Livro bom, mas livro bom mesmo, é aquele que pode ser relido ao menos uma vez por ano, pelo resto da vida, retendo o mesmo frescor, revelando coisas novas. Aliás, "pode" é eufemismo: se o livro em questão realmente valer a pena, ele provoca na gente um impulso irresistível de releitura anual e vira um bálsamo instantâneo assim que é aberto. Nunca contabilizei as (muitas) obras que produzem esse efeito na minha cabeça, mas "Os Despossuídos", da americana Ursula K. Le Guin (1929-2018), sempre ronda o topo da lista.
Há quem descreva Le Guin como a grande mestra da chamada ficção científica "soft", ou seja, das tramas do gênero que deixariam os aspectos propriamente científicos de lado em favor de um foco maior nos dilemas humanos dos personagens. A ficção científica "soft" também daria mais espaço para as ciências "menos exatas", como antropologia e psicologia, por oposição às ciências "duras", como física e astronomia.
Tudo isso é verdade, em alguma medida, no caso de "Os Despossuídos". Mas uma das muitas virtudes da escritora é sua absoluta recusa à catalogação em caixinhas ou gavetas estanques. A ficção científica de Le Guin não é "soft", é multidisciplinar, analisando as implicações dos mais diferentes ramos do conhecimento para o que significa ser humano.
Talvez seja por isso que seus livros tenham envelhecido tão bem ("Os Despossuídos", afinal, foi escrito em 1974). Na releitura deste ano, voltei a notar como a descrição que a autora faz da relação entre o que sabemos sobre a evolução humana e o que chamamos de ética é complexa, nuançada e distante dos estereótipos que muita gente ainda carrega na cabeça.
Na trama, dois planetas-gêmeos, Urras e Anarres, representam sociedades muito diferentes. Em Urras, a desigualdade social e o autoritarismo imperam, e são refugiados dessa situação que fundam uma colônia anarquista e igualitária em Anarres. Após gerações de isolamento quase total, um brilhante físico de Anarres, chamado Shevek, é o primeiro nativo de seu planeta a visitar Urras, e o embate entre as concepções dele e as belezas e mazelas do mundo de seus ancestrais se torna uma parte crucial da narrativa.
Acontece que, numa conversa com uma mulher da elite de Urras, Shevek é confrontado com uma das antigas caricaturas do que significa a teoria da evolução. "A vida é uma luta, e quem vence é o mais forte. Tudo que a civilização faz é esconder o sangue e cobrir o ódio com palavras bonitas!", diz a moça, chamada Vea. "A lei da evolução é que o mais forte sobrevive!"
"Sim", assente Shevek, mas o que ele diz a seguir parece paradoxal. "O mais forte, no caso de qualquer espécie social, é aquele que é mais sociável. Em termos humanos, aquele que é mais ético. Veja, nós não temos presas ou inimigos em Anarres. Só temos uns aos outros. Não há como obtermos força ferindo uns aos outros. Só fraqueza."
Bem, as últimas décadas de pesquisa mostraram que foi exatamente assim que a mentalidade e o comportamento da nossa espécie evoluíram. A maioria de nós pode até dar escorregadas éticas de vez em quando, mas tudo indica que temos uma tendência bastante sólida a perceber que é fundamentalmente errado não tratar os outros como queremos ser tratados.
Os problemas mais sérios acontecem quando circunscrevemos essa regra ao "nosso" grupo e passamos a enxergar quem está fora desse círculo como menos digno de consideração. Infelizmente, essa parece ser outra tendência humana forjada pela evolução. Desfazer essa contradição é frustrante, dá um trabalho dos diabos —mas é o único caminho.
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