Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso
Descrição de chapéu transição de governo

Conflitos morais

Após polêmica com jatinho, Lula voará em céu que não é de brigadeiro

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A recepção foi de ídolo no Egito, mas santo de fora não faz milagre em casa. Lula enfrentará demônios domésticos. Embora sua volta não seja redonda, conflitos abertos nos primeiros mandatos se projetam no terceiro. Um diz respeito à moralidade e é de dupla face.

A moral pública pegou carona no jatinho e trouxe na mala o bordão dos anos petistas, a corrupção. O tema foi semeado pelo mensalão e cultivado pela Lava Jato, que lhe deu contorno moralista, ao admitir qualquer meio para alcançar sua utopia, a política imaculada.

No processo, deslocou-se a atenção nacional da desigualdade para a moralidade pública. Em vez de encarar a primeira, problema estrutural, o país se concentrou, por anos, na segunda, focalizando o comportamento de indivíduos.

Lula na COP27, realizada no Egito - Mohammed Salem/Reuters

Lula voltou disposto a inverter a equação. Tarefa difícil. O discurso anticorrupção capturou muitos, a votação de Bolsonaro o mostra, apesar de o finado governo cozinhar negócios privados e interesses estatais na mesma panela. Deste ângulo da moral pública, o voo caroneiro foi de risco.

O fósforo, na moral privada, foi a camisa da primeira-dama no Fantástico, mas não é só o preço da indumentária o que inflama. O figurino inteiro de Janja é oposto ao de Michele. Apesar do sucesso na posse, dada a simpatia e a inovadora tradução em libras, a senhora Bolsonaro foi logo posta na sombra e na linha. Vive a pão de ló machista e só saiu do lar a chamado, ponte com evangélicos e o eleitorado feminino. Sua versão do primeiro-damismo é a da ajudadora do marido, o autoproclamado imbrochável.

Janja, de seu lado, foi à entrevista de estreia envergando estampa com o mapa brasileiro estilizado, em peça de marca sustentável. Traz consigo fé de raiz afro e a batalha à violência de gênero. No feminismo segue a trilha Ruth Cardoso. Mas ao contrário da antropóloga discreta, a socióloga exibe personalidade vibrante. Sua palha vai atiçar o conflito moral, com endosso do presidente, que no discurso da vitória deu a letra: "lugar de mulher é onde ela quiser".

A liberdade —ou o controle— na gestão do corpo será pomo de discórdia, mesmo que o governo se cale no aborto, dada a maioria conservadora no Congresso. O assunto incendeia os celeiros opostos. Em vídeo memificado, senhoras enfileiradas, embandeiradas e em jogralzinho, reiteraram a inspiração na Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 1964. Movimentos feministas e LGBTQIA+, de sua parte, pressionam o novo governo a dilatar direitos sexuais. Os lados se engalfinham na arena da moralidade privada.

Tem se celebrado o retorno à normalidade com Lula, mas o terceiro mandato não será uma viagem ao passado, ao menos neste tema. Os anos Bolsonaro intensificaram a polissemia de "corrupção", aplicada ao estado como aos costumes. Ao evocar a moralidade, já não se sabe se quem fala se refere à lisura na vida pública ou ao controle de comportamentos individuais. Moral privada e moral pública viraram duas faces do mesmo rosto.

Os movimentos tradicionalistas exploram a ambiguidade, usando um só metro moralista para tratar de família e estado. Estão longe de ser maioria e são meio alucinatórios, mas vocalizam princípios da moral tradicional bastante disseminados. E são mais potentes, numerosos e organizados do que há 20 anos —além de bem financiados. Lula terá que ser ele mesmo um avião para voar neste céu, que não é de brigadeiro.

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