"A guerra não é um esporte, a ser decidido numa partida rápida numa faixinha de terra disputada -- a guerra é uma teia, que se estende até as partes mais distantes do mundo, arrastando a todos para dentro de si. Hei de ensinar isso a ele antes que deixe o meu templo." As palavras altissonantes vêm da boca da deusa Calíope, uma das Nove Musas -- a Musa da eloquência e da poesia épica. Essa versão de Calíope -- indignada, irônica, mordaz -- está em "Mil Navios para Troia", livro da classicista britânica Natalie Haynes que chegou recentemente ao Brasil.
Sou suspeito para falar, já que sou admirador de carteirinha dos demais livros e do podcast de Haynes, sobre os quais a entrevistei alguns meses atrás para esta Folha. Seja como for, confiem em mim: seu livro sobre Troia é um golaço. Arrisco dizer que talvez seja o mais emocionante na excelente safra de obras recentes que revisitam a mitologia grega nos últimos anos, entre os quais se destacam ainda os livros de Madeline Miller, como "Circe" e "A Canção de Aquiles".
Haynes não está interessada em "glória", como a citação acima deixa entrever. Sua ênfase é no custo humano da guerra e nos dramas íntimos e pessoais que provoca. E a voz da musa Calíope -- impaciente com os poetas épicos que querem mais uma vez glamourizar a carnificina e se coroar de louros graças à sua inspiração divina -- dá o tom da narrativa, junto com diversas outras vozes femininas.
Uma das inspirações para isso tem um pedigree clássico impecável. São as "Heroides", cartas imaginárias escritas pelas grandes mulheres da mitologia helênica para seus maridos compostas pelo poeta romano Ovídio, provavelmente no século 1 a.C. Uma das cartas mais famosas dessa coleção, a da paciente Penélope para o viajante Odisseu/Ulisses, inspira o "gran finale" do livro. Leiam.
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