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CEBS: MEMÓRIA DA CAMINHADA

CEB´s: a Memory of the Walk

RESUMO

O objetivo do artigo é compartilhar a memória tecida ao largo de cinquenta anos de acompanhamento das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) no Brasil. Trata-se de uma memória baseada em fatos, porém, observados a partir de uma perspectiva bem peculiar: a “participação observante” (Regina Novaes), própria de um pesquisador do campo da sociologia da religião que se encantou com o novo rosto da Igreja católica que tem emergido nas CEBs. As reflexões aqui compartilhadas pretendem homenagear o Pe. João Batista Libanio, SJ, grande cronista dos primeiros encontros Intereclesiais das CEBs e companheiro do autor em muitas atividades de assessoria. Por fim, a exposição das memórias obedece à hipótese avançada pelo autor de que estamos assistindo à emergência da 4ª geração das CEBs.

PALAVRAS-CHAVE
Comunidades eclesiais de base; Pastoral popular; Articulação pastoral; Sinodalidade

ABSTRACT

The aim of the article is to share the memory woven over fifty years of monitoring Basic Ecclesial Communities (BECs) in Brazil. It is a memory based on facts, however, observed from a very peculiar perspective: “observant participation” (Regina Novaes), typical of a researcher in the field of sociology of religion who has been enchanted by the new face of the Catholic Church that has emerged in the BECs. The reflections shared here are intended to pay tribute to Father João Batista Libanio, SJ, a great chronicler of the first Interchurch meetings of the BECs and the author’s companion in many advisory activities. Finally, the exposition of the memories follows the hypothesis put forward by the author that we are witnessing the emergence of the fourth generation of the BECs.

KEYWORDS
Base ecclesiastical communities; Popular pastoral; Pastoral articulation; Synodality

Introdução

Diferentemente da História, onde a subjetividade deve anular-se diante da objetividade, memória é espaço onde a subjetividade fica mais à vontade, desde que não contrarie os fatos objetivos. De todo modo, sabemos que não há objetividade pura: todo fato é “feito”, pois toda observação é seletiva e por isso é incapaz de perceber a totalidade. Digo isso para esclarecer que exponho aqui a memória que construí durante os cinquenta anos que tenho acompanhado as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – do Brasil. É baseada em fatos, evidentemente, mas fatos observados de um ponto de vista muito peculiar: de um pesquisador na área de sociologia da religião que se encantou ao conhecer essa face da Igreja católica — uma forma libertadora de ser cristã. Por isso, minha técnica de pesquisa não é a “observação participante”, mas, como dizia a antropóloga Regina Novaes, a “participação observante”. São as reflexões feitas a partir dessas observações que apresento aqui, fazendo homenagem ao Pe. J. B. Libanio sj, o grande cronista dos primeiros encontros Intereclesiais de CEBs e meu companheiro em muitas atividades de assessoria.

Como fio condutor dessas memórias, uso a categoria de geração, embora o faça sem definir precisamente a linha divisória entre as gerações, como requer o rigor sociológico. Tomei como referência fatos marcantes para cada geração, mas sei que outra pessoa, observando sob outra perspectiva, talvez escolhesse outros fatos. Assim, organizei essas memórias a partir de hipótese de que estamos assistindo à emergência da 4ª geração das CEBs. É o que narro a seguir.

1 1ª geração: a gênese

Situo a gênese das CEBs no período de 1960-75. É um tempo marcado pelo espírito do Concílio Vaticano II, quando a Igreja busca renovar-se por meio de Comunidades de Base como alternativa à paróquia, a CNBB elabora o Plano de Pastoral de Conjunto e se realiza a Conferência Episcopal de Medellín. Essa etapa se conclui com a realização do 1º Encontro Intereclesial, quando a reflexão sobre aquelas inovações suscita a realização de outro Encontro com um ano de preparação.

Muitos fatos daquele período confluem para dar origem às CEBs, e não tenho a pretensão de apontar sequer os mais importantes. Em todo caso, é certo que incidem ali tanto o movimento de renovação da Igreja católica desde a preparação até a recepção do Concílio Ecumênico do Vaticano II, quanto as mudanças sociais, políticas e econômicas, associadas ao “desenvolvimentismo” dos anos 1955-75. Na sua primeira metade, o crescimento econômico se deu num ambiente favorável à democracia, mas a segunda metade foi marcada pelo regime autoritário e repressivo imposto pelo golpe de 1964. Naquele contexto socioeconômico, a industrialização e o avanço do capitalismo no campo provocam o êxodo rural de famílias que ocuparão áreas do espa��o urbano em busca de moradia barata. Dada a dificuldade de criar e prover paróquias no mesmo ritmo dessas ocupações, os agentes de pastoral da Igreja inventam novas formas de atender pastoralmente a essas famílias recém-chegadas à cidade. Como toda inovação, também essas alternativas pastorais eram inspiradas em iniciativas da Igreja no meio popular, como a alfabetização e catequese de comunidades rurais por meio do rádio, o trabalho da Ação Católica – especialmente a Rural e Operária – e seu método ver, julgar e agir.

Eram iniciativas isoladas, até que, em suas férias na praia, D. Luiz Fernandes, bispo-auxiliar de Vitória, conversando com Eduardo Hoornaert, então padre da Arquidiocese de Recife, teve a ideia de convidar mais gente para refletir sobre aquelas experiências pastorais e discernir novos caminhos para a Igreja. Realizado em Vitória (ES), em 1975, o encontro foi definido como “intereclesial”, por reunir igrejas locais representadas por seus bispos, agentes de pastoral ou lideranças de comunidade de base, e peritos – como na época eram chamadas as pessoas convidadas a produzir um texto de fundamentação.1 1 Esses textos foram publicados no livro Comunidades Eclesiais de Base. Uma Igreja que nasce do Povo, pela Editora Vozes, em 1975. Eles são o primeiro esboço do que seria elaborado com mais rigor no II Intereclesial. Iniciava-se então o período de transição para a 2ª geração de CEBs.

Muitas pessoas contribuíram para essa gênese das CEBs e poderiam ser tomadas como representativas da geração que inventou a CEB fazendo “experiências” – como se dizia naquela época – no campo da pastoral popular. Dentre essas pessoas tomo como exemplo o Pe. José Marins, de Botucatu-SP, que dirigindo o Movimento para um Mundo Melhor, buscava reformar a paróquia, até que descobriu as CEBs e com elas se empolgou, tornando-se um autêntico apóstolo das CEBs por toda a América Latina e noutros Continentes. Até hoje é um entusiasta dessa nova forma de ser Igreja, que ele apresenta como a melhor expressão contemporânea do projeto de Jesus.

2 2ª geração

Em 1976, entra em cena a 2ª geração de CEBs, aquela que vai vivenciar seu desenvolvimento e seus primeiros frutos. Ao datar seu início em 1976, na realização do 2º Intereclesial de CEBs, em Vitória (ES), quero enfatizar que é nesse encontro que se firmam suas bases: a fundamentação bíblica – elaborada no texto Flor sem defesa do Frei Carlos Mesters (MESTERS, 19834___________. Flor sem defesa: reflexões sobre a leitura popular da Bíblia. Petrópolis, Vozes 1983.) – e a fundamentação teológica – no texto de Leonardo Boff: Eclesiogênese (BOFF, 19772 BOFF, L. Eclesiogênese: as Comunidades de Base reinventam a Igreja. Petrópolis, Vozes 1977.). Esse encontro reúne lideranças de comunidades, agentes de pastoral e bispos, bem como alguns assessores encarregados de ler e comentar os relatos de experiências das comunidades como material para sua elaboração teórica. Participam também convidados da Alemanha e um bispo do México. Talvez a principal conquista desse Encontro tenha sido o entendimento das CEBs como base da Igreja desejada pelo Concílio Vaticano II. Ali nascia, à vista de quem quisesse ver, uma forma de Igreja com rosto de trabalhadores do campo e da cidade, gente sofrida da periferia, animada pela Palavra de Deus e disposta a buscar e trilhar o difícil caminho de sua Libertação. E isso em plena comunhão com seus pastores ali presentes!

A dimensão de luta social e política, contudo, restringia-se às lutas locais por melhores condições de moradia, acesso à terra e ao trabalho. Embora o bispo Pedro, do Araguaia, insistisse que era preciso ser claro e condenar o capitalismo como causador dos sofrimentos do povo trabalhador, foi convencido de que isso seria prematuro, devido ao contexto de repressão policial e militar da época. Essa condenação explícita do capitalismo teve que aguardar o 3ª Intereclesial, de João Pessoa (PB), em 1978. Ali, a participação popular aumentou e diversificou-se – inclusive pela presença de representantes de povos originários – e ficou como símbolo daquele encontro o machado que deve cortar pela raiz o capitalismo, identificado como a principal fonte das opressões cometidas contra os pobres. Em consequência, a categoria oprimido/a passou a se sobrepor à categoria pobre.

No 4º Intereclesial (1981), aquela base bíblico-teológica é complementada pela reflexão sobre as práticas de ação na sociedade (no mundo do trabalho rural e urbano, sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos), fazendo das CEBs importantes atores no cenário da sociedade brasileira. Elas participam e reforçam as lutas sociais pela Democracia e pelos Direitos Humanos. Seu resultado são as conquistas sociais da Constituição Cidadã de 1988.2 2 Trabalhei esse tema com mais detalhes em OLIVEIRA, 2014, p. 130ss. “Contribuições de Libanio para a refundação das CEBs”: Perspectiva Teológica: 2014, vol. 46: 130.

Vale notar que a cada Intereclesial essa geração abre novos horizontes para a atuação das CEBs: o 5º Intereclesial em Canindé (CE), em 1983, dá às CEBs dimensão nacional, com representantes de todos os regionais da CNBB; o 6º, em Trindade (GO), no ano de 1986, é preparado com a participação da coordenação ampliada, com representação nacional; o seguinte, em Duque de Caxias (RJ), em 1989, abre seu horizonte para a América Latina e o Ecumenismo; enfim, o 8° Intereclesial, em Santa Maria (RS), em 1992, fecha essa etapa ao incorporar o tema das culturas3 3 No clima da Conferência de Santo Domingo, onde o tema da cultura devia tomar o lugar do tema da opressão social, a solução encontrada pela Coordenação foi usar a categoria culturas oprimidas, o que permitiu a abordagem de temas que a hierarquia eclesiástica preferia evitar, ou como os direitos das mulheres e as religiões dos povos originários e dos negros, abrindo assim o que veio a ser chamado macroecumenismo. . Embora os encontros seguintes também levantem temas para a reflexão, eles são, antes, momentos fortes de animação das CEBs – já então sofrendo a marginalização eclesiástica – do que alavancas para a caminhada.

Essa geração que viveu a consolidação e o avanço das CEBs começa a perder seu vigor no contexto dos anos 90: pelo lado sócio-político, a hegemonia neoliberal ganha força, e pelo outro, da Igreja, é o catolicismo carismático que avança, respaldado pelo clero sob o pontificado de João Paulo II. Por isso, considero que o período áureo das CEBs, iniciado em 1976 com o 2º Intereclesial, termina após o 8º Encontro, de1993. Penso que Frei Betto seja a figura que melhor representa essa geração: organizador dos dois primeiros Intereclesiais – ao lado de D. Luís Fernandes – teve papel importante como assessor do 3º e mais ainda no 4º Intereclesial, quando trouxe para as CEBs a experiências das lutas operárias e embates políticos do ABC Paulista, sendo o grande responsável pelo avanço da reflexão sobre a dimensão política da Fé. Por isso, é até hoje uma grande referência para as CEBs.

3 3ª geração

A 3ª geração de CEBs desponta no período preparatório do 9° Encontro, realizado em São Luís (MA), em 1997. Apesar do entusiasmo de suas lideranças, era quase impossível avançar na caminhada devido às restrições impostas pela hierarquia eclesiástica. No contexto de “volta à Grande Disciplina”, bem descrito por J. B. Libanio, as CEBs sofreram o processo de marginalização no interior da grande Igreja. Embora elas continuassem a contar com o apoio da CNBB – que no doc. 25, de 1982, as tinha reconhecido como “nova forma de ser Igreja” – e um grupo de bispos e padres estivessem convencidos de seu valor como instrumento pastoral com fundamentação no Concílio Vaticano II, sua atuação no espaço eclesiástico tornou-se cada vez mais esparsa, tornando-se praticamente invisível na institucionalidade eclesiástica. Sinal disso é que a expressão “Comunidades Eclesiais de Base” foi desde então praticamente banida de documentos oficiais da CNBB, sendo substituída por expressões que não indicassem serem elas a base da Igreja.

Essa situação de marginalidade institucional não impediu, contudo, a realização de Encontros Intereclesiais. Depois de São Luís, foram realizados encontros nas dioceses de Ilhéus (BA), em 2000; Itabira (na cidade de Ipatinga, MG), em 2005; Porto Velho (RO), em 2009; Crato (em Juazeiro do Norte, CE), em 2014 e Londrina (PR), em 2018. Todos eles foram, cada um a seu modo, encontros com a presença de numerosas lideranças leigas e muitos bispos, com representantes de todos os Regionais da CNBB. Diferentemente dos anteriores, sua marca principal não foi fazer avançar a caminhada pela abertura de novos campos de atuação, mas, sim, conseguir manter o clima de animação dos participantes. Apesar de nem todas as pessoas delegadas pelos Regionais terem experiência de CEBs, o clima de assembleia com grande número de participantes favorecia que todas elas voltassem para suas dioceses animadas por serem parte da Igreja católica. Celebrações criativas e orantes reforçavam esse clima de animação. Assim, os Intereclesiais iam deixando de ser um encontro propriamente de CEBs, visando sua reflexão e avaliação, e caminhavam na direção de se tornarem encontros da Igreja católica com abertura ecumênica e macroecumênica.

Nesse contexto de esvaziamento institucional das CEBs, suas lideranças vivenciaram tempos difíceis: as CEBs que elas conheceram na sua juventude – ou mesmo nas quais foram criadas desde pequenas – já sofriam cada vez mais restrições da parte dos bispos e padres. Com frequência, bispos que as apoiavam eram sucedidos por outros dispostos a restaurar a estrutura paroquial e nela enquadrar as CEBs. Algumas dioceses e paróquias perseveraram na caminhada, mas eram claramente minoritárias no conjunto do Brasil. Apesar de tudo, essa geração resistiu e insistiu no projeto original de nova forma de ser Igreja, mesmo percebendo que diminuía o número de seus membros e o de seus apoiadores.

Essa 3ª geração ganhou novo alento com a eleição de Francisco como Papa, mas percebe que não são muitos os bispos e padres que lhe dão verdadeiro apoio: embora professem sua adesão ao Papa, sua prática na pastoral é aquela que foi estabelecida nos dois pontificados anteriores. Para completar o quadro de dificuldades, é preciso ter em conta também o assédio neopentecostal nos meios populares e a pandemia de covid, que impediu as reuniões presenciais e provocou a dissolução de muitos grupos bíblicos. Como se não fosse o bastante aqueles sofrimentos, o obscurantismo e a necropolítica do último governo (Bolsonaro, 2019-2022) dificultaram ainda mais a existência das CEBs. Foi então que, no período preparatório do 15° Intereclesial, abriu-se espaço para o surgimento de uma 4ª geração de CEBs, agora em sintonia com o projeto de Igreja sinodal e em saída para as periferias, como quer Francisco. É o que veremos em seguida.

Como nas demais gerações, várias figuras poderiam ser apontadas. Destaco uma: Marilza Schuina, de Cuiabá, que ainda muito jovem participou do 7º Intereclesial e, desde então, tem participado das articulações em nível regional ou nacional, seja nas CEBs, seja no Conselho Nacional do Laicato – CNLB. Teve papel de destaque na preparação e realização do 15º Intereclesial e equilibra seu entusiasmo pelas CEBs com o senso de realidade. Ela bem representa essa geração que resistiu em tempos difíceis e traz sua contribuição para o novo tempo que agora se abre.

4 4ª geração

A realização do 15º Intereclesial em Rondonópolis (MT), em 2023, marca uma virada no histórico dos encontros de CEBs. As diferentes análises feitas apontam que um de seus pontos altos foi o bom entrosamento entre todos os participantes: leigas e leigos representantes das bases, padres, religiosas, bispos e outros agentes de pastoral. Diferentemente dos encontros anteriores, ele não teve a pretensão de reunir representantes de dioceses, mas sim pessoas representativas da caminhada, fossem elas animadoras de CEBs ou tivessem outro engajamento pastoral – p. ex. Pastoral da Terra, Indigenista, dos Trabalhadores, da Juventude e outras. Esse fato deu ao 15º Intereclesial o caráter de grande encontro do que chamo “articulação pastoral da Igreja católica”4 4 A rigor deveria usar o conceito de estrutura, mas preferi falar aqui de articulação para evitar o problema teórico implicado naquele conceito e usar uma forma mais descritiva (cf. OLIVEIRA, 2023, p. 208-216). . Não por acaso, destacou-se a palavra Intereclesial para designar o evento que, de fato, não se restringiu à reflexão sobre a realidade e os problemas das CEBs, e sim a questões que afetam toda a Igreja – ou melhor, sua articulação pastoral – que será objeto de análise mais adiante.

Esse formato resultou de duas decisões tomadas durante a fase preparatória: distribuir as vagas para participantes conforme sua participação nas CEBs (e não por dioceses, como nos encontros anteriores) e para representantes de pastorais e movimentos com afinidade pastoral, na qualidade de convidados (o que na prática não fazia diferença na forma de participação durante o evento). Essas decisões decorreram das dificuldades financeiras e locais para a realização do encontro, e levaram a compensar a redução no número de participantes (em relação aos Intereclesiais anteriores) pelo aumento de pessoas que traziam sua experiência de CEB e/ou de Pastoral. Não sei avaliar até que ponto essas decisões foram tomadas tendo em vista as condições práticas do encontro ou já prevendo seu resultado positivo. Mas o fato é que a natureza e o desenrolar do 15º Intereclesial marcaram uma virada na trajetória dos Encontros Intereclesiais. Ainda é muito cedo para se prever quais serão os resultados do 15º Intereclesial para as CEBs e para a Igreja da caminhada. Mas uma possibilidade real é a retomada da articulação pastoral da Igreja, agora sob a diretriz da sinodalidade.

Antes de abordar esse tema com o qual concluo o texto, porém, quero indicar de onde viria a pessoa capaz de representar essa 4ª geração. Não posso apontar nomes, evidentemente, porque somente com o decorrer do tempo poderemos verificar se o processo aqui previsto vai ou não se realizar. Posso, contudo, apontar o terreno pastoral onde essa 4ª geração dá sinais de surgir com força transformadora: é o grupo de jovens que no último dia do encontro subiu ao tablado do estádio para se apresentar e mostrar sua decisão de seguir em frente na caminhada. Uma daquelas jovens provavelmente vai se destacar e será um dia conhecida como liderança de CEB no Brasil.

5 Olhar para a frente: sinodalidade e articulação pastoral

Ao convocar o novo sínodo sobre a sinodalidade, Francisco abriu uma porta de renovação/reforma para a Igreja universal. Certamente ele pretende, com isso, fazer avançar o processo de mudanças estruturais aberto pelo Concílio Ecumênico Vaticano II. Porém, setores da hierarquia e do clero estão fazendo o possível para fechar essa porta. Por isso, prefiro dizer que a porta está entreaberta: é possível passar por ela, mas isso exigirá bastante esforço. De todo modo, descortina-se um novo espaço para as CEBs na Igreja católica romana, e apresento aqui uma pista para elas voltarem a marcar sua presença: trata-se de aproveitar a experiência da articulação pastoral que marcou a Igreja no Brasil entre os anos 1970 e 2000. Isso não significa fazer uma volta no tempo, mas revisitar aquela etapa da Igreja do Brasil e tirar as lições para o novo tempo que se (entre)abre.

Uso o adjetivo pastoral para qualificar a articulação entre setores da Igreja oriundos das diretrizes reformadoras do Concílio Vaticano II, porque este foi qualificado por Papa João XXIII como um concílio pastoral. A Conferência Episcopal de Medellín, em 1968, pode ser tomada como marco inaugural dessa articulação entre três novos organismos sintonizados com o Concílio Vaticano II: os organismos de colegialidade (conferências episcopais), os organismos de participação desde as bases populares (Comunidades Eclesiais de Base – CEBs) e novos organismos de serviço à sociedade (pastorais sociais). Cada um deles tem seu campo de ação autônomo e, teoricamente, poderia existir sem os demais; mas, ao se relacionarem de modo articulado, criam um novo agir eclesial. Vejamos cada um desses organismos e suas inter-relações, para entender em que consiste essa novidade.

Na base dessa articulação estão as CEBs que, nascidas em áreas carentes de padres, tiveram o atendimento pastoral e sacramental da população local realizado por seus próprios leigos e leigas. Assumidas pela Conferência Episcopal de Medellín, em 1968, como resposta à proposta de renovação da Igreja, elas foram reconhecidas pelo documento nº 25 da CNBB de 1982, como “nova forma de ser Igreja”.

Estimativa projetada a partir de um amplo levantamento realizado em 1993 apontava a existência de 70 a 80 mil comunidades espalhadas por todo o Brasil. Hoje, seu número é certamente bem menor, mas elas continuam a congregar leigas e leigos que se organizam de modo solidário para fazer a celebração dominical, cultivar a fé cristã pela reflexão bíblica em pequenos grupos e, de alguma maneira, atuar na melhoria das condições do lugar onde vivem. Sua capilaridade social é a chave para explicar sua capacidade de mobilizar pessoas: formadas por pessoas de liderança local e respeitadas por sua prática solidária com pessoas necessitadas e com as lutas populares, elas são capazes de mobilizar a vizinhança para campanhas ou movimentos de reivindicação social. Para essa mobilização é muito importante a cobertura da Igreja: aqui entra o papel dos bispos, especialmente quando agem organicamente por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil — CNBB.

No ápice dessa articulação está a figura do bispo. Além de desempenhar a função de legitimar a pastoral de sua diocese, a organização dos bispos católicos do Brasil na CNBB consegue superar as particularidades diocesanas e imprimir os rumos da Igreja em âmbito nacional. Isso a torna apta a dar cobertura institucional às mobilizações das bases eclesiais, sejam elas as CEBs, os movimentos, os grupos de jovens ou outros grupos paroquiais. Por esse canal fluíram lutas sociais que não se pode esquecer, como foram as mobilizações contra a tortura e em favor dos Direitos Humanos; em defesa dos povos originários; pela Constituição Cidadã de 1988; pela Reforma Agrária e tantas outras. Ainda hoje, este é um importante conduto de campanhas em defesa dos Direitos Humanos, da Amazônia, contra a fome, pela vida humana e da Terra, bem como a mobilização suscitada a cada ano pela Campanha da Fraternidade.

A ponta dessa articulação pastoral são as pastorais sociais – da terra, indigenista, dos trabalhadores, carcerária, da criança, do menor, da saúde, dos pescadores e muitas outras, inclusive a Pastoral da juventude – e organismos equivalentes como são as Comissões de Direitos Humanos ou de Justiça e Paz. Esses organismos pastorais são como o motor social dessa articulação: por meio delas, a Igreja atua em favor de um setor da sociedade necessitado de apoio para a defesa de seus direitos. Embora as pastorais geralmente tenham poucos membros, seu trabalho é muito eficaz porque oferecem a seus agentes – clérigos, religiosas, leigos ou leigas – formação de boa qualidade e a possibilidade de dedicação em tempo integral à pastoral. Assim, esses e essas agentes de pastoral tornam-se referência na Igreja e na sociedade, sendo capazes de mobilizar muita gente em defesa das causas levantadas pelas pastorais sociais. Por isso, são geralmente reconhecidos/as como representantes da Igreja em seu setor de atuação, embora nem sempre contem com o apoio oficial de bispos locais.

As pastorais sociais exercem a função de visibilizar a presença da Igreja no setor da sociedade em que atuam, ao mesmo tempo em que trazem os anseios e valores daquele setor para a vida interna da Igreja. Essa função de ponte desempenhada pelas pastorais sociais dá à Igreja um rosto popular, jovem, camponês, indígena, negro, feminino, amazônico etc, conforme sua capacidade de trazer para o conjunto da Igreja os traços do setor da sociedade onde atua. Há, portanto, um duplo movimento: a Igreja prestando serviços à população em suas lutas sociais, e ganhando maior espaço de diálogo com a sociedade. O resultado é a inculturação do catolicismo no Brasil real.

Em resumo: na medida em que as CEBs, a CNBB e as pastorais sociais se relacionam de modo estável e se influenciam mutuamente, elas engendram o que chamo articulação pastoral. A CNBB, com seu prestígio institucional e situada no ápice dessa articulação, garante a identidade católica de seus componentes e os articula em âmbito regional e nacional. Quando ela se omite, essa função pode ser desempenhada por um grupo de bispos que, colegiadamente, representam a instituição eclesial. As CEBs, espalhadas por toda parte nas comunidades locais e atuantes nos movimentos sociais, dão sua capilaridade social e promovem a mobilização popular desde a base dessa articulação. Enfim, as pastorais sociais e entidades congêneres formam a ponta desse tripé ao atuarem em setores críticos da sociedade, dando assim à Igreja incidência sobre os temas de ponta da realidade social e política do Brasil.

Ao revisitar a articulação pastoral que vigorava há 30 anos, devemos levar em consideração não só sua estrutura em tripé, mas também o espírito que lhe dá dinamismo: ser parte da Igreja que está na caminhada. Caminhada é uma expressão que pretende dar conta da mudança provocada na Igreja católica a partir da recepção latino-americana do Vaticano II, provocando uma ruptura pastoral em relação à tradição consolidada nos pontificados que vão de Pio IX a Pio XII5 5 Libanio referia-se à “pequena tradição dos Pios”, iniciada com Pio VII. Eu tomo como início o pontificado de Pio IX. . Embora a distinção entre quem participa e quem não participa da caminhada não seja definida com critérios objetivos, seu uso é inequívoco para quem dela participa: designa as formas de catolicismo associadas a essa recepção latino-americana do Concílio Vaticano II6 6 Essa diferença expressava-se nas formas coloquiais de oposição entre “Igreja do Evangelho x Igreja da Tradição”, “Igreja de CEBs x Igreja de Paróquia”, ou “Igreja da Libertação” x “Igreja da Salvação individual”. . Por isso é pertinente a expressão usada por Marcelo Barros para designar essa forma de ser Igreja como Igreja da Caminhada.

Também importante é apontar a organização que sustenta em nível diocesano essa articulação pastoral: a Coordenação Diocesana de Pastoral. Ela dá visibilidade à caminhada no âmbito da diocese ao promover a articulação entre os diferentes setores de pastoral, o clero, as CEBs e associações religiosas, conforme as prioridades definidas em assembleias diocesanas presididas pelo bispo. Outra função-chave da Coordenação Diocesana de Pastoral é a promoção de cursos e encontros de formação destinados a agentes de pastoral e animadoras/es de CEBs, em resposta aos apelos dos “sinais dos tempos”. Enfim, sua articulação e operacionalidade eram sobremaneira facilitadas pelo fato de um único espaço – o Centro Diocesano de Pastoral – congregar todas as Pastorais, inclusive aquelas voltadas para a vida interna, como a catequese e a liturgia. Dado que os encargos administrativos ficavam a cargo da Cúria diocesana, conforme prescreve o Direito Canônico, o coordenador – em alguns casos, a coordenadora – de pastoral podia dedicar-se exclusivamente à função que lhe era atribuída pela assembleia diocesana de pastoral, que elegia. Essa eleição – sempre com o aval do bispo diocesano – era um importante fator de sua legitimidade como articulador/a da pastoral diocesana.

Não se falava, na época, que esse seria um modelo sinodal de Igreja particular. Hoje, porém, essa qualificação parece adequar-se muito bem àquelas assembleias que reuniam as forças vivas da diocese desde suas comunidades de base até a direção diocesana para definir o rumo de sua caminhada. Isso não esvaziava as funções do presbítero, mas impelia-o a cumpri-las sempre em sintonia com as comunidades pelas quais era responsável. Também o bispo era obrigado a mudar a forma de governo, abrindo mão de seu poder autocrático em favor das decisões tomadas pela assembleia diocesana. Assim, ao ter sua autoridade respaldada por decisões tomadas em conjunto, passava a ter maior capacidade de conduzir sua diocese no rumo traçado pela assembleia – sempre com sua aprovação final7 7 Ao terminar uma assembleia diocesana em São Mateus-ES, o locutor disse (literalmente): “agora vamos caminhando em procissão até a catedral, acompanhados por nosso Bispo, que vai na frente”. De fato, o bispo ia à frente de sua Igreja porque acompanhava as decisões tomadas pela assembleia. .

Conclusão

Depois de todas essas considerações, cabe avaliar a probabilidade de êxito dessa 4ª geração das CEBs impulsionar a articulação pastoral da qual elas são a base. Além da resistência imposta pelo Direito Canônico – que impõe o poder hierárquico dos ministros ordenados como única forma legítima de Igreja católica – neste momento, o patriarcado – forma de poder masculino ainda em vigor na sociedade contemporânea – também é um obstáculo a ser superado. Por sua vinculação histórica com o cristianismo, todo ataque ao patriarcado é percebido como ameaça à família e à ordem cristã. Daí a dificuldade encontrada pela articulação pastoral: sua fragilidade diante do monopólio masculino no espaço eclesiástico. Qualquer afronta ao patriarcado pode gerar fissuras na instituição eclesiástica, e sabemos o quanto uma instituição teme fissuras... A articulação pastoral é hoje desafiada a rejeitar o patriarcado e aceitar a igualdade de direitos e poderes entre os gêneros, ainda que isso provoque uma rachadura no edifício eclesiástico. Contudo, não se delineia tal cenário no horizonte atual, que aponta para uma tensão permanente entre a sinodalidade e o poder clerical.

Sou de parecer que a contradição entre aqueles dois modelos de Igreja católica deve ser pensada dialeticamente, isto é, como momentos contrários de uma mesma realidade, que tendem a se aguçar até o ponto em que o elemento novo provoque a dissolução do elemento velho, absorvendo-o numa nova forma. Se assim é, estamos presenciando hoje o embate entre o novo que quer desenvolver-se e o velho que não quer morrer. Nesse embate, novas forças surgem, acelerando o processo de mudança, como ensina o ecoteólogo Leonardo Boff, a partir da teoria do caos: foi nos momentos de crise/caos que despontaram as novas formas de vida no Planeta.

Tudo indica que o nundo atravessa hoje um desses momentos cruciais: a iminência do caos – destrutivo e criativo – suscita, dialeticamente, uma recomposição dos elementos vivos para criar uma ordem inteiramente nova. Nesse contexto, a articulação pastoral, agora rejuvenescida pelo ingresso de uma 4ª geração de animadoras e animadores de base, agentes de pastoral, religiosas, padres e bispos, sob o olhar simpático de Francisco, poderá fazer uma substancial contribuição à criação da sociedade do Bem-viver, inspirada na sabedoria dos povos originários de Nossa América.

Concluo este texto explicitando que é minha Fé no projeto de Deus para a Criação, confirmado pela Ressurreição do profeta crucificado pelo conluio entre o Templo e o Império, o alimento desta Esperança de um dia vermos a Justiça e a Paz a reinarem no mundo.

Assim, espero poder ver no 16º Encontro Intereclesial, no Espírito Santo, os primeiros passos dados nessa direção.

  • 1
    Esses textos foram publicados no livro Comunidades Eclesiais de Base. Uma Igreja que nasce do Povo, pela Editora Vozes, em 1975. Eles são o primeiro esboço do que seria elaborado com mais rigor no II Intereclesial.
  • 2
    Trabalhei esse tema com mais detalhes em OLIVEIRA, 20146___________. Contribuições de Libanio para a refundação das CEBs. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 46, n. 130, p. 475-500, Set./Dez., 2014., p. 130ss. “Contribuições de Libanio para a refundação das CEBs”: Perspectiva Teológica: 2014, vol. 46: 130.
  • 3
    No clima da Conferência de Santo Domingo, onde o tema da cultura devia tomar o lugar do tema da opressão social, a solução encontrada pela Coordenação foi usar a categoria culturas oprimidas, o que permitiu a abordagem de temas que a hierarquia eclesiástica preferia evitar, ou como os direitos das mulheres e as religiões dos povos originários e dos negros, abrindo assim o que veio a ser chamado macroecumenismo.
  • 4
    A rigor deveria usar o conceito de estrutura, mas preferi falar aqui de articulação para evitar o problema teórico implicado naquele conceito e usar uma forma mais descritiva (cf. OLIVEIRA, 20237___________. Convite à Sociologia da Religião. Juiz de Fora, Edição do Autor 2023., p. 208-216).
  • 5
    Libanio referia-se à “pequena tradição dos Pios”, iniciada com Pio VII. Eu tomo como início o pontificado de Pio IX.
  • 6
    Essa diferença expressava-se nas formas coloquiais de oposição entre “Igreja do Evangelho x Igreja da Tradição”, “Igreja de CEBs x Igreja de Paróquia”, ou “Igreja da Libertação” x “Igreja da Salvação individual”.
  • 7
    Ao terminar uma assembleia diocesana em São Mateus-ES, o locutor disse (literalmente): “agora vamos caminhando em procissão até a catedral, acompanhados por nosso Bispo, que vai na frente”. De fato, o bispo ia à frente de sua Igreja porque acompanhava as decisões tomadas pela assembleia.

Referências bibliográficas

  • 1
    COMUNIDADES Eclesiais de Base: uma Igreja que nasce do povo. Petrópolis, Vozes 1975.
  • 2
    BOFF, L. Eclesiogênese: as Comunidades de Base reinventam a Igreja. Petrópolis, Vozes 1977.
  • 3
    MESTERS, C. Flor sem defesa: ler o Evangelho na Vida. SEDOC, Petrópolis, Vozes, 1976, p. 326-392
  • 4
    ___________. Flor sem defesa: reflexões sobre a leitura popular da Bíblia. Petrópolis, Vozes 1983.
  • 5
    OLIVEIRA, P.A.R. CEBs: o despontar da quarta geração. In: https://www.ihu.unisinos.br/632134-cebs-o-despontar-da-4-geracao-artigo-de-pedro-a-ribeiro-de-oliveira
    » https://www.ihu.unisinos.br/632134-cebs-o-despontar-da-4-geracao-artigo-de-pedro-a-ribeiro-de-oliveira
  • 6
    ___________. Contribuições de Libanio para a refundação das CEBs. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 46, n. 130, p. 475-500, Set./Dez., 2014.
  • 7
    ___________. Convite à Sociologia da Religião Juiz de Fora, Edição do Autor 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2024
  • Aceito
    03 Abr 2024
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