Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Descrição de chapéu indígenas

A obra invisível no centro da floresta

Subcomissário da Grande Exposição Universal viaja a aldeia para avaliar trabalho 'que não se deixava apreender'

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Não estavam disponíveis nem o curador nem o comissário para o Sul Global, seus superiores no organograma da Grande Exposição Universal, tanto que sobrou para ele, subcomissário para a Arte dos Povos Originários, a missão de avaliar uma obra "que não se deixava apreender". Tomou a descrição por metáfora, é claro. Na pior das hipóteses, se a apresentação da obra (e no caso de ela vir a ser selecionada) fosse demasiado acanhada ou discreta, ele ofereceria aos indígenas o recurso a técnicas mais chamativas (e exógenas, por que não?), como a tinta acrílica ou a folha de ouro.

Pôs na bagagem todo o material de que pudesse precisar nos confins do planeta, no centro da floresta. "Tudo neste mundo depende da perspectiva." O subcomissário tinha adotado a frase como lema, havia anos, quando ainda era estagiário, preservando sob a aparência relativista e antropológica sua alma eurocêntrica, sua ambição e o lugar central da perspectiva na arte ocidental. Havia chegado a subcomissário e contava chegar a curador-geral em poucos anos.

Vista aérea da floresta amazônica em Manaus - Bruno Kelly - 24.out.22/Reuters

Foram 15 horas de avião, mais seis na caçamba de uma caminhonete e mais três de voadeira por um labirinto de rios, o último trecho de dois ou três quilômetros de terra vencido a pé. Estava exausto quando chegou à aldeia. Não tinha condições de ver nada, ele se desculpou com seus anfitriões. Preferia dormir e acordar revigorado para a avaliação da obra no dia seguinte.

Passou o dia seguinte caminhando pelo mato, guiado por seus anfitriões até lugares onde não havia nada além de mato. Pararam apenas para comer e voltaram para a aldeia no fim do dia, sem que o comissário tivesse visto nenhuma obra, embora estivesse descansado e preparado para vê-la, como anotou em seu caderninho de notas. O dia seguinte foi igual. E o seguinte. E o seguinte. A exaustão foi aumentando e se confundindo com a raiva.

"Cadê a obra?!", o subcomissário explodiu no final do quarto dia, para espanto de seus anfitriões, que se sentiram ofendidos e injustiçados, com razão. Afinal, não haviam feito outra coisa nos últimos dias além de levá-lo para cima e para baixo, para ver a obra de diferentes ângulos e perspectivas, mesmo se ele não a visse.

O subcomissário teve um ataque de nervos ao ouvir a resposta do xamã, que procurava acalmá-lo ao pontificar sobre a radicalidade artística do invisível.

"Que merda é essa?!! Quem é que vocês pensam que são?! Quem é que vocês acham que estão enganando?!"

Mas os anfitriões não sabiam do que o subcomissário estava falando.

No quinto dia, como nos anteriores, voltaram com o subcomissário ao lugar da obra, mas dessa vez ele tirou um facão da mochila e investiu contra o mato, derrubando plantas e arbustos, como Dom Quixote capinando o terreno, sob os olhares perplexos de seus guias. Não parou de desferir golpes de machete contra a vegetação até desmaiar de cansaço e calor. Foi carregado de volta para a aldeia, onde passou três dias de cama, se recuperando.

Nesses dias, o subcomissário começou a delirar. Tecia comentários sobre o mercado de arte. Exortava os indígenas a se sobressair com cores vistosas: "Estão pensando o quê? A obra precisa de visibilidade! Estamos falando de concorrência, da Grande Exposição Universal, a maior reunião de arte do planeta!".

No nono dia, enquanto o subcomissário dormia na rede, o rapaz encarregado de zelar por ele também cochilou e quando deu por si já não havia subcomissário.

Conforme se aproximaram do local onde alguns dias antes ele avançara contra o mato, empunhando o facão, encontraram a floresta toda pintada de cores absurdas e cintilantes, assim como o corpo do subcomissário, dourado, coberto com as folhas de ouro com as quais ele pensara em fazer sobressair "a obra que não se deixava apreender", caso fosse demasiado acanhada ou discreta.

O subcomissário reinava como a estatueta de um deus pré-colombiano brilhando no centro da floresta. No relato que deixara escrito em seu caderninho enquanto delirava, ele pintara os indígenas a seus pés, a adorá-lo, depois de o terem encontrado. Não foi bem o que ocorreu.

Assim que recebeu a notícia da loucura e do suicídio do subcomissário, o curador-geral exigiu fotos com as quais pudesse reproduzir a cena da floresta pintada e do deus de ouro, agora como instalação decolonial, dando enfim visibilidade à obra invisível. "O que não se explica não existe", disse no dia da inauguração da Grande Exposição Universal, aplaudido de pé por artistas, jornalistas, marchands e autoridades.

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