Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso

Dez anos depois, 7 a 1 ajuda a explicar o quanto nosso buraco é fundo

Antes de querer que o futebol mude, é preciso encarar nossos traumas sem medo, de peito aberto, criticamente

Na segunda (8) completam-se dez anos do 7 a 1, a derrota brasileira para a seleção alemã na Copa do Mundo de 2014, realizada em casa. Aproveitando a folga entre Copa América e Eurocopa, revi pela primeira vez o jogo que, desde então, foi transformado em símbolo do nosso fracasso enquanto nação.

Não é incomum nos referirmos ao 7 a 1 como simbólico do que vivemos enquanto sociedade de lá para cá. Eufóricos na esperança de um país que ascendia no cenário mundial, vivemos a ressaca mais dolorosa possível.

Somos uma sociedade de extremos. Se éramos "a pátria de chuteiras" num passado não tão longínquo, tornamo-nos o país da mais vergonhosa derrota. Houve até placares mais aberrantes em Copas, mas nenhum tão traumático.

Felipão conversa com Bernard durante semifinal da Copa de 2014 entre Brasil e Alemanha - David Gray - 8.jul.2014/Reuters

O curioso é que o trauma nacional, como todo trauma, tem a ver mais conosco do que com o adversário. Ao menos admitimos isso. Referimo-nos à derrota como "7 a 1" ou como "Mineiraço", quase sempre omitindo a nossa algoz Alemanha. É compreensível: sentimos que perdemos para nós mesmos, como se tivéssemos caminhado em direção à tragédia anunciada.

Mesmo quando "gol da Alemanha" é usado como uma ironia após um revés, geralmente com referências ao futebol e aos problemas sociais do Brasil, a culpa nunca é dos germânicos. É para nos autopunir que usamos tal exclamação.

Como bom brasileiros, somos capazes de rir de tragédias, mas temos pouca capacidade de resolver nossas chagas sociais simbólicas ou concretas. Ainda não fomos capazes de lidar verdadeiramente com o 7 a 1. Nesse sentido, é espantoso que não haja no Brasil nenhum livro de análise daquela derrota.

Não somos um país de leitores, é fato. Mas outros traumas nacionais têm sido analisados por nossos escritores. Há interessantes reflexões sobre a Lava Jato, análises densas sobre a queda de Dilma Rousseff, livros sobre a história do STF, anotações interessantíssimas sobre o governo Bolsonaro, ponderações sobre a Covid-19 no país etc. As prateleiras das livrarias estão cheias de análises pertinentes desses eventos traumáticos. Mas nada sobre o trauma futebolístico.

Há muitas análises sobre o 7 a 1 na internet. Há comentários acusatórios e vídeos feitos no calor da hora e a posteriori. Mas nada denso como um livro que friamente analise o que de fato ocorreu. Enquanto o Brasil se rebaixa na sua autocompreensão, a Alemanha fez mais um gol. Em 2015, um ano após o jogo, o jornalista alemão Christian Eichler lançou o livro "7:1 – Das Jahrhundertspiel" —7 a 1, o jogo do século, infelizmente até hoje sem edição em português.

Nesta obra o especialista defende a tese de que o 7 a 1 foi importante para os alemães mudarem a percepção sobre a própria seleção. Desde que ganharam a primeira Copa, os alemães sagraram-se campeões contra adversários muito melhores, como a Hungria, em 1954, e a Holanda, em 1974.

Em 1990, ano do tricampeonato alemão, o que se viu foi uma Copa feia, de baixíssimo número de gols marcados, e o título foi obtido por meio de um pênalti sem graça contra a Argentina. Foi só em 2014 que, segundo Eichler, os alemães puderam finalmente se orgulhar de sua seleção, claramente a melhor da Copa.

Essa é uma versão alemã sobre o 7 a 1, uma interessante tese em livro sobre como o placar ajuda a explicar um sentimento nacional. E qual a nossa tese?

Se não há nenhum livro que nos proporcione uma tese brasileira sobre a derrota traumática, no campo dos filmes e documentários estamos praticamente na mesma toada. Sobre o 7 a 1 conheço apenas um documentário, de restrita circulação.

É "A Reinvenção do Futebol Arte", de Eduardo Rajabally, lançado em 2018 pelo canal pago ESPN. Poucos de fato conhecem esta interessante obra, infelizmente. Esse desconhecimento diz muito sobre como nós não queremos olhar de fato para nossos traumas e lidar com eles a sério.

O chiste, a piada, já dizia Freud, pode ser uma forma de recalcar nossos mais recônditos segredos. Desde 2014 o futebol brasileiro patina na mediocridade, sem conseguir estar de pé de igualdade com as mudanças do futebol mundo afora. Até quando apenas rir disso será nossa sina?

Antes de querer que o futebol mude, é preciso encarar nossos traumas sem medo, de peito aberto, criticamente. Caso contrário o trauma se repete como tragédia anunciada, pela própria ignorância em se lidar com suas reminiscências.

Atualmente o Brasil está em sexto lugar na classificação das eliminatórias para a Copa de 2026, atrás até da Venezuela. Na Copa América não vimos grandes atuações que animem o torcedor. Não espanta que o entusiasmo pela seleção não seja mais o mesmo de outrora. O trauma nacional segue atuante, recalcando nosso potencial.

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