Eu sei que às vezes parece que só se fala de livros neste blog, e a culpa é toda minha, já que de fato passo a maior parte das horas despertas lendo (ou escrevendo enquanto leio). Peço, porém, a indulgência do leitor para falar de mais uma obra, ainda inédita no Brasil: "The Archaeology of Loss" ("A Arqueologia da Perda"), da britânica Sarah Tarlow.
Como os leitores do blog provavelmente sabem, costumo escrever com frequência sobre descobertas arqueológicas, mas é a primeira vez que vejo a arqueologia ser usada como metáfora literária para a relação da nossa espécie — e, em particular, a de um ser humano muito concreto e específico, a autora do livro — com a morte.
Tarlow é arqueóloga e professora universitária e, alguns anos atrás, perdeu o marido e pai de seus filhos, Mark, para uma doença neurodegenerativa que não chegou a ser diagnosticada para valer. Os últimos anos de Mark foram ensombrecidos pela mobilidade reduzida, por disfunções sensoriais cada vez mais frequentes, pela dor e por uma raiva crescente que respingava cada vez mais na própria família do também arqueólogo.
Sarah e Mark se amavam muito, mas passaram boa parte desses últimos meses lançando palavras duras um contra o outro. O marido, que mal conseguia sair da cama sozinho, cometeu suicídio com uma overdose de medicamentos quando a esposa e os filhos foram passar alguns dias fora de casa.
É claro que, em larga medida, o grande tema da arqueologia é a morte: nada é mais informativo sobre a vida de alguém que habitou a Terra há milhares de anos do que os restos mortais dessa pessoa. A arqueologia também exige e cultiva uma tolerância a diferentes probabilidades, incertezas e diferenças de interpretação a respeito do que "realmente aconteceu" no passado – um limiar de indecisão que, de certo modo, espelha o mistério em torno da doença de Mark.
Mas o grande elo aqui é que Tarlow é uma especialista na maneira como as pessoas lidam com a morte – no caso, por exemplo, de indivíduos executados publicamente e suas famílias – nos períodos mais recentes da história britânica, do fim da Idade Média até o século 19. Ela se debruça especificamente sobre como usar indícios materiais para reconstruir os sentimentos de perda e dor no passado. E é claro que isso transborda para a maneira como ela lida com o próprio luto e com a ideia medieval e renascentista de uma "ars moriendi" – de uma "arte de morrer".
O impacto do livro, do meu ponto de vista, foi magnificado pela experiência de lê-lo como audiobook, na voz da própria Sarah Tarlow. Diante da maneira como a morte fica oculta e marginalizada para muita gente no mundo de hoje, o livro é um antídoto potente e uma janela de reflexão crucial, por mais dolorida que seja.
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