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As três formas de desvalorização cambial

The three forms of exchange devaluation

RESUMO

Quando a taxa de câmbio está sobrevalorizada e a balança comercial é negativa, existem três formas de desvalorizar a moeda local: desvalorização direta, ajuste fiscal e aumento da produtividade a uma taxa superior à dos concorrentes. As três formas envolvem uma mudança nos preços relativos, com a redução dos preços dos não comercializáveis em relação aos comercializáveis e, portanto, uma redução relativa dos salários reais. O aumento da produtividade é a primeira opção, uma vez que não acarreta redução real dos salários, o ajuste fiscal é a segunda opção, pois é de qualquer forma necessário e não contém o risco de inflação. Dado esse risco, a desvalorização direta é a terceira melhor. No entanto, como é difícil controlar o aumento da produtividade na economia local e impossível nas concorrentes, e como o ajuste fiscal leva à desvalorização apenas indiretamente ao reduzir a demanda por bens não comercializáveis, muitas vezes os formuladores de políticas recorrem à terceira melhor alternativa.

PALAVRAS-CHAVE:
Política cambial; desvalorização cambial

ABSTRACT

When the exchange rate is overvalued and the trade balance is negative, there are three forms of devaluating the local currency: direct devaluation, fiscal adjustment, and increase of productivity at a higher rate than the competitors. The three forms involve a change in relative prices, with the reduction of the prices of nontradables in relation to tradables, and, so, a relative reduction of real wages. Productivity increase is a first best, since it does not entail real wage reduction, fiscal adjustment is a second best since it is anyway necessary and does not contain the risk of inflation. Given this risk, direct devaluation is a third best. Yet, since it is difficult to control productivity increase in the local economy and impossible in the competing ones, and since fiscal adjustment leads to devaluation only indirectly as it reduces the demand for non-tradables, quite often policymakers resort to the third best alternative.

KEYWORDS:
Exchange rate policy; exchange rate devaluation

1. INTRODUÇÃO

O nível de sobrevalorização ou subvalorização de uma moeda nacional é determinado principalmente pelo déficit ou superávit de sua balança de conta corrente. Nesta nota vou, primeiro, definir sucintamente o processo de desvalorização como uma mudança nos preços relativos entre os bens e serviços comercializáveis e não-comercializáveis. Em seguida apresentarei as três formas possíveis de desvalorizar uma moeda eventualmente sobrevalorizada: desvalorização direta, diminuição do déficit público e aumento da produtividade acima da média internacional. Finalmente, contrariando a sabedoria convencional que privilegia a redução do déficit público, procurarei encontrar uma razão para o fato de que a forma de desvalorização menos atrativa - a direta - é geralmente a mais usada para corrigir os fundamentos macroeconômicos do país ou para evitar crises cambiais iminentes.

2. CONCEITO E FORMAS

Se se configurar uma situação de sobrevalorização, existem três possibilidades de se alcançar uma desvalorização cambial real, que restaure a competitividade do país: primeiro, diretamente, elevando-se o preço de compra da moeda estrangeira, desde que essa elevação nominal não seja acompanhada por correspondente aumento dos preços internos, de forma que os preços dos bens não-comercializáveis caiam em relação aos comercializáveis; segundo, promovendo-se o ajuste fiscal que permita a redução dos preços dos bens não-comercializáveis em relação aos bens comercializáveis, seja através da diminuição da demanda relativa para os primeiros, seja através da redução do seu custo - o custo Brasil; e, terceiro, alcançando-se um aumento da produtividade superior ao dos concorrentes internacionais de forma que caia o preço dos bens não-comercializáveis em relação aos comercializáveis e, portanto, aos preços externos.

Nas três hipóteses o processo de desvalorização cambial real - que não deve ser confundido com o nível de sobrevalorização ou subvalorização -, além de ser definido de forma óbvia, como o aumento no valor real de compra da moeda estrangeira, é medido pela mudança nos preços relativos internos contra os bens não-comercializáveis que se tornam relativamente mais baratos que os comercializáveis, levando os exportadores a exportar mais e os importadores, a importar menos. Como o bem nãocomercializável por excelência é o trabalho, resulta na redução da taxa de salários. E implica uma mudança correspondente nos preços relativos externos, de forma que os bens comercializáveis produzidos no país se tornam mais baratos do que os produzidos no exterior em termos de moeda nacional na medida em que o custo dos insumos para produzi-los, constituídos em grande parte de bens não-comercializáveis, principalmente salários, caem em termos reais. Em termos da moeda estrangeira, o pressuposto é o de que a relação entre os preços nacionais e internacionais não se altera. Entretanto, como caem os preços dos não-comercializáveis, aumentando o preço relativo dos comercializáveis, os produtores nacionais têm condição de baixar os preços dos comercializáveis e assim aumentar as exportações.

Na desvalorização provocada via elevação do preço da moeda estrangeira, o pressuposto é de que o governo tem condições de determinar esse preço através da definição do preço pelo qual está disposto a comprar divisas. Fatores de mercado, como uma elevação da taxa de juros provocando afluxo de divisas, ou como uma política recessiva diminuindo a demanda de dólares para importação, podem afetar essa taxa, mas o governo, em princípio, tem poder, através do seu Banco Central, de provocar a desvalorização cambial. Esta desvalorização tem que ser sempre rápida: gradualmente é inviável dada a capacidade de previsão dos agentes financeiros. É possível, entretanto, não fazê-la através de uma simples maxi-desvalorização, mas através do aumento da banda de flutuação cambial.

Na desvalorização via ajuste fiscal o pressuposto é de que esse ajuste, além de provocar um efeito-desabsorção ao diminuir a demanda agregada, acaba também tendo um efeito-substituição na medida em que a demanda do Estado por bens e serviços é principalmente de não-comercializáveis. Dessa forma, quando cai sua demanda, cairiam em termos relativos os preços dos não-comercializáveis, ocorrendo a desvalorização.

Em ambos os casos existe uma queda a curto prazo dos salários reais. Estes caem, no primeiro caso, porque ficam mais caros os bens comercializáveis em relação aos salários, já que estes, por definição, não acompanharam a elevação do preço da moeda estrangeira. No segundo caso, porque, para que haja a queda dos preços dos não-comercializáveis é preciso que os salários, que constituem o seu componente principal, na medida em que os não-comercializáveis são em grande parte constituídos de serviços, não aumentem proporcionalmente ao aumento dos preços dos comercializáveis.

Já no caso da desvalorização por aumento da produtividade não há necessidade de queda a curto prazo dos salários. Os salários reais podem ser mantidos, enquanto sobem os preços dos comercializáveis em relação aos preços dos não-comercializáveis e caem em relação aos preços internacionais. O aumento da produtividade pode ser das empresas ou pode ser do Estado. Neste caso temos o que se convencionou chamar, no Brasil, de “redução do custo Brasil”. Toda vez que o Estado e suas empresas são capazes de produzir a mesma quantidade de bens e serviços com a mesma qualidade e com um menor preço, está ocorrendo um aumento de produtividade que se reflete direta ou indiretamente no custo das empresas.

3. QUAL A FORMA PREFERÍVEL

No debate sobre como desvalorizar o câmbio, a preferência é sempre dada à terceira solução, depois à segunda, e só finalmente à primeira. A opção pela primeira é obvia: não envolve custos. Se esta não for viável no prazo desejado, inclusive porque envolve uma variável não controlável - o aumento da produtividade dos concorrentes no exterior - prefere-se a segunda porque não envolve o risco de aumento da inflação existente na terceira.

Por que, então, os países frequentemente recorrem à primeira via, como vimos recentemente em diversos países europeus encabeçados pela Grã-Bretanha e a Itália, que desvalorizaram suas moedas via elevação da taxa de câmbio nominal? Essencialmente porque as duas outras estratégias de desvalorização envolvem tempo - um tempo que muitas vezes não é possível e mais frequentemente não é desejável esperar. Além disso, porque as duas outras vias dependem de fatores não controláveis ou de difícil controle.

No caso da redução do déficit público - que é sempre desejável senão imperativa - a demora decorre do fato de a desvalorização ocorrer indiretamente, em função da menor demanda de bens não-comercializáveis por parte do Estado. Nesses termos envolve um processo gradual, e por isso politicamente mais custoso, de redução de salários reais e de lucros dos empresários do setor não-comercializável. As resistências a esse tipo de estratégia são, portanto, óbvias. Além disso o efeito do ajuste fiscal sobre os preços relativos pode ser menos decisivo do que seu efeito, a partir da recessão decorrente, sobre o nível geral de preços.

Por outro lado, se existe um déficit público, a escolha do policymaker que tiver como objetivo desvalorizar entre reduzir o déficit público e elevar diretamente o preço de compra da moeda estrangeira é uma falsa escolha. Em qualquer hipótese ele terá que esforçar-se ao máximo para realizar o ajuste fiscal. Recorrerá à desvalorização direta se esses esforços não tiverem um efeito suficientemente forte e imediato sobre a taxa de câmbio real. A escolha só existirá na medida em que o governo decide protelar ou simplesmente não realizar a desvalorização nominal, esperando que a segunda e a terceira vias, afinal, produzam efeito, desvalorizando em termos reais o câmbio. Os riscos dessa escolha, entretanto, serão proporcionais ao nível de sobrevalorização existente e aos efeitos dessa sobrevalorização sobre a balança comercial e a de transações correntes.

Os riscos da desvalorização direta, entretanto, são também claros. O risco maior é o do aumento da inflação. O problema é como evitar que a desvalorização seja apenas nominal, ou seja, como impedir que os preços internos subam na proporção da elevação do preço da moeda estrangeira. A solução geralmente encontrada para este problema é provocar-se, temporariamente, uma redução drástica da demanda interna através de política monetária restritiva. No momento em que ocorre a desvalorização, a demanda interna pelos bens comercializáveis aumenta duplamente: aumenta porque os bens comercializáveis estrangeiros tornaram-se relativamente mais caros, e aumenta porque a demanda desses bens para serem exportados. A existência de uma economia comercialmente aberta não evitará esse risco, já que os bens estrangeiros se tornaram mais caros. Por isso, quando se decide por uma desvalorização direta, é inevitável adotar-se temporariamente uma política monetária e creditícia muito rígida. É necessário, em particular, elevar os depósitos compulsórios, estabelecer limites de crédito e elevar a taxa de juros mesmo que esta já esteja elevada. Dessa forma os riscos da retomada da inflação são minimizados, embora, naturalmente, a um custo.

Há um outro risco na desvalorização direta - os agentes econômicos se sentirem enganados, perderem confiança nas autoridades governamentais, e levarem o país a uma crise cambial e, no limite, à hiperinflação. Foi o que ocorreu na Argentina, em 1989. O governo havia dado garantias absolutas aos agentes de que não desvalorizaria, apesar da óbvia necessidade de desvalorização. Quando desvalorizou porque foi obrigado - não porque decidiu desvalorizar - o resultado foi explosivo. Quando, porém, não existe esse compromisso por parte do governo, nem a situação da balança comercial e das reservas impõem uma desvalorização, se esta ocorre por uma decisão livre das autoridades, seus efeitos em reduzir a credibilidade das autoridades econômicas e produzir inflação são muito menores.

  • 1
    JEL Classification: F31; E58.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1997
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