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Caixas de conversão* * Agradeço os comentários feitos pelo professor Fernando de Holanda Barbosa.

Currency board

Resumo

Este artigo discute alguns aspectos dos conselhos monetários. Analisa a formação dessas instituições, as experiências históricas de Cingapura e do Brasil e a proposta do currency board de Lara Resende.

Palavras-chave:
Currency board; emissão de moeda; estabilização

Abstract

This paper discusses some aspects of currency boards. It analyzes the formation of these institutions, the historical experiences of Singapore and Brazil and Lara Resende currency board proposal.

Keywords:
Currency board; money supply; stabilization

1. INTRODUÇÃO

A caixa de conversão ou currency board é uma instituição de emissão monetária que foi característica das colônias britânicas. Esse tipo de instituição continua existindo em Cingapura, Hong-Kong e Brunei. Como no início da existência das caixas de conversão a moeda-lastro possuía conversibilidade em ouro, há uma interposição de ideias entre o padrão-ouro e as caixas de conversão. A rigor, o padrão-ouro existe quando o lastro da caixa de conversão, ou seja, a obrigação de troca, é pelo metal. A caixa de conversão pode possuir ou não lastro em ouro, podendo inclusive possuir lastro em moeda fiduciária, como hoje ocorre nos países que mantêm essa instituição.

Com o Plano Cavallo de dolarização da economia argentina posto em execução em 1991 e a proposta de André Lara Resende (1992RESENDE, A.L. (1992). “O Conselho da Moeda: um órgão emissor independente”. Revista de Economia Política, 12 (4), out.-dez./1992.) para a criação de um órgão emissor independente, as caixas de conversão voltam a ganhar espaço na discussão acadêmica. Este trabalho analisa o funcionamento das caixas de conversão, a experiência histórica do Brasil e de Cingapura e a proposta de Resende (1992RESENDE, A.L. (1992). “O Conselho da Moeda: um órgão emissor independente”. Revista de Economia Política, 12 (4), out.-dez./1992.).

A seção 2 analisa o surgimento e a operacionalização da caixa de conversão. A seção 3 discute as críticas e elogios a essa instituição. As experiências históricas de Cingapura e do Brasil são descritas nas seções 4 e 5, respectivamente. A seção 6 sintetiza a proposta de Resende (1992RESENDE, A.L. (1992). “O Conselho da Moeda: um órgão emissor independente”. Revista de Economia Política, 12 (4), out.-dez./1992.) e as críticas de Mario Henrique Simonsen a essa ideia. A seção 7 é dedicada aos comentários finais do trabalho.

2. DAS CAIXAS DE CONVERSÃO

A principal característica de um sistema de caixa de conversão (currency board) baseia-se na garantia de troca a uma taxa fixa entre a moeda nacional e a moeda estrangeira lastreadora da caixa. Para realizar essa função, a caixa tem que possuir em seu ativo títulos realizáveis na moeda-lastro em no mínimo l00% do valor da emissão de moeda local. É óbvio, então, que não há caixa de conversão, stricto sensu, emissora de moeda fiduciária. Um balanço simplificado de uma caixa de conversão seria o do Diagrama l.

DIAGRAMA 1
Caixa de conversão - Balanço simplificado

É interessante notar que uma caixa de conversão não possui em seus ativos o crédito interno líquido (base monetária - reservas dos bancos na autoridade monetária) e, se o lastro for de exatos 100%, também não possuirá patrimônio líquido.

O Diagrama 2 é uma demonstração de resultados simplificada da caixa de conversão.

A superioridade da caixa de conversão quando comparada com a livre circulação da moeda-lastro no país pode ser entendida observando-se esse diagrama. Caso o país abrisse mão da emissão de moeda, simultaneamente estaria abrindo mão das receitas de senhoriagem. No caso de uma moeda lastreada em uma moeda estrangeira, o ganho de senhoriagem é o total de juros nominais percebidos pelas aplicações das reservas. Essa senhoriagem é inferior àquela potencialmente recebida em um sistema fiduciário (poder de compra da moeda-custo de impressão da moeda), mas é superior à circulação da moeda estrangeira, situação na qual o país estaria cedendo as receitas de senhoriagem para o emissor.

DIAGRAMA 2
Caixa de conversão - Demonstrativo de resultados

A obrigação de troca das moedas é, em última instância, da caixa de conversão, mas esta, em geral, impõe limites operacionais mínimos para realizar a troca. Sendo assim, o sistema bancário realiza o câmbio, mantendo uma diferença entre as taxas de compra e venda que cubram os custos da troca. As funções principais de uma caixa de conversão são: (i) distribuir os lucros da senhoriagem, (ii) estabelecer o porcentual das reservas-lastro, (iii) executar política de investimentos da reserva-lastro e (iv) estabelecer regras e padrões para a moeda circulante no país.

A conversibilidade entre as moedas é estrita, ou seja, não são conversíveis depósitos bancários ou outros ativos financeiros em moeda local. Se o detentor de um desses ativos desejar a conversão, ele tem, primeiro, que trocá-lo por moeda doméstica.

As taxas de juros do país que tem sua moeda emitida por uma caixa de conversão convergem para a taxa de juros do país da moeda-lastro. As possíveis disparidades entre as taxas de juros interna e externa se justificam pela existência de dois riscos: (i) o risco da insolvência do emitente da obrigação e (ii) o risco do rompimento da regra de conversão.

A garantia de lastro integral coloca um limite superior à emissão monetária, que é o total de reservas da caixa de conversão. Não havendo emissão fiduciária está garantida a disciplina fiscal do governo. O Estado passa a ser um agente econômico igual a empresas e a pessoas, tendo que respeitar sua restrição orçamentária e sua capacidade de endividamento sustentável.

O princípio da caixa de conversão já estava contido no Bank Charter Act britânico de 1844, e o próprio departamento de emissão do Banco da Inglaterra agia como uma caixa de conversão. Dessa forma, a adoção dessa instituição nas colônias foi um desdobramento natural.

No início da colonização havia a circulação das moedas e notas da metrópole. Como a moeda metropolitana era considerada e aceita como “tão boa quanto ouro”, servia tanto como meio de troca quanto como uma reserva de valor estável. Se a moeda metropolitana possuía essas virtudes, por que surgiu a necessidade de substituição? (i) O risco de perda ou dano da moeda, (ii) a instabilidade de suprimento monetário e (iii) o dispêndio de recursos reais que eram destinados à circulação monetária são os motivos da substituição da moeda metropolitana pela moeda doméstica.

Qualquer perda de moeda ocorrida na colônia como depreciação do material das moedas metálicas ou destruição de notas de papel só beneficia o emissor, que tem suas obrigações diminuídas. Dessa forma, uma perda de moeda nas colônias geraria um ganho ao banco emissor e uma perda de patrimônio líquido das colônias. Ao se instituir a caixa de conversão, a perda passa a ser de moeda local, por conseguinte resolvendo o problema. Além disso, como o lastro em moeda estrangeira continua existindo, é sempre possível a reemissão de notas velhas sem a geração de um ganho de senhoriagem adicional para o emissor da moeda-lastro.

O suprimento irregular de moeda nas colônias gerava flutuações reais desnecessárias nessas economias, unicamente por causa do problema de a cunhagem e o transporte das moedas serem feitos em outro lugar. Os bancos de câmbio e as câmaras de comércio em Hong-Kong e Cingapura, juntamente com os governos locais, alertaram diversas vezes o governo britânico sobre os danos ao comércio oriental de uma oferta de moeda estrangeira incerta e irregular. Em 1895, a casa da moeda de Bombaim passou a cunhar o British Trade Dollar.

Esses dois problemas parecem ser prosaicos, mas o leitor deve colocar-se no século XIX, quando transferências de recursos financeiros não eram feitas através de ordens eletrônicas, mas sim de demoradas viagens de navio.

O terceiro motivo é, contudo, o mais importante. Como, na prática, a caixa de conversão não precisa possuir os 100% de lastro em moeda-lastro, mas sim em títulos conversíveis e denominados nessa moeda, há a possibilidade de um ganho de juros sobre as reservas sem ter que romper a regra de não emissão fiduciária, gerando um ganho de senhoriagem para as colônias.

Os três motivos apresentados são bastante lógicos do ponto de vista das colônias ou de estados independentes, mas por que metrópoles, interessadas em última instância em extrair o maior lucro possível de suas possessões, abriram mão da renda de senhoriagem das suas moedas? Duas são as argumentações possíveis a esse questionamento: (i) custos de transação e (ii) dificuldade de controle das moedas com lastro metálico.

A economia é repleta de situações em que as trocas que objetivam a maximização das utilidades individuais possuem custos que as inviabilizam. O ser humano cria então mecanismos, inventos e instituições que diminuem esses custos. O próprio mercado é uma instituição que diminuiu e viabilizou a divisão do trabalho. A moeda, posteriormente, surgiu para diminuir ainda mais os custos de transação dentro dos mercados1 1 The firm, the market and the law, de R. H. Coase, editado pela The University of Chicago Press, é uma leitura importante sobre custos de transação. . No caso do surgimento das caixas de conversão, as metrópoles podem ter enfrentado custos de transação que as fizeram preferir abrir mão do ganho máximo de senhoriagem que existiria com o curso legal e único da moeda metropolitana na colônia2 2 Essa hipótese me foi sugerida pelo professor Fernando de Holanda Barbosa. Por transcender as ambições deste trabalho, essa hipótese será apenas sugerida. .

Em grande parte do período colonial, as moedas eram metálicas3 3 É por esse motivo que grande parte das moedas do mundo tem sua denominação associada a uma unidade de peso (e.g. peso, peseta, libra e lira). e os agentes econômicos demandavam-nas pela quantidade de material nelas existente. Dessa forma, um peso mexicano, um esterlino ou um dólar eram equivalentes se suas quantidades metálicas fossem idênticas, e, exceto por uma maior confiança em uma casa da moeda, não havia por que recusar qualquer moeda. Já que uma grande variedade de moedas circulava na colônia, era melhor deixar que esta possuísse sua própria moeda. A caixa de conversão passava a ser uma forma de aumentar o controle sobre os meios circulantes da economia.

3. PRÓS E CONTRAS

A impossibilidade de emissão fiduciária e o automatismo da regra de emissão de moeda são tanto para seus defensores quanto para os seus críticos a virtude e o vício da caixa de conversão. Os defensores alegam que esse sistema impede a geração de inflação pelo governo e estabiliza a economia gerando um ambiente propício ao investimento tanto interno quanto externo. Os críticos dizem que esse sistema não tem a flexibilidade necessária para responder às flutuações da demanda agregada da economia geradas por choques internos e externos. Como em diversas discussões entre economistas, os dois lados estão ao mesmo tempo certos e errados. Se a caixa de conversão não é intrinsecamente boa nem ruim, cabe analisar em que situações ela se toma um arranjo monetário recomendável a um Estado.

Uma das maiores reclamações em relação ao sistema de caixa de conversão é a de que ele possui uma taxa de crescimento da moeda que é simplesmente uma imagem do saldo em conta corrente do balanço de pagamentos. Essa crítica se toma falsa por dois motivos: (i) os bancos podem criar moeda pelo efeito multiplicador e (ii) a exportação e importação de capitais não é desprezível. Se os bancos não criassem moeda e se não houvesse exportação ou importação de capital, o mecanismo de expansão/contração de moeda, somente com a existência de superávit/déficit de conta corrente, eliminaria essa situação de desequilíbrio nas relações externas. Nesse ponto a caixa de conversão teria o mesmo mecanismo de ajuste do padrão ouro. A existência de bancos e de fluxo de capitais faz com que haja uma relação entre M1 e o saldo em conta corrente, mas não mais de um para um.

Se houver fluxos de capital que não possuam colateral na balança comercial, nem mesmo a proporcionalidade se verifica. Se um banco no país da caixa de conversão toma emprestado de um banco no exterior, haverá aquisição de ativos financeiros externos. Trocando esses ativos na caixa de conversão e depois emprestando no mercado, o banco aumentará os depósitos dentro da oferta monetária. Ou seja, dependendo da demanda por créditos no país, é possível haver uma quebra de proporcionalidade entre as reservas da caixa de conversão e a oferta de moeda da economia. O sistema monetário seria isolado do fluxo de capitais se o investimento destes gerasse lucros em moeda estrangeira que anulassem os serviços do fluxo de capital. No caso de Cingapura e Malásia essa foi a situação, pois os investimentos externos eram feitos basicamente nos setores de estanho e borracha, que geravam lucros internacionais.

Se no país onde existe a caixa de conversão a relação base monetária/M1 diminui, ocorre um crescimento de meios de pagamento para uma mesma quantidade de reservas internacionais. Como a manutenção de depósitos bancários é positivamente relacionada com a confiança que o depositante possui no sistema, uma caixa de conversão que proporcione estabilidade permitirá um aumento dos depósitos e consequentemente da oferta de moeda. A expansão da oferta monetária de Hong-Kong e de Cingapura é fruto principalmente da estabilidade financeira de suas caixas de conversão.

Um problema que pode ocorrer em países com esse esquema institucional é o agravamento das crises recessivas advindas de choques externos. Se um país exporta uma commodity cujo preço internacional cai, a caixa de conversão do país tem que diminuir a oferta de moeda da economia, pois os recursos lastro diminuem. Uma maneira de minorar este problema é permitir o livre fluxo de capitais, pois dessa forma os residentes podem deter ativos no exterior que podem contrabalançar a queda da renda da economia. Hong-Kong, por exemplo, mantém um livre fluxo de capitais como um pilar importante de seu sistema monetário. A crítica é procedente, mas esse é um problema intrínseco de qualquer esquema de câmbio fixo. Esse problema de flutuação econômica é a face reversa da disciplina monetária gerada pela instituição. Não é possível querer os preços estáveis e a disciplina fiscal da caixa de conversão sem querer os mecanismos automáticos de ajuste.

É verdade que muitas vezes as flutuações econômicas geradas pelos mecanismos automáticos podem ser inconvenientes; em compensação, a certeza de um Estado disciplinado fiscalmente atrai investimentos no país. O Diagrama 3 mostra os mecanismos de ajustamento automáticos de instituições como as caixas de conversão e o padrão-ouro. É desprezado, no Diagrama, para simplificar, o saldo de capitais voluntários do balanço de pagamentos. Incluir a movimentação de capitais não altera o mecanismo de ajustamento automático, apenas pode amplificá-lo ou minorá-lo, dependendo da sua correlação com os saldos de transações correntes.

DIAGRAMA 3
Mecanismo de ajuste automático

Teoricamente, o mecanismo funcionará, mesmo que haja uma rigidez de preços e salários para baixo. A diferença será o tamanho da recessão necessária para quebrar a rigidez. Um mercado de trabalho em que os salários possam flutuar possibilita uma relação entre moeda e preços mais direta, minorando os efeitos quantitativos.

O sistema bancário dos países que tem caixa de conversão é criticado por ter que, teoricamente, manter maiores reservas sobre os depósitos, uma vez que não mais existe um emprestador de última instância (Banco Central). Essa observação teórica correta é na prática contrabalançada pela abertura do sistema financeiro. Os bancos internacionais têm a garantia do mecanismo de caixa de conversão, o que os incentiva a se instalar nessas praças. Como o banco é o mesmo no mundo inteiro, ele não permitirá uma corrida contra suas atividades em um determinado país. A abertura internacional garante a solidez do sistema bancário sem que haja necessidade de excessos de reservas voluntárias dos bancos. Além da abertura do sistema financeiro, um sistema de seguros bancários pode diminuir as necessidades de reservas dos bancos.

O grande mérito da caixa de conversão, como de qualquer outro sistema de emissão de moeda baseado em regra, é o isolamento da oferta monetária em relação aos interesses políticos de financiamento de gastos públicos através de expansão monetária fiduciária. Se é possível criar uma regra que impeça os políticos de manipulação da moeda, por que não obedecê-la dentro de um regime menos dispendioso de recursos reais, como o fiduciário? Essa pergunta é natural para as pessoas que vivem em um país onde o sistema fiduciário não causou ou não causa grandes inflações, mas em países onde a liberdade fiduciária se transformou em libertinagem inflacionária, o preço de imposição de uma regra pode ser compensado pela estabilidade econômica sequente.

O regime de caixa de conversão é uma opção interessante para países pequenos que possuem um grande parceiro internacional, ou para grandes centros financeiros e comerciais, como Hong-Kong e Cingapura. Sem dúvida, a condição mais importante para o sucesso de uma caixa de conversão é a confiança nos agentes da possível conversão. Ou seja, o sistema funciona quando as pessoas não correm para fazer a conversão. E não há a corrida para a conversão quando se tem certeza de que ela é possível a qualquer momento.

4. A EXPERIÊNCIA DE CINGAPURA4 4 Para uma história detalhada das experiências monetárias da Malásia e de Cingapura, v. Sheng-Yi (1990).

A caixa de conversão foi adotada em Cingapura em 1899, e desde então esse sistema é mantido na ilha. Malásia e Cingapura faziam parte de uma mesma colônia britânica, e em 1967 ocorreu a separação monetária entre os dois estados. Cingapura continuou com o sistema de caixa de conversão, agora ancorado no dólar, e não mais na libra esterlina. A Malásia adotou o sistema de banco central, pois acreditava que essa instituição possibilitasse um maior desenvolvimento econômico, uma vez que abria a possibilidade de adiantamento de créditos para o governo. A criação de um banco central na Malásia teve apoio do Banco Mundial, que em seu relatório sobre a região recomendava um banco central que realizasse as funções da caixa de conversão, e que pudesse adquirir títulos públicos e ter o papel de banco dos bancos e de banqueiro do governo.

O sistema de caixa de conversão de Cingapura continua com lastro de 100%, e como suas reservas são 5,6 vezes o total de moeda em circulação, não há nenhum constrangimento externo à expansão monetária. A opção da Malásia foi por um banco central que possuísse pelo menos 80,59% de lastro sobre a emissão monetária e uma emissão fiduciária do restante, que em dados de 1988 podia chegar a US$300 milhões.

A cronologia sintética da evolução monetária da região é a seguinte:

  • em 1899 é estabelecido o currency board lastreado em libras esterlinas, situação que se manteve praticamente inalterada até 1958;

  • em 1958, a Malásia estabelece um banco central (Bank Negara), causando transformações importantes no sistema bancário; e

  • em 1967 há a separação de moedas entre Malásia, Cingapura e Brunei. Cingapura e Brunei estabelecem caixas de conversão independentes e saem do padrão libra esterlina para o padrão dólar americano.

As duas instituições mais importantes da estrutura financeira de Cingapura são o Currency Board e a Monetary Authority of Singapore (MAS). Estabelecida em 1970, a MAS realiza todas as funções de banco central, exceto a emissão de moeda. Ela é inclusive a emprestadora de última instância para os bancos. Em 1981 estudou-se a fusão entre a MAS e o Currency Board para a criação de um banco central, mas a ideia foi abandonada em 1982. A crítica sobre o comportamento dos bancos em um país com caixa de conversão deixa de ser verdadeira em Cingapura, em razão da existência de um emprestador de última instância.

4.1 Política monetária de Cingapura

Os objetivos da política monetária são o estímulo do crescimento econômico e a estabilização da economia. A política monetária atuou diretamente para debelar a inflação do período 1972-1974. Durante esse período, a MAS aumentou o encaixe bancário dos 3,5% de 1960 para 9% em 1973.

Como era de esperar em um país que possui uma caixa de conversão, a inflação só chegou aos dois dígitos quando houve um choque de oferta externo na economia mundial. E por ter lastro em moedas estrangeiras, o país experimentou um aumento da inflação quando a inflação nos países da moeda-lastro também subiu.

Em 1985, o produto decresceu, tanto pela queda da demanda internacional quanto da doméstica. A pressão de altos salários afetou a competitividade das exportações. A decisão das autoridades foi o congelamento de salários e a redução da contribuição previdenciária e dos impostos para a recuperação da competitividade.

Mesmo possuindo uma caixa de conversão, Cingapura tem uma política monetária adaptável as necessidades do comércio exterior e da produção. Para evitar uma apreciação do dólar de Cingapura, a MAS compra moeda estrangeira. Ao comprar moeda estrangeira gera-se um aumento da oferta monetária através da caixa de conversão. Sheng-Yi (1990SHENG-YI, L. (1990). The monetary and banking development of Singapore and Malaysia. 3ª ed. Singapore: Singapore University Press.) cita o relatório anual de 1981 para demonstrar a posição do MAS: “The policy direction was aimed largely at maintaining a strong exchange rate for the Singapore dollar, while ensuring sufficient liquidity to accommodate real economic growth. Underlying this shift in emphasis away from targets for interest rates and money supply growth in the conduct of monetary policy is the view that the exchange rate is relatively more important anti-inflation instrument in the context of the small and open Singapore economy. Price stability then, continued to be the prime objective. The emphasis given to a strong exchange rate policy also facilitates de policy of upgrading and restructuring the domestic economy”.

Tabela 1
Moeda, produto e inflação (1969-1988)

4.2 Taxa de câmbio6 6 As taxas de câmbio neste trabalho estão expressas em quantidades de moeda estrangeira por unidade de moeda doméstica

Uma grande discussão que surge quando um país adota uma caixa de conversão é a respeito do risco de uma apreciação cambial que gere problemas para o setor exportador. As noções de Taxa de Câmbio Nominal Efetiva (TCNE) e Taxa de Câmbio Real Efetiva (TCRE) são importantes para analisar a perda de competitividade.

A TCNE é uma média da taxa de câmbio entre a moeda local e uma cesta de moedas representativas das relações internacionais deum país. Mostra a tendência geral da taxa de câmbio. Inflacionando-se a TCNE pelo índice de preços domésticos e deflacionando-a pelo índice de preços externos encontra-se a TCRE. A TCRE é uma boa medida da competitividade internacional. Indica a habilidade de um país em vender no exterior e as pressões de preços (inflação e câmbio) no balanço de pagamentos. Formalmente, tem-se:

T C R E = T C N E P d P f

Gráfico 1
TCRE, TCNE E INFLAÇÃO

Analisando somente a TCNE pode-se concluir que o câmbio está se valorizando e gerando uma perda de competitividade. Mas será que essa variável é relevante para a economia de Cingapura? Como a economia é aberta financeiramente, a demanda e a oferta de reservas levam em consideração não somente os fluxos comerciais, como também os fluxos financeiros. Como os fluxos de capital são geralmente superiores ao fluxo comercial, o conceito de TCNE perde sua validade.

A TCRE adquire maior importância, pois as decisões de investimento de capital têm como variável importante para a decisão as diferenças de taxas de inflação. A análise da TCRE mostra que não há uma perda de competitividade do dólar de Cingapura, pois a inflação doméstica tem sido inferior à inflação estrangeira.

5. A CAIXA DE CONVERSÃO BRASILEIRA7 7 As fontes desta seção são: Fausto (1985), 213-30, Furtado (1984), 177-85 e Neuhaus (1975), 15-81.

O Brasil teve duas experiências de caixa de conversão. A primeira ocorreu em 1906 e a segunda em 1927. As duas experiências colocam o Brasil no padrão-ouro, garantindo a conversibilidade das moedas emitidas pelos currency boards8 8 A publicação do Banco Safra (l988) sobre o Museu de Valores do Banco Central mostra fotos das notas emitidas pelas Caixas de Conversão e Estabilização. As notas da Caixa de Conversão vinham com os seguintes dizeres: “A Caixa de Conversão pagará à vista, no Rio de Janeiro, a importância deste bilhete (expressa em mil-réis) em ouro amoedado ao câmbio de quinze dinheiros por mil-réis, valor recebido nos termos da Lei 1575 de 6 de Dezembro de 1906”. As notas da Caixa de Estabilização vinham com os seguintes dizeres: “A Caixa de Estabilização pagará ao portador, à vista, no Rio de Janeiro, em ouro, conforme a Lei 5108, de 18 de Dezembro de 1926, a quantia de (valor em mil-réis da nota)”. É curioso que nas notas da Caixa de Conversão o câmbio estivesse explícito, ao contrário do que ocorria naquelas da Caixa de Estabilização. É importante notar que circulavam simultaneamente notas de mil-réis conversíveis e não conversíveis em ambas as experiências. . Em ambas as experiências o que está por trás desse arranjo monetário é o levantamento de empréstimos externos para manter a política de valorização do café. É claro que, como o café era um produto destinado à exportação e o objetivo das políticas cafeeiras era manter a renda dos produtores, um câmbio controlável era fundamental; surgia então a necessidade das caixas de conversão.

5.1 A experiência de 1906

Em 1905 é aprovada uma lei que permitia ao Presidente da República criar mecanismos de valorização do café. Essa lei autorizava o presidente, em acordo com os estados cafeeiros, a promover a valorização do produto, a regular o seu comércio e a tomar medidas a fim de aumentar o consumo. O Governo Federal seria avalista de empréstimos externos feitos pelos estados produtores, desde que estes securitizassem o empréstimo em ouro. Os empréstimos seriam depositados no Tesouro Nacional e liberados de acordo com as necessidades. Baseados neste arcabouço legal os presidentes dos estados produtores reuniram-se, em fevereiro de 1906, em Taubaté, para firmar o Convênio de Taubaté.

Entre os principais pontos do Convênio de Taubaté encontra-se o estabelecimento de um fundo (caixa de conversão) a fim de estabilizar o câmbio. Através da caixa de conversão, esperava-se manter o câmbio em 12 dinheiros por mil-réis, e não nos 16 dinheiros em que se encontrava antes do Convênio. Fausto (1985FAUSTO, B. (1985). História Geral da Civilização Brasileira- III O Brasil republicano 1. Estrutura de poder e economia (1889-1930),4ªed. São Paulo: DIFEL.) destaca a importância da desvalorização do mil-réis citando a entrevista que liquidou o nome do paulista Bernardino de Campos à sucessão de 1906: “Os três termos principais do nosso progresso podem ser indicados pela abolição da escravidão, pela abolição da monarquia e pela abolição do curso forçado”. Se o curso forçado fosse abolido, a política de manutenção da renda da oligarquia cafeeira estaria prejudicada, pois não mais seria possível a desvalorização do mil-réis.

Foi escolhido, então, o vice-presidente Afonso Pena, que possuía um discurso mais agradável aos ouvidos dos produtores de café. Dizia ele: “A rápida valorização da moeda produz sempre abalos prejudiciais às indústrias, à lavoura e ao comércio”.

O presidente Rodrigues Alves submeteu as propostas do Convênio de Taubaté ao Congresso. O presidente era a favor da política de valorização do café, mas, segundo Neuhaus (1975NEUHAUS, P. (1975). História monetária do Brasil 1900-1945. Rio de Janeiro: IBMEC.), objetava firmemente a estabilização cambial através da caixa de conversão. O projeto foi dividido em duas partes; a valorização do café foi aprovada em julho de 1906, enquanto a caixa de conversão seria discutida posteriormente.

O debate sobre a caixa de conversão era alimentado por dois grupos. Os deflacionistas ou ortodoxos queriam a volta ao câmbio de 1846 (27 dinheiros/mil-réis), exigindo assim uma valorização do mil-réis. Esse grupo era composto pelos setores urbanos da população e pelos importadores. Seu porta-voz era o Ministro da Fazenda de então (1902-1906), Leopoldo Bulhões. Bulhões temia que a caixa de conversão desfizesse toda a política de estabilização iniciada em 1898 por Joaquim Murtinho.

O segundo grupo era o dos expansionistas e consistia nos produtores de bens agrícolas de exportação e nos produtores de manufaturados competitivos com os produtos importados. Seu porta-voz era o então relator do projeto, deputado David Campista, futuro Ministro da Fazenda do período 1907-1909. Ele defendia uma expansão monetária contínua e ao mesmo tempo uma estabilidade cambial para o desenvolvimento econômico. A caixa de conversão atenderia aos dois objetivos emitindo moeda lastreada, mas a um câmbio realista de 15 dinheiros/mil-réis, e não ao de 27 dinheiros/mil-réis de 1846. Neuhaus (1975NEUHAUS, P. (1975). História monetária do Brasil 1900-1945. Rio de Janeiro: IBMEC.) destaca que este grupo se inspirava nos “milagres” produzidos pela Caja de Conversión argentina.

A caixa funcionaria com um limite inicial de 320 mil contos. Se esse limite fosse atingido haveria uma valorização do mil-réis, e novo limite seria estabelecido.

A Caixa de Conversão foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada por Afonso Pena em 6 de dezembro de 1906, e estabeleceu a taxa de 15 dinheiros por mil-réis superior aos 16 dinheiros obtíveis no mercado livre. Como era possível fazer interessantes operações de arbitragem entrando divisas pela Caixa de Conversão e saindo divisas pelo mercado livre, garantia-se um afluxo de divisas à Caixa sem um movimento contrário de saída. Em maio de 1910 o limite de 320 mil contos foi atingido. Enquanto a taxa do mercado livre era superior à da Caixa o sistema funcionou. Quando a tendência se inverteu, no início da Primeira Guerra Mundial, houve uma corrida aos depósitos associada a uma queda nas exportações que redundou em seu fechamento.

5.2 A experiência de 1926

O retorno ao padrão-ouro em voga na Europa do pós-guerra repercutiu no Brasil. Neuhaus (1975NEUHAUS, P. (1975). História monetária do Brasil 1900-1945. Rio de Janeiro: IBMEC.) cita uma frase lapidar de Washington Luís sobre o assunto: “Às imaginações fogosas (caberá) descrever o futuro grande que está reservado ao nosso Brasil, quando fizer a sua circulação metálica, a sua moeda ouro”. A Caixa de Estabilização foi criada em 1926 com os mesmos objetivos da Caixa de Conversão do início do século. E a taxa cambial foi colocada em um nível realista dentro da paridade do poder de compra de 6 dinheiros/mil-réis. A Caixa de Estabilização emitiria papel-moeda contra a reserva de l 00% em ouro. As notas emitidas anteriormente à criação da Caixa de Estabilização não eram conversíveis. Em 1929 circulavam 2.543.000 contos em notas não conversíveis e 848.000 contos em notas conversíveis.

O câmbio atraiu um fluxo de recursos externos, impulsionando o crescimento da base monetária em 16,1 % e em 12,4% em 1927 e em 1928, respectivamente. A política de valorização do café, que no início do século tinha caráter esporádico, passava a ser o socorro permanente dos produtores para um problema de superprodução claramente estrutural. Os gastos com compras de sacas de café alcançaram, em 1929, 10% do PIB. Entre 1927 e 1929 houve fortes entradas de capital privado estrangeiro no país. Como diz Furtado (1984FURTADO, C. (1984). Formação econômica do Brasil, 19ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional.), “a coincidência da afluência de capitais privados e da chegada dos empréstimos destinados a financiar o café deu lugar a uma situação cambial extremamente favorável e induziu o governo brasileiro a embarcam uma política de conversibilidade”.

Com a crise mundial em 1929 foram necessários apenas alguns meses para que todas as reservas metálicas se esgotassem. As autoridades achavam saudável o mecanismo de exportação de ouro durante a crise e a consequente queda da base monetária. A Caixa de Estabilização só serviu para facilitar a fuga de capitais trocados por um câmbio que não refletia o mercado.

6. A PROPOSTA DE RESENDE

Resende (1992RESENDE, A.L. (1992). “O Conselho da Moeda: um órgão emissor independente”. Revista de Economia Política, 12 (4), out.-dez./1992.)9 9 O texto originalmente publicado na Revista de Economia Política também pode ser encontrado na revista Exame em 8/7/1992. propõe o retomo de uma caixa de conversão para a economia brasileira que se chamaria Conselho da Moeda. À semelhança das experiências brasileiras do início do século, o Conselho da Moeda não teria o monopólio de emissão monetária, contudo a moeda por ele emitida não seria a mesma emitida pelo Banco Central. Nas experiências anteriores, ao contrário, amoeda emitida pela caixa de conversão era a única conversível, mas continuava a possuir a mesma denominação, o que implicava uma mesma taxa de inflação para o mil-réis emitido pelo Tesouro Nacional e para aquele emitido pela Caixa de Conversão ou pela Caixa de Estabilização.

Haveria duas moedas com curso legal: o cruzeiro, de emissão fiduciária do Banco Central, e o brasdólar10 10 Denominação dada por Simonsen (22/7/1992) ao criticar a proposta de Resende. , de emissão 100% lastreada em reservas estrangeiras do Conselho da Moeda. A taxa de câmbio entre o cruzeiro e o brasdólar seria fixada pelo mercado.

A engenhosidade da proposta de Resende está exatamente em não se acabar com a emissão de moeda fiduciária. Haveria uma moeda que teria paridade fixa com o dólar norte-americano e outra que flutuaria. Esse mecanismo dá uma maior liberdade às autoridades monetárias locais, ao mesmo tempo em que proporciona aos agentes privados um referencial monetário estável, o brasdólar.

Tendo uma moeda concorrente direta, as autoridades ligadas ao cruzeiro (Banco Central e Tesouro Nacional) seriam forçadas a um ajuste fiscal que disciplinasse a emissão fiduciária. Caso o Banco Central e o Tesouro não conseguissem recuperar o cruzeiro como padrão monetário estável, o brasdólar já estaria sendo usado como referencial, o que seria uma hiperinflação “controlada” em cruzeiros e sua substituição pelo brasdólar. Se o cruzeiro voltasse a ser uma moeda usada com parcimônia pelo seu agente emissor, a taxa de câmbio entre ela e o brasdólar convergiria, como consequência produzindo estabilidade econômica sem a dolorosa passagem pela hiperinflação.

A Lei de Gresham, “a má moeda expulsa a boa moeda de circulação”, poderia ser um risco da proposta de Resende? Como salienta Hayek, (1986HAYEK, F.A. (1986). Desestatização do dinheiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal.), a Lei de Gresham só é válida quando há um câmbio fixo determinado por lei11 11 Esse fenômeno era bastante comum quando a relação entre o preço do ouro e o da prata diferia da taxa legal entre moedas de ouro e prata nos padrões bimetálicos. Por isso que, na maioria dos episódios bimetálicos por direito. tornava-se um padrão-ouro ou padrão-prata de fato. ; no caso da proposta de Resende, o câmbio flutuante entre cruzeiro e brasdólar e as taxas de juros diferentes entre títulos emitidos nas duas moedas não tiraria o brasdólar de circulação.

Em síntese, além de permitir o ganho de senhoriagem de uma caixa de conversão, o Conselho da Moeda de Resende (1992RESENDE, A.L. (1992). “O Conselho da Moeda: um órgão emissor independente”. Revista de Economia Política, 12 (4), out.-dez./1992.) coloca uma “camisa-de-força no Tesouro Nacional sem, contudo, colocar em risco a estabilidade monetária devido a uma excessiva valorização da moeda local em face da moeda estrangeira, o que geraria uma crise no balanço de pagamentos. A competição com uma moeda lastreada criaria uma regra crível de emissão da moeda fiduciária, ou faria com que a moeda fiduciária desaparecesse se continuasse sendo fonte de receitas inflacionárias.

6.1 A crítica de Simonsen

Simonsen (22/7/1992SIMONSEN, M.H “Os riscos de uma ideia”. Exame , 22/7/1992.) diverge radicalmente da proposta de Resende. Sua crítica refere-se ao período de transição, quando haveria duas moedas de curso legal. Para Simonsen, a decretação do Conselho da Moeda ocasionaria uma mega desvalorização cambial do cruzeiro em relação ao dólar. A inflação se aceleraria em razão da queda da demanda por cruzeiros e de sua desvalorização. A tentativa de financiamento do déficit público por emissão de títulos em cruzeiros ou em moeda agravaria ainda mais a hiperinflação. Nesse período haveria uma transferência de rendas dos que ficassem mais tempo com cruzeiros para aqueles que possuíssem rendas e ativos atrelados ao dólar.

Para que haja o final do processo inflacionário como previsto por Resende, Simonsen julga necessárias duas hipóteses: (i) o ajustamento das contas do governo e (ii) que os salários nominais se tornem flexíveis após sua conversão para o brasdólar.

Simonsen acha desnecessário oferecer duas moedas com curso legal para que o Estado faça seu ajustamento. Segundo ele, a cronologia seria invertida; primeiro fazer o ajuste fiscal para depois criar uma âncora cambial ao estilo argentino ou mexicano. E nada impediria que o governo deixasse de fazer o ajuste fiscal e sepultasse o Conselho da Moeda. Sem a flexibilidade de salários nominais, a âncora cambial explodiria, ou seria necessária uma recessão brutal para que eventuais crises do balanço de pagamentos se resolvessem.

A crítica de Simonsen ocorre, então, em dois níveis. O período de transição é desnecessariamente confuso e perversamente distribuidor de rendas entre os que ganham cruzeiros e os que ganham em dólar. Para haver estabilidade, o governo precisa fazer o ajuste fiscal, então por que não fazê-lo sem criar outra moeda? E é necessária a flexibilidade de salários com a nova moeda, pois, caso contrário, o plano fracassa.

6.2 Críticas à crítica

Criticar qualquer proposta de âncora cambial dizendo que ela só é possível se o Estado ajustar o seu lado fiscal e que os custos da economia devem ser flexíveis é criticar a própria âncora cambial. Mais uma vez, o grande mérito e demérito da emissão de moeda lastreada é sua endogeneidade. Ou seja, não é possível ter uma âncora cambial e um Estado soberano (inquebrável por definição) se as contas desse Estado não estiverem equilibradas. A flexibilidade ou não dos custos da economia apenas mostra o tamanho da recessão que ocorre quando o mecanismo de ajustamento de um padrão lastreado entra em funcionamento.

É curioso que, apesar dessa crítica à ideia de Resende, Simonsen em outros artigos defende posições não tão antagônicas à proposta de Resende. Se não, vejamos:

  • Em 19/2/1992 SimonsenSIMONSEN, M.H “A volta do tigre-e com fôlego renovado”. Exame , 19/2/1992. sugere o dólar como indexador geral da economia. Sem dúvida, a indexação total ao dólar facilitaria num passo seguinte a fixação do câmbio, principalmente pela dolarização dos títulos públicos, como no caso argentino, com os Bonex. Mas a flexibilidade dos salários nominais continuaria sendo um problema intocado.

  • Em 24/6/1992 SimonsenSIMONSEN, M.H “O Plano Cavallo não é pajelança”. Exame , 24/6/1992. já não vê tantos problemas com uma valorização real da moeda local se entrarem novos capitais do exterior e se o investimento interno aumentar. Esse ponto é levantado por Resende como um dos atrativos da sua proposta. Mesmo sem chegar a uma plena estabilização, o brasdólar já incentivaria a entrada de recursos externos através do Conselho da Moeda.

  • Em três artigos diferentes Simonsen questiona a possibilidade de uma âncora cambial em um país que não tem reservas suficientes para lastrear toda a sua emissão de moeda. Em 2/1/1990SIMONSEN, M.H. “A Argentina e a moeda lastreada”, Exame, 2/1/1990., quando o Plano Cavallo era só uma especulação na Argentina, as reservas internacionais desse país eram de US$1,5 bilhão e a moeda argentina valia US$3 bilhões, Simonsen menciona um artificio que possibilitaria a imediata dolarização da economia. Dizia ele: “Basta uma maxidesvalorização cambial de 100%”. Em 2/10/1991SIMONSEN, M.H. “O Plano Cavallo não nos serve”. Exame , 2/10/1991., diz: “O Brasil não tem como adotar o modelo argentino por uma razão simples: não há dólares em circulação no país para conduzir todas as transações”. Em 24/8/1992, ao criticar a proposta de uma mega desvalorização da moeda nacional para depois fixar o câmbio, Simonsen chama essa proposta de plano Hiroxima, porque seria o mesmo que defender o lançamento de uma bomba atômica só porque o crescimento japonês foi fantástico após esse episódio. Para ele, o plano garantiria a parte da bomba atômica, mas não o crescimento posterior.

A estabilização econômica acontece quando os agentes passam a acreditar que uma regra de expansão monetária será cumprida. Toda regra pode ser desmoralizada sendo descumprida por um Estado soberano. Não cabe criticar qualquer regra por ela ser descumprível. Todas as regras são descumpríveis por um estado, mas nem por isso deve-se deixar de acreditar que a única maneira de estabilizar os preços é através da criação de uma âncora nominal, seja ela cambial, seja monetária, e que em última instância criará uma disciplina fiscal do Estado.

O que sem dúvida é triste para um economista é notar que as regras possuem chances de ser cumpridas quando a situação já é ruim para todos sem a regra. Assim, o Plano Cavallo possui chances de dar certo porque a crise cinquentenária do peronismo argentino levou o país a uma situação tal que o ajuste fiscal e a desregulamentação de setores importantes para os custos da economia podem ser executados sem grande oposição.

7. COMENTÁRIOS FINAIS

A caixa de conversão é um mecanismo que gera uma estabilidade de preços interna e uma situação confortável no balanço de pagamentos. Por possuir mecanismos automáticos de ajustamento, ela impede a manipulação política da moeda, mas o preço a ser pago é uma menor flexibilidade para uma atuação anticíclica.

O sucesso da caixa de conversão está no cumprimento de uma regra de expansão monetária e, consequentemente, na disciplina fiscal do Estado. Em última instância, a disciplina fiscal é um compromisso do Estado com ele mesmo. De nada adianta uma regra bem-feita se não há vontade para o ajustamento fiscal, e, por outro lado, qualquer regra serve se o Estado está disposto ao ajustamento. Sendo assim, uma regra em um sistema fiduciário é menos custosa e mais flexível para a economia. A vantagem do sistema lastreado é que o custo para a autoridade em romper com a regra, medido em credibilidade, é maior que em um sistema fiduciário, em que a regra não é tão limitante e explícita quanto no lastro. Como a moeda se toma endógena, é importante que os custos da economia tenham flexibilidade, para que as recessões não sejam mais fortes que as necessárias para o ajustamento dos preços internos.

REFERÊNCIAS

  • FAUSTO, B. (1985). História Geral da Civilização Brasileira- III O Brasil republicano 1. Estrutura de poder e economia (1889-1930),4ªed. São Paulo: DIFEL.
  • FURTADO, C. (1984). Formação econômica do Brasil, 19ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
  • HAYEK, F.A. (1986). Desestatização do dinheiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal.
  • NEUHAUS, P. (1975). História monetária do Brasil 1900-1945. Rio de Janeiro: IBMEC.
  • RESENDE, A.L. (1992). “O Conselho da Moeda: um órgão emissor independente”. Revista de Economia Política, 12 (4), out.-dez./1992.
  • SHENG-YI, L. (1990). The monetary and banking development of Singapore and Malaysia. 3ª ed. Singapore: Singapore University Press.
  • SIMONSEN, M.H. “A Argentina e a moeda lastreada”, Exame, 2/1/1990.
  • SIMONSEN, M.H “A dolarização da economia argentina”. Exame, 28/08/1991.
  • SIMONSEN, M.H “A volta do tigre-e com fôlego renovado”. Exame , 19/2/1992.
  • SIMONSEN, M.H “O Plano Cavallo não é pajelança”. Exame , 24/6/1992.
  • SIMONSEN, M.H. “O Plano Cavallo não nos serve”. Exame , 2/10/1991.
  • SIMONSEN, M.H “Os riscos de uma ideia”. Exame , 22/7/1992.
  • WALTERS, A. (1987). “Currency boards”. In Eatwell, Milgate e Newman, eds. The New Palgrave: A Dictionary of Economics. Londres: The Macmillan Press Limited.
  • 1
    The firm, the market and the law, de R. H. Coase, editado pela The University of Chicago Press, é uma leitura importante sobre custos de transação.
  • 2
    Essa hipótese me foi sugerida pelo professor Fernando de Holanda Barbosa. Por transcender as ambições deste trabalho, essa hipótese será apenas sugerida.
  • 3
    É por esse motivo que grande parte das moedas do mundo tem sua denominação associada a uma unidade de peso (e.g. peso, peseta, libra e lira).
  • 4
    Para uma história detalhada das experiências monetárias da Malásia e de Cingapura, v. Sheng-Yi (1990SHENG-YI, L. (1990). The monetary and banking development of Singapore and Malaysia. 3ª ed. Singapore: Singapore University Press.).
  • 5
    S$ NCDs =certificados de depósitos negociáveis expressos em dólares de Cingapura.
  • 6
    As taxas de câmbio neste trabalho estão expressas em quantidades de moeda estrangeira por unidade de moeda doméstica
  • 7
    As fontes desta seção são: Fausto (1985FAUSTO, B. (1985). História Geral da Civilização Brasileira- III O Brasil republicano 1. Estrutura de poder e economia (1889-1930),4ªed. São Paulo: DIFEL.), 213-30, Furtado (1984FURTADO, C. (1984). Formação econômica do Brasil, 19ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional.), 177-85 e Neuhaus (1975NEUHAUS, P. (1975). História monetária do Brasil 1900-1945. Rio de Janeiro: IBMEC.), 15-81.
  • 8
    A publicação do Banco Safra (l988) sobre o Museu de Valores do Banco Central mostra fotos das notas emitidas pelas Caixas de Conversão e Estabilização. As notas da Caixa de Conversão vinham com os seguintes dizeres: “A Caixa de Conversão pagará à vista, no Rio de Janeiro, a importância deste bilhete (expressa em mil-réis) em ouro amoedado ao câmbio de quinze dinheiros por mil-réis, valor recebido nos termos da Lei 1575 de 6 de Dezembro de 1906”. As notas da Caixa de Estabilização vinham com os seguintes dizeres: “A Caixa de Estabilização pagará ao portador, à vista, no Rio de Janeiro, em ouro, conforme a Lei 5108, de 18 de Dezembro de 1926, a quantia de (valor em mil-réis da nota)”. É curioso que nas notas da Caixa de Conversão o câmbio estivesse explícito, ao contrário do que ocorria naquelas da Caixa de Estabilização. É importante notar que circulavam simultaneamente notas de mil-réis conversíveis e não conversíveis em ambas as experiências.
  • 9
    O texto originalmente publicado na Revista de Economia Política também pode ser encontrado na revista Exame em 8/7/1992.
  • 10
    Denominação dada por Simonsen (22/7/1992SIMONSEN, M.H “Os riscos de uma ideia”. Exame , 22/7/1992.) ao criticar a proposta de Resende.
  • 11
    Esse fenômeno era bastante comum quando a relação entre o preço do ouro e o da prata diferia da taxa legal entre moedas de ouro e prata nos padrões bimetálicos. Por isso que, na maioria dos episódios bimetálicos por direito. tornava-se um padrão-ouro ou padrão-prata de fato.
  • *
    Agradeço os comentários feitos pelo professor Fernando de Holanda Barbosa.
  • 13
    JEL Classification: E31; E51.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1994
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