"O pressuposto mais comum da nossa época é que, se uma coisa pode ser feita, ela deve ser feita. Isso me parece completamente falso. Os maiores exemplos da ação do espírito e da razão vêm da abnegação", escreveu o filólogo britânico J.R.R. Tolkien, autor de "O Senhor dos Anéis", numa carta datada de abril de 1956.
Como acontecia com frequência naqueles anos, ele estava respondendo às dúvidas de leitores de seu romance. No caso, uma leitora lhe perguntara se o Anel superpoderoso do livro tinha sido inspirado pela energia atômica, revelada ao mundo uma década antes pelas bombas lançadas no Japão durante a Segunda Guerra Mundial.
Não, respondeu o autor —ainda que o "poder atômico" ilustrasse um princípio mais geral que, de fato, era caro a Tolkien. "Está claro que precisaremos de alguma ‘abnegação’ no uso desse poder, de uma recusa deliberada a fazer algumas das coisas que é possível fazer com ele, ou nada vai subsistir!", exclamou ele.
Acho que não exagero se disser que temos ignorado solenemente esse princípio dos anos 1950 para cá. Desde então, a humanidade completou sua transformação na força geológica que é hoje, tornando-se a entidade que monopoliza a maior parte da matéria viva que a luz do Sol é capaz de fazer crescer no único planeta com vida do Universo conhecido. Abnegação? É de comer?
Para muitos, qualquer outro tipo de mundo que não esse é inimaginável. Mas é para isso que servem a fantasia e a ficção científica —imaginar outros mundos, como Tolkien demonstrou em sua ficção e seus ensaios. Tive um vislumbre desse outro mundo possível ao devorar um livrinho de ficção científica diferente de tudo o que já me caiu nas mãos: "Salmo Para Um Robô Peregrino", da americana Becky Chambers.
A história se passa num satélite natural chamado Panga, mas poderia acontecer na Terra do futuro. Muito antes do início da trama, os seres humanos de Panga tiveram de se defrontar com o surgimento da autoconsciência no cérebro eletrônico de seus robôs e com o uso desenfreado de seus recursos naturais (onde será que a gente já viu isso antes?).
A dupla solução foi —que o leitor me perdoe por repetir a palavra uma última vez— apostar na abnegação. Os seres humanos "alforriaram" seus robôs, que partiram para longe das cidades, aparentemente para nunca mais voltar; e simplesmente abandonaram boa parte da superfície de Panga para a natureza.
Numa "retirada estratégica", passaram a construir suas casas e infraestrutura com moléculas de origem biológica, como a caseína (não é preciso usar o Google: trata-se de umas principais proteínas do leite). A ideia é que os mesmos processos que decompõem uma árvore ou o cadáver de uma baleia possam agir sobre o que as pessoas constroem, no devido tempo —afinal, sempre haverá matéria-prima para a reconstrução.
Sem exagerar nos spoilers, creio que o título dá a pista de que o reencontro entre um robô consciente e a humanidade —representada por um monge chamado Dex— enfim acontece. E, ao conhecer melhor o novo companheiro, Dex fica boquiaberto ao perceber que os robôs escolheram... morrer. Cada nova geração robótica "nasce" das partes recicladas de seus antecessores, que decidiram deixar de existir. Não faz sentido ser a única coisa imortal numa biosfera na qual tudo o que existe está fadado à morte e ao renascimento, explica o robô.
Neste fim de semana esquisito, em que a esperança e o desespero parecem gêmeos inseparáveis, este é o meu salmo: que tenhamos a coragem de viver de outra maneira.
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