Tempos atrás, tive o prazer de resenhar para esta Folha a nova tradução brasileira do poema épico em inglês antigo "Beowulf", feita pelo historiador Elton Medeiros. Embora tenha abordado vários aspectos dessa obra monumental no primeiro texto, um deles merece ser tratado à parte aqui no blog: a maneira como a narrativa do poema trata a fusão de elementos pagãos e cristãos.
Os personagens lendários que aparecem no "Beowulf" fazem parte do passado distante dos povos germânicos do norte da Europa, quando esses grupos ainda eram politeístas e estavam longe de se converter ao cristianismo. No entanto, o autor (anônimo) do poema claramente está escrevendo na Inglaterra cristã, antes da invasão normanda do ano 1066. E o interessante aqui é como ele lida com a tensão entre esse passado politeísta e a nova fé dos povos germânicos: colocando a figura de Caim, o filho assassino e amaldiçoado de Adão e Eva, em posição de relevo.
Além das figuras divinas do paganismo germânico, mais conhecidas entre nós (por obra e graça da Marvel, ultimamente) com seus nomes de Odin, Thor, Loki etc., as crenças dos antigos povos do norte da Europa eram repletas de outras criaturas sobrenaturais, como os elfos ("ylfe", em inglês antigo) e os gigantes ("eotenas"). O autor do poema "Beowulf" não joga fora essas figuras, mas atribui a elas um pedigree bíblico, afirmando que eles eram descendentes de Caim.
É possível que a ideia tenha sido sugerida pelo fato de que também há menções a gigantes antigos no texto da própria Bíblia hebraica. Seja como for, a ligação com Caim também aparece no caso do monstro Grendel e de sua terrível mãe subaquática, ambos derrotados em combate (com o perdão dos "spoilers") pelo herói-título do poema, o jovem Beowulf. Embora Beowulf e os demais nobres do passado venham de um período pagão, o autor da obra os retrata como "monoteístas naturais", adorando a Deus de forma parecida com a dos patriarcas bíblicos.
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