permissivas do mundo, que autorizam adultos a buscar o suicídio com assistência médica ou a eutanásia direta para pôr fim a diversas formas de sofrimento grave, não apenas doenças terminais.

Em 2021, mais de 10 mil pessoas terminaram suas vidas dessa forma, mais de 3% de todas as mortes no Canadá. Uma nova expansão, permitindo o suicídio medicamente assistido para problemas de saúde mental, entrará em vigor em março; a permissão do suicídio medicamente assistido para menores "maduros" também está sendo considerada.

Na era do populismo, há um debate intenso sobre quando uma democracia deixa de ser liberal. Mas o avanço do suicídio com assistência médica apresenta uma questão diferente: e se uma sociedade permanecer liberal, mas deixar de ser civilizada?

As regras da civilização necessariamente incluem áreas cinzentas. Não é bárbaro que a lei reconheça opções difíceis nos tratamentos paliativos, sobre quando retirar o suporte de vida ou com que intensidade lidar com a dor agonizante.

É bárbaro, no entanto, estabelecer um sistema burocrático que oferece a morte como tratamento confiável para o sofrimento e recruta profissionais de saúde para fornecer essa "cura". Embora possa haver males piores à frente, esta não é uma discussão escorregadia: quando 10 mil pessoas estão usando o sistema de suicídio medicamente assistido todos os anos, você já entrou na distopia.

De fato, segundo um longo relatório de Maria Cheng, da agência de notícias Associated Press, o sistema canadense mostra exatamente as características corrosivas que os críticos do suicídio assistido previam, desde profissionais de saúde supostamente sugerindo-o a seus pacientes até pessoas doentes que buscam alívio do estresse financeiro.

Nessas questões, pode-se ver que o suicídio medicamente assistido interage com outros problemas da modernidade: o isolamento imposto pelo colapso familiar; a disseminação de doenças crônicas e depressão; a pressão sobre sociedades envelhecidas e com baixa taxa de natalidade para reduzir seus custos de saúde.

Mas o mal não está apenas nessas interações; está lá na base. A ideia de que os direitos humanos incluem o direito à autodestruição, a ideia de que pessoas em estado de terrível sofrimento e vulnerabilidade são de fato "livres" para fazer uma escolha que acaba com todas as escolhas, a ideia de que uma profissão de cura deve incluir a morte em sua bateria de tratamentos –são ideias inerentemente destrutivas. Deixadas sem controle, elas forjarão um admirável mundo novo cruel, um último capítulo desumano para a história liberal.

Para qualquer pessoa de direita que se oponha a Donald Trump e à imundície que o cerca (mais recentemente em sua mesa de jantar em Mar-a-Lago), os últimos seis anos impuseram perguntas difíceis sobre quando faz sentido se identificar com o conservadorismo, preocupar-se com sua direção e sobrevivência.

Uma resposta gira em torno de qual futuro distópico você mais teme. Entre os "Never Trumpers" [trumpistas nunca] que abandonaram totalmente a direita, o medo avassalador é de um futuro autoritário ou fascista, uma ameaça de direita à democracia, que exige toda a resistência possível.

Mas na experiência canadense pode-se ver como seriam os EUA com o verdadeiro poder de direita rompido e um conservadorismo reprimido oferecendo resistência mínima ao liberalismo social. E o perigo distópico parece não apenas mais imediato do que qualquer cenário autoritário de direita, mas também mais difícil de resistir –porque suas características são congruentes com tantas outras tendências, seu caminho abrandado por tantas instituições poderosas.

Sim, existem liberais, canadenses e americanos, que podem ver o que há de errado no suicídio com assistência médica. Sim, a torcida mais explícita pelo alívio ainda pode inspirar reação: as reações do Twitter ao vídeo da Simons foram duras e ele desapareceu do site da empresa.

Mas sem um conservadorismo potente o equilíbrio cultural se inclina demais contra essas dúvidas. E quanto mais a descristianização avança mais forte é o impulso de ir aonde o vídeo da Simons já foi –racionalizar a nova ordem com garantias implícitas de que é isso que algum poder superior deseja.

Muitas vezes é usado como defesa do suicídio medicamente assistido o fato de que as objeções mais intensas vêm da religião bíblica. Mas os argumentos espirituais nunca desaparecem realmente, e a ordem liberal em um crepúsculo distópico ainda será infundida por algum tipo de fé religiosa.

Portanto, continuo conservador, infelizmente mas com determinação, porque só o conservadorismo parece oferecer um firme obstáculo a essa distopia –e prefiro não descobrir a natureza completa de sua fé.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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