Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Descrição de chapéu
Todas aborto

Interromper serviço de aborto público é uma irresponsabilidade médica

É chocante que um procedimento médico referendado pela OMS seja proibido pelas autarquias brasileiras

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É muito grave a decisão do Conselho Regional de Medicina de São Paulo de suspender o registro de duas médicas atuantes no Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da capital, referência no atendimento de casos de aborto previsto em lei.

A suspensão foi de seis meses, pois as médicas teriam realizado procedimentos médicos de assistolia fetal, indicado pela Organização Mundial de Saúde em casos de gestação acima de 22 semanas.

Ilustração de uma figura feminina, sentada à mesa, ela usa um jaleco branco, tem um estetoscópio junto ao pescoço e está fazendo uma anotação em uma prancheta azul
Aline Bispo/Folhapress

Mais grave ainda é o fato de o Conselho Federal de Medicina, o CFM, ter recorrido da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que, em liminar, determinou a suspensão de todos os processos judiciais e administrativos contra médicas e médicos até o julgamento final da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1.141). No centro da discussão está a resolução do próprio CFM que, sem previsão legal e poder para tanto, proibiu que médicos realizem esse procedimento médico.

Como se sabe, o aborto é permitido no Brasil em alguns casos, sendo a gravidez decorrente de estupro a mais conhecida. Há algumas semanas, discutimos nesta coluna sobre como o estupro é o medo mais presente na memória coletiva das mulheres e sua sombra molda nossa vida em inúmeros aspectos, como não sair de casa sozinha, vigiar a própria roupa, entre outras preocupações que inexistem para homens.

Numa sociedade machista, as mulheres são julgadas quando vítimas de violência sexual. Por essa e tantas outras razões, o estupro é infamante e ao seu redor existe muita subnotificação. Ou seja, muitas mulheres são estupradas e não dizem que foram. Outras só vão dizer depois de um tempo. Vale dizer que, sobretudo quando se é jovem, pode se levar anos para o entendimento de que a violência sexual sofrida foi uma prática de estupro.

Então, frente a uma gestação decorrente de estupro, há o enorme trauma que pode afetar de forma dramática a saúde mental da mulher, como também se leva tempo, por vezes mais que 22 semanas, para enfrentar o medo, a violência e a vergonha e dizer para pessoas desconhecidas —profissionais da saúde e da segurança pública— o ocorrido.

É cruel, em um cenário como esse, vitimizar de novo quem já está em uma situação delicada. Afastar médicas em hospital de referência é tentar implodir um espaço que deveria ser seguro e passa um recado muito problemático a outros hospitais no país.

Isso porque a resolução produz efeitos muito além do Cachoeirinha, e são comuns denúncias sobre infinitos procedimentos burocráticos a desestimular levar o direito adiante. Segundo noticiado na coluna Mônica Bergamo, uma mulher foi forçada por um médico a ouvir os batimentos cardíacos do feto e teve o procedimento negado em três hospitais. Um verdadeiro show de horrores.

E espanta ser uma instituição da classe médica a fazer essa cruzada, justamente uma associação que deveria estar ciente das dificuldades do exercício da medicina em espaços de atendimento a pessoas vulnerabilizadas.

Do ponto de vista da ciência médica, é chocante que um procedimento médico referendado pela Organização Mundial de Saúde, bem como por diversas instituições médicas estrangeiras, seja proibida pelas autarquias brasileiras que deveriam zelar pelo conhecimento. Se fosse uma instituição religiosa, vá lá, mas a própria instituição da medicina brasileira?

É tão absurdo quanto pensar na hipótese esdrúxula da mesma instituição se posicionar contra a vacina, ou defender, na contramão do consenso internacional, que remédio para verme é o ideal para tratar Covid. Quando a proibição do procedimento médico é injustificada, ilegal e incoerente é sinal de que a ciência saiu por uma porta e o moralismo político entrou por outra.

Nesse sentido, lamentável é o mínimo a se dizer quando o exercício da medicina pelas profissionais e a saúde mental e física das mulheres atendidas sejam barganhados em disputas ideológicas e partidárias que estão à margem da lei que protege a mulher vítima de estupro.

Um conselho de ética de medicina age de forma antiética quando o sigilo das pacientes é violado para fundamentar punições sem base legal. Também é antiético interromper, de forma direta ou indireta, como pelo afastamento das médicas, um serviço público de atendimento à população. Trata-se de uma irresponsabilidade que, essa sim, deveria ser investigada e exemplarmente punida.

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