Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Descrição de chapéu
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Caetano Veloso conta moedas

Derrota do tropicalista na justiça é passo na luta contra a patrimonialização da cultura brasileira

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Quem é o dono do samba? E da Semana de 22? Quem é o dono da bossa nova? E da Jovem Guarda? Essas perguntas podem parecer despropositadas, pois a resposta é óbvia: ninguém é dono de um movimento cultural, visto que a cultura brasileira pertence ao povo brasileiro. Mas não é assim que pensam Caetano Veloso e Paula Lavigne.

Eles entraram com um pedido de indenização de R$1,3 milhão depois de a grife nacional Osklen lançar uma coleção inspirada no tropicalismo. Caetano e Lavigne demandavam a retirada de lojas físicas e virtuais de toda a coleção Brazilian Soul que trouxesse os nomes "Tropicália" e "tropicalismo". O crime da Osklen foi não ter pedido ao painho Caetano a devida benção.

O cantor e compositor Caetano Veloso participa de um debate sobre o filme "Tropicália", de Marcelo Machado, no cinema Ponto Cine, no Rio de Janeiro, em 2012. Caetano é um dos protagonistas deste documentário - Leonardo Wen/Folhapress

O juiz Alexandre de Carvalho Mesquita concluiu o processo na terça-feira (18) afirmando que Caetano não tem "absolutamente nenhuma exclusividade sobre a Tropicália". E ainda condenou o baiano a pagar os honorários e os custos processuais da Osklen.

Espanta que um tropicalista, defensor da polissemia estética e poética e das liberdades políticas durante a ditadura, tenha defendido tamanha barbaridade. O ridículo da proposta fica ainda mais visível quando se transporta a discussão para outros gêneros. Imagine se Zeca Pagodinho quiser se apossar do termo "pagode" e apitar quem pode ou não se vincular ao termo. Poderia Anitta tomar para si o funk e proibir um camelô de lançar um short com o nome do gênero musical estampado no tecido?

Ninguém duvida que o baiano foi o cérebro motor do movimento cultural de maior importância no Brasil desde a Semana de 1922. Mas daí a querer sentar no trono e determinar (e condenar) quem pode ou não se associar ao tropicalismo é de um patrimonialismo mesquinho.

A batalha legal da sociedade contra o painho tropicalista é marco que deve ser contextualizado historicamente. Só por meio da história para compreender como um gênio brasileiro, quase sempre sensato, tornou-se um contador de moedas patrimonialista.

Durante décadas, os tropicalistas Caetano e Gil não foram os ricos artistas que são hoje. Hippies, sem habilidade para lidar com finanças, nunca viveram privações, mas tampouco tinham vidas luxuosas. Eram artistas pós-modernos mais interessados nas liberdades e nas desconstruções estéticas do que no vil metal.

Foram as respectivas mulheres Flora Gil e Paula Lavigne que, ao se tornarem empresárias dos baianos, conseguiram com grande mérito transformar em cifrões a fama e respeito que ambos tinham na cultura brasileira. No entanto, o sucesso empresarial parece ter subido à cabeça, e tudo passou a ser visto como produto potencialmente lucrativo.

O mais icônico momento desta insanidade patrimonialista aconteceu em 2015, quando Caetano engajou-se com sua mulher na militância contra as biografias não autorizadas. A dupla criou o grupo Procure Saber ao lado de Gil, Chico, Milton, Djavan, Roberto e Erasmo Carlos e demandava, além de justa remuneração de direitos autorais, a censura a livros que não passassem pelo crivo patrimonialista dos artistas. Foram ao Congresso Nacional, fizeram lobby entre pares e militaram em programas de TV pela censura prévia a obras sérias, que traziam verdades incômodas, sob o argumento de que biógrafos ficavam ricos a suas custas. Quem dera um país iletrado como o Brasil desse lucro a quem escreve!

Na época, Roberto Carlos havia censurado seu biógrafo, Paulo Cesar de Araújo. Em 2007 a justiça havia confiscado a biografia "Roberto Carlos Em Detalhes", e o cantor pediu, além de indenização, a prisão do autor. Repito: a prisão! Caetano e Lavigne aderiram à pauta censora de Roberto, que argumentava que sua biografia era seu patrimônio. Em 2015 o livro de Araújo continuava censurado, e o Procure Saber queria controlar quem poderia escrever livros e, sobretudo, fazer filmes e documentários sobre eles.

Ainda mais grave, Roberto Carlos pediu a proibição do livro "Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude", obra da pesquisadora Maíra Zimmerman, um trabalho sério de análise sobre o movimento cultural dos anos 1960 e suas implicações culturais. Caetano apoiou o rei absolutista.

Por fim, os patrimonialistas da MPB foram derrotados em decisão unânime do STF em 2015, que consolidou o entendimento favorável à existência de biografias mesmo não autorizadas. Vale ler o magnífico "O Réu e o Rei: Minha História com Roberto Carlos, em Detalhes", de Paulo César de Araújo, para um relato detalhado dessa importante batalha da cultura brasileira contra nossos mesquinhos heróis da música popular.

Por tudo isso espanta que Caetano Veloso e Paula Lavigne tenham entrado na justiça contra a Osklen. Não aprenderam nada com tudo o que aconteceu? Triste é constatar que o gênio tropicalista se perde contando cifrões quando seu legado é maior do que qualquer bolada em dinheiro. A derrota de Caetano nos tribunais é mais um passo na luta contra a patrimonialização da cultura brasileira. Aos trancos e barrancos, vamos avançando!

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