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ESCATOLOGIA CRISTÃ E PRÁXIS

Christian Eschatology and Praxis

RESUMO

O objetivo do artigo é tratar da relação entre escatologia cristã e práxis, focando na dimensão escatológica do presente. Historicamente, a escatologia clássica se ocupou do futuro absoluto e ignorou o presente histórico. A vida presente era relegada à condição de provação. A escatologia era vista como uma futurologia cristã. As teologias da práxis, na segunda metade do século XX, descobriram a dimensão escatológica do presente. A escatologia passa a ser vista como a disciplina teológica que trata das realidades últimas a partir das penúltimas. O presente histórico conquista uma visibilidade escatológica. Ocupando-se do presente, a escatologia desenvolve um aspecto crítico e libertador. A metodologia do artigo é bibliográfica em sintonia com teólogos da práxis (teologia política, da libertação e da esperança) e com os comentaristas da dimensão prática da teologia. O percurso metodológico reflete sobre a dimensão escatológica da atividade de Jesus, a densidade escatológica do presente histórico, o aspecto escatológico das teologias da práxis e a relação entre escatologia e ética.

PALAVRAS-CHAVE
Escatologia; Futuro; Presente; Práxis

ABSTRACT

This article deals with the relationship between Christian eschatology and praxis, focusing on the eschatological dimension of the present. Historically, classical eschatology was concerned with the absolute future and ignored the historical present. Present life was relegated to the condition of probation. Eschatology was seen as Christian futurology. In the second half of the 20th century, the theologies of praxis discovered the eschatological dimension of the present. Eschatology comes to be seen as the theological discipline that concerns ultimate realities drawn from penultimate realities. The historical present gains eschatological visibility. By dealing with the present, eschatology develops a critical and liberating aspect. The bibliographical methodology employed in the article is in line with the theologians of praxis (political theology, liberation theology, and the theology of hope) as well as with commentators on the practical dimension of theology. The methodological approach reflects on the eschatological dimension of Jesus’ activity, the eschatological density of the historical present, the eschatological aspect of the theologies of praxis, and the relationship between eschatology and ethics.

KEYWORDS
Eschatology; Future; Present; Praxis

Introdução

A escatologia, até a primeira metade do século XX, era vista como uma futurologia cristã. Consistia numa disciplina teológica que oferecia informações sobre os acontecimentos futuros (céu, inferno, purgatório, juízo etc.). A escatologia foi reduzida à condição de uma disciplina que tratava de uma visão descritiva dos eventos cosmológicos derradeiros. Tinha um caráter puramente informativo e previsionista dos desdobramentos da vida pós-mortal. Ela era vista como um setor que se ocupava de uma geografia futura da fé cristã. Era uma disciplina que cuidava dos eventos futuros do cristianismo. Esses eventos eram vistos sem ligação com a vida presente, a qual era vista como um período de provação. A futurização da escatologia terminou por ignorar o presente histórico. Não havia uma relação de continuidade entre a vida presente e a vida futura.

A consideração do presente, por parte da escatologia, se dá com as teologias da práxis (teologia política, da esperança e da libertação). A escatologia não deve tratar apenas das realidades últimas, mas também das penúltimas. O presente histórico está em sintonia e continuidade com o futuro absoluto. A valorização do presente proporcionou o desenvolvimento de um aspecto crítico-libertador da escatologia. A vida plena prometida por Deus no estágio pós-mortal já deve ser vivida na vida terrena. Assim, a escatologia se comporta de forma crítica frente às estruturas sociais, políticas e econômicas que não oferecem uma vida digna para o ser humano, a sociedade e as demais criaturas nesta vida terrena.

Pautando na relação entre escatologia e práxis, o artigo refletirá sobre a dimensão escatológica da atividade de Jesus; a dimensão escatológica do presente; a transformação do mundo e esperança cristã; a dimensão escatológica da teologia política e da libertação e sobre a relação entre escatologia e ética. A metodologia do artigo será bibliográfica e em diálogo com os teólogos e os comentaristas das teologias da práxis.

1 A dimensão escatológica da práxis de Jesus

A pregação e a ação de Jesus estão circundadas por um ambiente escatológico. Trata-se um ambiente cultural e religioso em que se esperava a irrupção de Deus na história. Acreditava-se que Deus interviria na história para emitir o seu juízo sobre todo o criado. Havia uma expectativa escatológica da proximidade de Deus, da sua intervenção da história e do advento do seu Reino por diversos movimentos religiosos e políticos. Assim, o judaísmo do tempo de Jesus estava eivado de um horizonte escatológico em que se esperava a ação de Deus. Por isso, era um cenário em que se pregava a conversão, a penitência e a vinda iminente de Deus.

Diante desse cenário, a dimensão escatológica faz parte do núcleo central da atividade de Jesus. Jesus, juntamente com João Batista, compartilhava da crença de que Deus interviria na história e a julgaria. Toda a criação e a história estariam submetidas ao juízo de Deus. O núcleo da pregação de Jesus é constituído pelo Reino de Deus que consiste na esperança da ação escatológica de Deus na história. Deus interviria na história e estabeleceria o seu reinado. Na pregação de Jesus, o Reino de Deus não é somente uma realidade futura e iminente (Mt 4,17; 10,7; Mc 1,15; Lc 10,9-11), mas já em ação e atuação (Lc 11,20; Mt 12,28) em sua pessoa. “Jesus não só anuncia o Reino de Deus que vem, mas o anuncia presente e ligado à sua pessoa e à sua missão. Ele é, pois, ao mesmo tempo anunciador e portador do Reino de Deus” (SEGALLA, 1992SEGALLA, G. A cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1992., p. 54). Jesus é o mediador, o interprete e o executor da presença do Reino de Deus na história. Em Jesus, o Reino de Deus já está acontecendo. Jesus é ação escatológica de Deus na história. Ele é o messias escatológico, já na sua missão terrena.

Na pregação de Jesus, as parábolas sobre o Reino de Deus estão perpassadas por uma dimensão escatológica. Jesus colocou o “reinado de Deus no centro de sua mensagem escatológica. É também característica de Jesus a concentração no lado salvífico da ação escatológica de Deus, sem, no entanto, omitir seu correlato, o juízo” (THEISSEN; MERZ, 2002THEISSEN, G.; MERZ, A. O Jesus histórico. São Paulo: Loyola, 2002., p. 264). As parábolas apresentam o Reino de Deus como juízo e apelo à conversão. Quem rejeita o convite, não usufruirá do banquete (Lc 14,24). Quem não possuir a veste nupcial, não participará do festim e será lançado fora, nas trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes (Mt 22,11-14). Na colheita, o joio será amarado em feixes e queimado (Mt 13,30). A semente jogada em terreno infértil não produzirá frutos para a vida (Mt 13,3-23). Os peixes ruins, colhidos pela rede lançada ao mar, serão jogados fora (Mt 13,47-48). O Reino de Deus é uma oferta salvífica gratuita feita por Deus, quem o rejeita experimenta o juízo. Ele é também chamado à penitência e à conversão. “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,15). É necessário fazer penitência e converter-se, pois o juízo de Deus está próximo. O Reino consiste na presença escatológica de Deus.

O Reino de Deus manifesta sua presença através de sinais operados por Deus pela mediação de Jesus. Os sinais que expressam a sua presença são as curas, os milagres e os exorcismos praticados por Jesus. Através da realização de sinais, Jesus manifesta a presença salvífica de Deus. Na práxis de Jesus se dá a manifestação escatológica da presença de Deus. As curas, os milagres e os exorcismos suscitam a pergunta sobre quem é Jesus e sobre quem age pela mediação dele. “Pela pregação e conduta de Jesus, o presente se transforma no lugar onde o tempo verdadeiro cintila e o reinado de Deus entra na esfera da experiência humana” (THEISSEN; MERZ, 2002THEISSEN, G.; MERZ, A. O Jesus histórico. São Paulo: Loyola, 2002., p. 268). Na atividade de Jesus, está em operação a ação escatológica do Deus que salva. Através de suas ações, Jesus mostra que é o salvador escatológico enviado pelo Pai. Jesus é “um profeta apocalíptico, empenhado em situar os homens ante o grande mistério do Reino de Deus que supera os caminhos de morte da história” (PIKAZA, 1995PIKAZA, X. A figura de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1995., p. 41). Jesus situou e realizou sua vida na linha da esperança escatológica. Através das palavras e das ações de Jesus, é possível conjecturar que ele se autoconcebia e era percebido pelos discípulos como o anunciador e o portador escatológico da salvação.

A revelação escatológica de Deus se manifesta nas obras e nas palavras: em obras realizadas com poder e em palavras pronunciadas com autoridade. As obras, os milagres e os exorcismos demonstram a derrota das forças do mal e a irrupção do Reino de Deus que traz a salvação integral para o ser humano (Lc 11,14-20; 13,32; Mt 12,28). O Reino de Deus está no centro da pregação de Jesus, principalmente nas parábolas que possuem um forte teor escatológico. O Reino de Deus é perpassado por uma dimensão dinâmico-escatológica. Diante da chegada do Reino, Deus manifestará o seu senhorio e mostrará sua salvação para todo ser humano (SEGALLA, 1992SEGALLA, G. A cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1992., p. 54).

2 A dimensão escatológica do presente

A teologia clássica compreendia os eventos escatológicos (céu, inferno, purgatório, juízo, ressurreição dos mortos etc.) como acontecimentos futurísticos. A escatologia era relegada à condição de disciplina teológica que oferece uma descrição antecipada, uma espécie de reportagem das realidades futuras. Tratava-se de uma espécie de geografia das realidades derradeiras, que ofereceria uma descrição cosmológica dos eventos finais. Havia uma visão cosmológica e futurista sobre o que acontecia depois da morte. Os eventos escatológicos eram vistos como acontecimentos futuristas e derradeiros que não tinham um impacto no presente. Nesse contexto, “a vida presente era considerada pejorativamente como o tempo da prova e da tentação” (BOFF, 1997BOFF, L. Vida para além da morte. Petrópolis: Vozes, 1997., p. 27). A vida terrena era vista como o período em que se vivia entre o mérito e o demérito.

A futurização da escatologia clássica impossibilitou uma valorização da realidade presente. Havia um conhecimento antecipado do futuro de modo que o presente era ignorado na sua densidade escatológica e na sua possibilidade de determinação do futuro escatológico.

[Os] acontecimentos finais irromperiam de fora da história para dentro dela e poriam fim à história universal, na qual tudo se move e se agita. Mas, como esses acontecimentos foram adiados até o ‘último dia’, eles, no decorrer da história, perderam sua significação orientadora, animadora e crítica para os tempos vividos antes do fim”

(MOLTMANN, 2005MOLTMANN, J. Teologia da Esperança. São Paulo: Loyola-Teológica, 2005., p. 29).

Os eventos escatológicos não eram vistos como acontecimentos que emergiam de dentro da história, da criação, da sociedade, da Igreja e do ser humano, mas vinham de fora e afetavam as realidades terrestres. O futuro escatológico era visto como uma realidade externa que não estava relacionado com a história, a criação e o ser humano. Desse modo, o ser humano diante das asserções escatológicas concebidas como

informação de notícias antecipadas de acontecimentos futuros vem des-escatologizado, ou seja, se torna um ser que no seu presente enquanto tal não vem acolhido pelo futuro, porque o futuro é somente alguma coisa que não é ainda presente e não mais alguma coisa já presente como futuro; de consequência a mensagem escatológica se torna uma asserção que por agora não nos interessa, porque se refere somente a um tempo que é ainda futuro e nada mais

(RAHNER, 1965RAHNER, K. Principi teologici dell’ermeneutica di asserzioni escatologiche. In: Saggi sui sacramenti e sulla escatologia. Roma: Paoline, 1965, p. 399-440., p. 409).

As asserções escatológicas dizem respeito aos eventos futuros e, portanto, não interessam ao ser humano e não geram um impacto na sua vida presente. O futuro escatológico é o ainda-não e o que virá de fora. A esperança do futuro escatológico estava divorciada da vida presente. O futuro absoluto era visto como uma realidade tratava do além, porém sem nenhuma relação com o aquém.

A escatologia da segunda metade do século XX, com o advento das teologias da práxis (teologia política, da esperança, da libertação), deu audiência à dimensão escatológica do presente. O presente histórico e o futuro escatológico não são realidades extrínsecas e antagônicas. O presente histórico está orientado para o futuro escatológico. A história, a criação, a sociedade, a Igreja e o ser humano estão ordenados e determinados pelo futuro absoluto. O futuro escatológico está sendo gestado no presente histórico. “Mas se o presente não é instauração ativa e eficaz do futuro, do presente não se pode extrapolar nem afirmar algum futuro” (MOLTMANN, 1993MOLTMANN, J. Futuro della creazione. Brescia: Queriniana, 1993., p. 28, nota 9). O futuro não é simplesmente o ainda-não e uma realidade que vem externamente, mas a realidade mais íntima e determinante do presente terreno. “Os fins derradeiros constituem a potencialização plena daquilo que foi crescendo dentro desta vida” (BOFF, 1997BOFF, L. Vida para além da morte. Petrópolis: Vozes, 1997., p. 30). O futuro absoluto brota do interno do presente terreno. O futuro escatológico já está pré-contido no presente histórico.

O conhecimento do futuro é conhecimento da futuridade do presente, o conhecimento escatológico é o conhecimento do presente escatológico. A asserção escatológica não é uma asserção acrescentada, complementar, que é agregada à asserção acerca do presente e do passado do homem, mas é um fato intrínseco da autocomprensão do homem

(RAHNER, 1965RAHNER, K. Principi teologici dell’ermeneutica di asserzioni escatologiche. In: Saggi sui sacramenti e sulla escatologia. Roma: Paoline, 1965, p. 399-440., p. 415).

O presente histórico não pode ser ignorado em sua densidade escatológica, sendo relegado a uma realidade puramente imanente e externa ao futuro absoluto. O presente está grávido de futuridade. O presente histórico está orientado para o futuro escatológico, assim como o futuro escatológico está latente no presente terreno.

Porém, o futuro escatológico não será simplesmente um desdobramento e nem um prolongamento do presente histórico. Se o futuro escatológico fosse somente uma extensão do presente histórico, o futuro seria substancialmente igual ao presente. Assim, o mesmo presente terreno seria o mesmo futuro absoluto. O futuro seria uma eternização do presente. Não haveria uma descontinuidade, em termos de conteúdo e de duração, entre presente terreno e futuro escatológico. Mas, o futuro escatológico terá um componente de continuidade com o presente terreno de modo que haverá uma identidade entre ambos. No entanto, o futuro escatológico tem uma dimensão de novidade substancial em relação ao presente histórico. No futuro escatológico, as realidades (a história, a criação, a Igreja, o ser humano) serão as mesmas do presente histórico, porém ontologicamente transformadas. A qualidade ontológica da vida futura é superior em comparação com a vida terrena. Assim, a nova criação será a criação do mundo presente, porém transformada ontologicamente; o ser humano da vida futura será o mesmo da vida presente, porém qualitativamente superior. Haverá uma relação de identidade e transformação entre presente histórico e o futuro absoluto.

A crença num futuro escatológico, cuja condição existencial é qualitativamente superior ao presente histórico, deve levar a uma transformação da situação do presente. A escatologia, enquanto esperança numa vida transformada futuramente, deve ser uma força de mobilização e instância crítica das situações da vida presente. “O cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só como apêndice; ele é perspectiva, a tendência para frente, e, por isso mesmo, renovação e transformação do presente” (MOLTMANN, 2005MOLTMANN, J. Teologia da Esperança. São Paulo: Loyola-Teológica, 2005., p. 30). A esperança não pode ser objeto de desejo e de realização somente de uma vida futura, mas deve ser uma força estruturante da realidade presente. Isso instiga a uma mobilização do presente de modo que o esperado futuramente já seja uma realidade desejada pelo presente. Assim, o Reino de Deus, a nova criação, a Igreja como comunhão dos santos, o ser humano renovado e a sociedade transformada não devem ser somente realidades desejadas no futuro escatológico, mas já em fase de implantação no presente histórico. Isso suscita um desejo de transformação e renovação das estruturas do presente. Assim, o esperado futuramente deve ser uma realidade já experimentada por antecipação no presente. “Nós não somos apenas os intérpretes do futuro: já somos colaboradores do futuro, cuja força, tanto na esperança como na realização, é Deus” (MOLTMANN, 1971MOLTMANN, J. Religione, rivoluzione e futuro. Brescia: Queriniana, 1971., p. 204).

O que faz com que o presente histórico esteja prenhe do futuro escatológico é a Palavra reveladora de Deus. A revelação de Deus fecunda a história, transformando-a em história da salvação. A revelação acontece no presente histórico e o transforma interiormente no sentido qualitativo. “A escatologia bíblica deve ser lida como asserção proveniente do presente, enquanto revelado, orientado para o futuro e não como asserção proveniente de um futuro antecipado e destinado ao presente” (RAHNER, 1965RAHNER, K. Principi teologici dell’ermeneutica di asserzioni escatologiche. In: Saggi sui sacramenti e sulla escatologia. Roma: Paoline, 1965, p. 399-440., p. 425). A ação reveladora de Deus ao transformar o presente histórico em uma realidade escatológica faz com que o fim já esteja presente no início. O escatológico já está presente no protológico. A história, uma vez fecundada pela revelação de Deus, está orientada para a sua consumação. A perfeição da criação não está no seu início, mas no seu fim. Assim, o velho Adão está orientado e se realiza no Adão escatológico, que é Jesus Cristo. Com o advento de Jesus Cristo, já começou a realização do tempo final. A encarnação transformou o presente em tempo de graça. Em Jesus Cristo, o futuro da história já está determinado. “O futuro é extrapolação daquilo que já é dado em Cristo e no Espírito” (BERKHOF, 1973BERKHOF, H. Sul metodo dell’escatologia. In: MARSCH, Wolf-Dieter (Org.). Dibattito sulla “Teologia dela Speranza” di Jürgen Moltmann. Brescia: Queriniana, 1973, p. 217-233., p. 227). Jesus Cristo é o escatológico personalizado. Pela mediação da encarnação do Verbo, o eterno fecundou o histórico, transformando-o ontologicamente. A entrada de Deus na história, pela mediação da encarnação, transformou-a em uma história escatológica. A práxis de Jesus foi a manifestação da ação escatológica de Deus em favor de seu povo. Jesus experimentou a expressão máxima da finitude com a sua morte, porém o Pai, na força do Espírito Santo, o ressuscitou manifestando a sua potência transformadora. A ressurreição do Filho é uma antecipação do que escatologicamente acontecerá com todo cristão. Na ascensão do Filho, a antropologia, pela mediação cristológica, por antecipação, já se torna teologia. Pela mediação da ascensão, o ser humano, a Igreja e a história já experimentam o que acontecerá no fim.

3 A transformação do mundo e a esperança cristã

O ser humano, criado à imagem de Deus, é chamado a ser um co-criador do mundo. O Deus trabalhador, que chamou o mundo à existência durante a semana criativa, exige que o ser humano também seja alguém que possa agir no mundo. O ser humano, como imagem de Deus, através de sua atividade e de seu trabalho é co-criador da realidade. Deus, com seu ato criador, não fez uma obra acabada e perfeita. A atividade humana aperfeiçoa a criação. A criação é uma realidade continua que está se aperfeiçoando. A criação é uma obra continua mediante a ação criativa do ser humano. Deus criou o mundo deixou um espaço na obra criativa para a ação transformador do ser humano. O ser humano como um espírito no mundo e imagem de Deus é convocado a “dominar o mundo”, ou seja, a colaborar com a ação criativa de Deus mediante a transformação do mundo. O horizonte transformador não possui uma orientação somente imanente e finita, com o escopo de uma qualificação exclusivamente espaço-temporal do mundo, mas contém um destino transcendente e escatológico. A transformação do presente não tem em seu horizonte somente a criação de condições humanas, justas e éticas no presente histórico, mas também de uma qualificação ontológica em vista do futuro escatológico. A ação transformadora do ser humano busca humanizar e qualificar a criação, preparando-a para a consumação escatológica. Toda ação dignificante da criação traz em seu bojo um desejo de definitividade.

A transformação do mundo é uma exigência da razão e uma verdade de fé revelada na criação do ser humano como imagem de Deus como o intento de “dominar o mundo”. Não se trata de um domínio despótico e tirânico, mas enquanto cuidador e zelador da obra criada. O ser humano é cuidador e não senhor da criação. A ação transformadora do mundo está aberta à esperança no futuro transcendente. A esperança no futuro definitivo não amortece e nem negligencia a ação transformadora e construtiva do ser humano no mundo. Segundo Constituição Pastoral Gaudim et Spes, n. 21, “a Igreja ensina que a importância das tarefas terrenas não é diminuída pela esperança escatológica, mas que esta antes reforça com novos motivos a sua implementação” (DENZINGER, 2007DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas-Loyola, 2007., n. 4321). A fé cristã não minimiza a necessidade da edificação e da construção da cidade terrena por sua crença na cidade definitiva. A esperança no além não desobriga a construção do aquém. “Longe de amortecer ou suprimir no homem sua responsabilidade de transformar o mundo com o seu trabalho, a esperança radicaliza esta responsabilidade e lhe dá um sentido mais profundo” (ALFARO, 1972ALFARO, J. Esperanza cristiana y liberación del hombre. Barcelona: Herder, 1972., p. 203). A ação do ser humano no mundo é uma preparação e antecipação em vista da salvação definitiva. A salvação é um dom de Deus, mas que pode ser preparada pela ação ética e construtiva do ser humano nesta vida presente. A transformação do mundo por obra do ser humano está integrada na incoação antecipadora de sua salvação futura. A esperança no futuro transcendente não só exige que o ser humano se empenhe na tarefa de transformar o mundo, mas dá a essa tarefa um sentido novo e último. A ação humana não visa simplesmente edificação do mundo terreno, mas possui um endereço definitivo. É uma forma de antecipação do que se espera no mundo definitivo já em ação no mundo terreno.

A ingente tarefa criativa que o homem foi desenvolvendo no mundo tem, pois, uma validade escatológica: contribui para edificação da Jerusalém celeste. Esta convicção possibilita ao cristianismo um estimulo para entregar-se à construção da cidade secular: a esperança cristã no mundo tal qual será entranha um inconformismo ativamente militante diante do mundo tal qual é. Se essa esperança é vivida intensamente, tem que supor um estímulo à ação e não uma espécie convite à passividade

(RUIZ DE LA PEÑA, 2002RUIZ DE LA PEÑA, J. L. La pascua de la creación. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 193-194).

A esperança na participação no mundo definitivo não nasce de um desejo exclusivamente antropológico. Não é o ser humano que forja e cria a esperança no futuro absoluto. “Não é o homem que com sua ação no mundo cria o futuro absoluto, mas Deus mesmo quem mediante a graça absoluta de Cristo e o dom antecipado de seu Espírito está levando o homem ao encontro definitivo com ele” (ALFARO, 1972ALFARO, J. Esperanza cristiana y liberación del hombre. Barcelona: Herder, 1972., p. 200). A oferta de uma participação no mundo definitivo não tem um fundamento antropológico, mas teológico. A esperança no futuro absoluto, a promessa de uma salvação e a participação na vida eterna não brotam da ação do ser humano no mundo, mas trata-se uma oferta de Deus. No entanto, o ser humano é capaz de acolher essa oferta divina de participação na vida definitiva e antecipá-la na cidade terrena por meio de sua ação construtiva e responsável na edificação do mundo. A esperança na participação no futuro definitivo de Deus não é mérito antropológico, mas dom divino. Porém, não se trata de um dom passivamente acolhido, mas consiste numa recepção ativa de modo que o ser humano responde à oferta do dom divino com sua ação no mundo em vista da participação do futuro absoluto. O dom da salvação escatológica não pode ser somente acolhido com o objetivo exclusivo de uma transformação interna e subjetiva do ser humano, relegando seu entorno à marginalidade e à periferia. O dom da participação na vida escatológica de Deus deve transformar o ser humano subjetivamente e objetivamente o seu entorno.

Por isso, o que passa à vida nova da ressurreição não é a dimensão puramente interior de suas decisões diante de Deus, mas seu ser pessoal autenticamente humano, esculpido pela dimensão humana de suas decisões encarnadas em sua ação transformadora do mundo”

(ALFARO, 1972ALFARO, J. Esperanza cristiana y liberación del hombre. Barcelona: Herder, 1972., p. 202).

O fio condutor que conecta a esperança cristã com a transformação do presente é o amor cristão, compreendido como o amor a Deus e ao próximo. O amor cristão não é um sentimento passivo, mas a força fecundante do humano que transforma e humaniza a realidade presente. A esperança se encarna na realidade como uma exigência intrínseca de transformação do presente como serviço ao ser humano. Somente uma esperança envolvida com a transformação na situação presente do ser humano é uma esperança autenticamente cristã. A esperança não é um sentimento passivo e subjetivista voltado para um futuro que vai chegar do externo, mas possui uma força pró-ativa e mobilizadora da situação presente. “Os crentes se sentem chamados a exercer uma constante função crítica das realizações intramundanas, posto que nenhuma delas se identifica com o futuro que lhes promete a esperança cristã” (RUIZ DE LA PEÑA, 2002RUIZ DE LA PEÑA, J. L. La pascua de la creación. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 193). A qualidade de vida que a esperança cristã promete para o futuro escatológico não se identifica, mas está em sintonia e continuidade com as realizações do futuro temporal. A esperança cristã não se reduz a um horizonte puramente imanente e nem se identifica com nenhum projeto político, social ou econômico. Porém, a esperança cristã é chamada a antecipar para o presente histórico o que é esperado no futuro escatológico. Assim, a esperança cristã mostra sua força ativa, propulsora e transformadora do presente histórico. A esperança cristã está presente no bojo do amor cristão por sua vocação transformadora, mobilizadora e humanizadora da situação presente do ser humano e da sociedade.

A esperança no futuro comum é vã se não inclui a solidariedade presente do amor cumprido na ação. O amor, plenitude da esperança, provoca o impulso em criar na terra todo o melhor possível para o homem. Fugir do compromisso pelo progresso do homem e por seu futuro no mundo é trair a esperança cristã

(ALFARO, 1972ALFARO, J. Esperanza cristiana y liberación del hombre. Barcelona: Herder, 1972., p. 205).

Os crentes, imbuídos do amor cristão, devem transformar as estruturas da sociedade, tornando-as detentoras de condições mais justas, acolhedoras e humanas para a convivência social.

O crente comprometido com a vivência do amor cristão procura articular as esperanças humanas com a esperança escatológica.

Como as esperanças humanas concretizam, antecipam em realização a esperança última? E como a esperança maior deixa-se caber na esperança pequena de nosso dia-a-dia, sem que nos envolvamos por mero projeto de interesses ideológicos? Até que ponto podemos engrossar uma corrente ideológica sem comprometer o caráter transcendental, universal e definitivo da mensagem escatológica?

(LIBANIO; BINGEMER, 1985LIBANIO, J. B.; BINGEMER, M. C. L. Escatologia cristã. Petrópolis: Vozes, 1985., p. 35).

As esperanças humanas não se identificam sem mais com a esperança escatológica. A densidade e a qualidade de vida que a esperança escatológica promete dista profundamente do que pode oferecer o futuro temporal, baseado nas esperanças humanas. Porém, a realização das esperanças humanas nesta vida terrena já é uma antecipação e uma antevisão do que promete a esperança escatológica. Toda ação humana e cristã que tem como escopo a elevação da dignidade humana, a criação de condições sociais justas e éticas para a convivência humana, a defesa da dignidade do meio ambiente como forma de criação de condições adequadas para a vida animal, vegetal e humana já são ações antecipadoras da esperança escatológica. Toda ação que cria condições favoráveis para uma qualificação da vida humana, da convivência social e da dignificação da casa comum contém um germe da esperança escatológica. Essa promete um estado de vida plena para o ser humano, a sociedade e a criação, isento do pecado, da morte, do sofrimento, da dor, da injusta e toda maldade e negatividade. Porém, quando essa promessa de vida plena no mundo escatológico pode ser vivida antecipadamente na realidade histórica, isso qualifica e humaniza as condições da vida terrena.

Uma teologia da esperança no reino de Deus que transforma o mundo conduz a um pensamento histórico da transformação. Essa se torna atual através da crítica à práxis seguida pelos cristãos e pelas igrejas na sociedade moderna e por meio da antecipação da nova criação esperada de todas as coisas

(MOLTMANN, 1991MOLTMANN, J. Che cos’è oggi la teologia? Due contributi ala sua attualizzazione. Brescia: Queriniana, 1991., p. 115).

4 A dimensão escatológica da teologia política

A teologia política surgiu na segunda metade do século XX e tem como principal representante o teólogo católico Johann Baptist Metz. A teologia dos tempos modernos, que perdurou até o início do século XX, tinha um viés mais transcendental, existencialista, personalista e privativo. Trata-se de uma teologia que reduziu à fé e a mensagem evangélica a uma questão pessoal. É uma teologia que prioriza a dimensão da subjetividade, do privado, do não-mundano e do não-político. Nesse contexto, a teologia política surgiu com a tarefa de ser corretivo crítico diante da tendência à privatização e à personalização da teologia moderna. Ela objetiva atuar na desprivatização crítica das bases da teologia. A teologia política também visa desenvolver as implicações públicas e sociais da mensagem cristã. O problema da teologia não consiste na relação que existe entre dogma e história, entre teologia sistemática e histórica, mas entre teoria e práxis, entre fé e responsabilidade social. As promessas escatológicas da tradição bíblica (liberdade, paz, justiça, reconciliação) têm uma dimensão pública e de responsabilidade social. Diante dessas promessas, o cristianismo é imbuído de uma dimensão crítico-libertadora diante do processo histórico-social. A salvação preconizada por Jesus se relaciona com o mundo no sentido político-social como elemento crítico-libertador do mundo social e do seu processo histórico (METZ, 1969METZ, J. B. Teologia do mundo. Rio de Janeiro: Moraes, 1969., p. 107-114).

A teologia política não deve ser encarada como teoria, da qual se deduz a práxis política e sim como hermenêutica política do evangelho, segundo a formulação de Moltmann, ou, como precisa Metz, como hermenêutica teológica de uma ética política

(GIBELLINI, 1998GIBELLINI, R. Teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998., p. 308).

É preciso realizar uma desmitologização, fazendo uma interpretação política da mensagem evangélica.

Uma categoria importante na teologia política de Metz é a “reserva escatológica” que consiste na confrontação das promessas escatológicas da teologia cristã com o presente histórico. As promessas escatológicas não estabelecem uma relação de negação e nem de identificação, mas crítico-dialética com o presente histórico.

As promessas às quais ela se liga não são um horizonte vazio de esperança religiosa nem uma mera ideia reguladora, mas um estímulo crítico e libertador do nosso presente. São um estímulo e a incumbência de as tornar eficazes e de as confirmar nas condições históricas do presente

(METZ, 1969METZ, J. B. Teologia do mundo. Rio de Janeiro: Moraes, 1969., p. 114).

As promessas bíblicas, com suas impostações públicas, transformam e renovam a existência presente e histórica. Portanto, as promessas de paz, de justiça, de liberdade e de reconciliação não possuem uma dimensão puramente subjetiva, intimista e privada, mas têm uma conotação de responsabilidade social e de transformação do presente histórico. Essas promessas conduzem a uma posição crítico-libertadora em relação às condições sociais que rodeiam a existência.

A escatologia cristã possui a força e a responsabilidade de ser a voz crítica em relação à sociedade. Ela exprime permanentemente a própria ‘reserva’ crítica ou a própria denuncia, em relação à pretensão da sociedade de se emancipar unicamente com base nas realizações humanas e mundanas

(ANCONA, 2013ANCONA, G. Escatologia Cristã. São Paulo: Loyola, 2013., p. 220-221).

A fé cristã, sendo guiada pelas promessas escatológicas, conquista uma posição crítica em relação ao mundo social que envolve a existência. O evangelho impulsiona o ser humano a entrar em confronto crítico com o contexto social no qual está inserido. “Cada teologia escatológica deve tornar-se, por isso, numa teologia política como teologia crítica (social)” (METZ, 1969METZ, J. B. Teologia do mundo. Rio de Janeiro: Moraes, 1969., p. 115).

A Igreja, enquanto instituição, está sujeita à reserva escatológica. A instituição eclesial não é autorreferencial, não anuncia a si mesma e nem busca sua auto-afirmação, mas está a serviço da salvação prometida a todos. “Esta condição pública da salvação não pode ser diminuída, subtraída ou destruída. Ela acompanha sempre o caminho histórico da mensagem salvífica. E no serviço desta mensagem à religião cristã foi confiado o rosto crítico e libertador” (METZ, 1998METZ, J. B. Sul concetto della nuova teologia politica. Brescia: Queriniana, 1998., p. 14). A Igreja não é proprietária da salvação, mas facilitadora desse bem público e social da fé cristã. A Igreja não salva, mas prega a salvação como dom escatológico de Deus oferecido a todos. A própria Igreja será salva pelo conteúdo cristológico que ela anuncia. A esperança que a Igreja anuncia não é uma esperança na Igreja, mas no reino de Deus.

Como instituição, a Igreja vive da proclamação constante de seu caráter provisório, devendo realizar institucionalmente o provisório escatológico ao estabelecer-se como instituição da liberdade crítica em relação ao processo social com todos os absolutismos e retraimentos que este implica

(METZ, 1969METZ, J. B. Teologia do mundo. Rio de Janeiro: Moraes, 1969., p. 117).

A Igreja é uma instituição histórica e provisória, cuja existência está situada entre a primeira e a segunda vinda de Jesus Cristo. Consciente de sua condição provisória, a Igreja deve cumprir sua tarefa crítico-libertadora em relação à sociedade e ao processo histórico.

A missão crítica da Igreja se definirá como um serviço à história da liberdade, mas exatamente como um serviço à libertação do homem. A Igreja seria então o sujeito da práxis libertadora animada pela mensagem evangélica. Para tanto, porém a Igreja deverá ser uma instituição não repressiva, mas crítico-libertadora

(GUTIÉRREZ, 1976GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 188-189).

Por sua sujeição à reserva escatológica, a Igreja critica toda visão de progresso técnico que reduz o ser humano ao seu aspecto material e também se posiciona criticamente ao uso instrumentalizado do ser humano para a construção de um futuro tecnologicamente racionalizado. A Igreja também é chamada a mostrar de forma crítico-libertadora que toda a história está sujeita à reserva escatológica de Deus. A história, na sua totalidade, não pode se tornar um conceito político. Nem o sujeito intramundano (um partido, uma nação, uma classe) pode se arvorar em se tornar um guia ou o motor da história. Deus é o criador, o sustentador e o horizonte último da história (METZ, 1969METZ, J. B. Teologia do mundo. Rio de Janeiro: Moraes, 1969., p. 117-119).

A reserva escatológica deve se tornar também em reserva da teologia que se coloca como voz crítica diante do presente histórico em nome do futuro de Deus. Deste modo, a perspectiva escatológica torna realmente política toda teologia e por sua vez é próprio da perspectiva política tornar-se realmente escatológica toda teologia e realmente teológica toda escatologia, apresentando-a como o discurso crítico sobre a antecipação prática, isto é, social e política daquilo que a Igreja recorda sobre Jesus e por isso o espera como dom último de Deus

(NITROLA, 2001NITROLA, A. Trattato di escatologia. v.1. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2001., p. 89).

A teologia, na medida em que se torna uma instância crítica diante das situações e das estruturas do presente histórico, se converte em uma magnitude política e escatológica. A teologia escatológica se torna uma teologia política na proporção em que denuncia as estruturas corruptoras da sociedade, as situações pecaminosas que corroem a dignidade humana e as ações que degradam o meio ambiente. “A escatologia cristã possui um poder construtivo. Ela provoca e obriga a sociedade a construir o presente histórico na lógica das promessas escatológicas. A prática teológica é caracterizada pela qualificação prático-política da esperança cristã” (ANCONA, 2013ANCONA, G. Escatologia Cristã. São Paulo: Loyola, 2013., p. 221). A escatologia não pode simplesmente se arvorar em interpretar o futuro e se desinteressar pelo presente histórico. Uma autêntica escatologia é uma voz profética que denuncia as mazelas do presente histórico. “Numa teologia cristã, a escatologia não deve ser apenas compreendida regionalmente, mas radicalmente: como forma de todas as expressões teológicas” (METZ, 1969METZ, J. B. Teologia do mundo. Rio de Janeiro: Moraes, 1969., p. 87-88). A escatologia não pode ser reduzida a uma questão setorial, enquanto tratado que conclui a teologia dogmática, mas trata-se de uma dimensão estruturante de teologia. A escatologia é uma dimensão estruturante que perpassa toda a teologia. Uma teologia compreendida simplesmente como antropologia corre o risco de desembocar numa situação em que reina a ausência da dimensão histórica e mundana. “Uma teologia existencial está preocupada com a vida autêntica do indivíduo, enquanto que a uma teologia política está preocupada com a vida autêntica para todos os seres humanos em termos de liberdade e, portanto, de libertação” (GIBELLINI, 1998GIBELLINI, R. Teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998., p. 307). Por isso, toda teologia política é autenticamente escatológica. A teologia como escatologia está em relação com o processo histórico, a condição mundana, a dimensão social e o agir histórico da existência. “A teologia como escatologia desejaria projetar o horizonte universal do futuro no qual a teologia dever-se-ia tornar significativa por si mesma e relevante para o mundo” (MOLTMANN, 1971MOLTMANN, J. Religione, rivoluzione e futuro. Brescia: Queriniana, 1971., p. 187). A escatologia é a doutrina da práxis da esperança que crê no futuro esperado em meio aos sofrimentos do presente. No horizonte da teologia política, “a escatologia não é vista à luz cosmológica (como fazem os neo-escolásticos e também Teilhard de Chardin) e nem mesmo à luz existencial-ontológico (como faz Bultmann), mas à luz política” (NOCKE, 2006NOCKE, F-J. Escatologia. Brescia: Queriniana, 2006., p. 63-64). Consequentemente, a escatologia deve se ocupar com interesse e de maneira crítica das grandes utopias políticas e sociais e das promessas de uma universal humanização do mundo.

No horizonte escatológico da esperança, o mundo surge como história. A esperança cristã não defende uma fuga do mundo e nem uma presença passiva nele, mas uma presença dentro dele e com ele. “Esta esperança traduz continuamente a ortodoxia da fé na ortopraxia da transformação do mundo sob o horizonte do porvir de Deus” (METZ, 1976METZ, J. B. Teologia política. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1976., p. 32). O mundo é construído e se realiza na direção do futuro de Deus. O mundo não é uma realidade pronta, acabada e nem se restringe à sua dimensão geográfica. No plano da teologia como escatologia, a perfeição do mundo não está no seu início, mas no seu fim. O mundo é uma magnitude finita e inconclusa. É o palco da ação e do exercício da liberdade do ser humano. Ele pode ser transformado pela ação histórica e livre do ser humano. O processo de secularização do mundo foi possível porque o mundo não foi experimentado e explicado no horizonte escatológico. A secularização consiste na transformação histórica do mundo pela ação da liberdade humana (METZ, 1969METZ, J. B. Teologia do mundo. Rio de Janeiro: Moraes, 1969., p. 88). O ser humano não repousa passivamente sobre um mundo perfeito e consumado, mas é um ator que ativamente interage, modifica e transforma o mundo segundo as suas necessidades pessoais, sociais e culturais.

A realidade está orientada para um único fim último: o futuro preconizado por Deus. Na realidade, Deus é o futuro que a fé cristã espera. “Crer significa, para o cristão, confiar no porvir como vinda do mistério de Deus sempre maior” (METZ, 1976METZ, J. B. Teologia política. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1976., p. 35). Não é possível divorciar o futuro natural do mundo histórico e o futuro sobrenatural, defendido pela teologia. O futuro escatológico não se dará à margem do mundo. O futuro do mundo não se reduz ao progresso tecnológico, mas está orientado para o futuro escatológico. A consumação escatológica não será desmundanizada e nem deshistoricizada. A crença no futuro absoluto que a fé cristã patrocina tem uma dimensão pessoal, social, mundana e histórica. A salvação oferecida pela fé cristã não tem uma dimensão puramente antropológica e privada. Não é uma hipotética alma descorporalizada e desmundanizada que consiste no sujeito destinatário da salvação. A salvação não tem uma conotação individualista e nem espiritualista. A salvação tem como sujeito o mundo, a história, a sociedade e a Igreja. “Quer a fé quer a Igreja, não têm esperanças apenas para si próprias. A sua esperança visa o futuro do mundo” (METZ, 1969METZ, J. B. Teologia do mundo. Rio de Janeiro: Moraes, 1969., p. 89). A esperança escatológica defendida pela Igreja não é uma auto-esperança, mas a Igreja espera para si, por todos, com todos e com o mundo. Toda esperança cristã é uma co-esperança.

5 A dimensão escatológica da teologia da libertação

Após a realização do concílio Vaticano II (1962-1965), iniciou-se, na América Latina, uma forma de fazer teologia, de pensar e de anunciar a mensagem evangélica com a teologia da libertação. Diante do contexto social, cultural, econômico e político latino-americano, marcado pela colonização europeia, pela desigualdade, pela opressão, pela pobreza e pela marginalização, a teologia da libertação se levantou como uma voz profética e crítica de todo tipo de injustiça. A teologia não pode assumir uma posição neutra e indiferente diante das situações pecaminosas e corruptoras, no âmbito social e político, mas deve se colocar como um instrumento crítico, reacionário e anti-sistêmico. Partindo do método sócio-analítico e da dimensão bíblico-hermenêutica, a teologia da libertação se apresenta como uma reflexão sobre a prática da fé. Ela redescobre a práxis histórica de Jesus como chave hermenêutica para a prática da libertação na Igreja. Na visão da teologia da libertação, não se pode anunciar a fé cristã sem denunciar as condições que a contradizem. É preciso denunciar e combater as situações que geram morte, injustiça, pobreza e sofrimento como condição de possibilidade para se anunciar o evangelho. As categorias fundamentais da teologia da libertação são a práxis, como lugar da verdade concreta, e os pobres como destinatários privilegiados do evangelho.

A opção prévia e fundante da teologia da libertação é pelos pobres contra a pobreza. Nasce da motivação ético-evangélica com o objetivo político-social de terminar com a pobreza injusta, não para transformar os pobres em ricos, mas para que tenham condição justa, digna e humana de vida

(LIBANIO, 1987LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação. Roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987., p. 132).

Servindo-se da categoria soteriológica da “libertação”, compreende-a em sentido espiritual, social, econômico e político. “A libertação exprime, em primeiro lugar, as aspirações das classes sociais e dos povos oprimidos, e sublinha o aspecto conflituoso do processo econômico, social, político que os opõe às classes opressoras e aos povos opulentos” (GUTIÉRREZ, 1976GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 44).

A teologia da libertação inicia sua reflexão escatológica, apoiando-se nas promessas bíblicas. A Escritura é um livro de promessa que se revela, interpela e se realiza no curso da história. A promessa orienta a história para o futuro, colocando a revelação numa perspectiva escatológica. É na história humana que a promessa inicia sua realização. A promessa, como dom aceito na fé, foi feita inicialmente a Abraão e alcançou seu cumprimento em Jesus Cristo, Senhor da história e do mundo. Com o advento de Jesus Cristo, a promessa conquista sua dimensão de plenitude de todos tempos. A promessa vai se realizando progressivamente na história. Ela já se efetiva nas realidades históricas, mas ainda não de modo plenamente. A promessa está orientada para o futuro escatológico, porém sua efetivação já se inicia no presente histórico (GUTIÉRREZ, 1976GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 137-138).

Para a Escritura, a escatologia é o motor da história salvífica radicalmente orientada para o futuro. Os profetas escatologizaram as concepções de Israel sobre o tempo e a história. É característico da pregação profética sua orientação para o futuro e sua atenção à realidade atual. Os profetas pregam uma ruptura de Israel como seu passado de faltas e de infidelidades. Os objetivos de sua esperança estavam próximos, mas isso não excluía uma ação transformadora de Deus no fim da história. A mensagem profética anuncia e se realiza num acontecimento histórico próximo e ao mesmo tempo projetado para além dessa concretização. No horizonte profético, há uma relação íntima entre o futuro esperado e a realização do acontecimento no presente. Esta reflexão sobre a dimensão escatológica da pregação dos profetas serviu para mostrar que as “realizações históricas no presente, enquanto ordenadas para o que virá são tão características da escatologia como a abertura ao futuro” (GUTIÉRREZ, 1976GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 142). A orientação da história para o que virá é o motor da história. As ações de Deus no interno da história e sua atuação no fim da história são inseparáveis. As ações de Deus são históricas e meta-históricas. A auto-identificação de Javé em Ex 3,14 deve ser “Eu serei o que serei”, pois assim Deus se revela como a força do futuro da história.

A ação de Deus na história só atinge seu pleno significado situada num horizonte escatológico e, por sua vez, a revelação do sentido final da história valoriza o presente. A autocomunicação aponta também para o futuro e, simultaneamente, essa promessa e boa-nova revela o homem a si próprio e abre a perspectiva de seu compromisso histórico, aqui e agora

(GUTIÉRREZ, 1976GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 142).

A espiritualização das promessas bíblicas impossibilitou de concebê-las como realidades entranhadas no seio da história. Trata-se de uma visão espiritualista que desemboca numa percepção dualista (matéria-espírito, céu-terra) alheia ao pensamento bíblico. É uma visão desencarnada das promessas, concebendo-as como realidades superiores e ultraterrenas que não tocam o presente histórico. A compreensão da escatologia como consumação de acontecimentos que ocorrem fora da história é insuficiente. Jesus Cristo não espiritualizou as promessas escatológicas, mas deu-lhes sentido e cumprimento histórico. A escatologia não é um apêndice e nem uma dimensão marginal da fé cristã, mas a chave de compreensão do cristianismo. As promessas escatológicas vão se realizando parcialmente nos acontecimentos libertadores da história, porém estão orientadas para o cumprimento pleno. O sentido oculto nas promessas bíblicas não consiste numa leitura espiritual que desvaloriza o temporal e o terrestre como se fosse um empecilho, mas que aponta para uma plenitude que assume e transforma o histórico. Somente no acontecimento histórico, temporal e terrestre que se pode abrir para o futuro da plena realização. A escatologia não desconsidera e nem desvaloriza a vida presente. Porém, a vida presente não significa simplesmente uma vida espiritual presente, mas uma vida histórica com suas implicações sociais e políticas. Assim, o binômio graça-pecado, a vinda do Reino e a manifestação da parusia não são acontecimentos puramente espirituais, mas históricos, temporais, terrenos e sociais. As promessas de paz, de justiça, de amor e de liberdade não são realidades puramente interiores, mas também sociais e portadoras de uma dimensão histórica. Lutar por um mundo justo no qual não há opressão, miséria e nem escravidão significa trabalhar para a vinda do Reino. A luta pela justiça é uma luta pelo advento do Reino (GUTIÉRREZ, 1976GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 143-145).

As promessas escatológicas vão se realizando ao longo da história. No entanto, essas promessas não se identificam pura e simplesmente com as estruturas sociais e históricas. Não se trata de defender uma visão imanentista e horizontalista das promessas escatológicas. Não se pode passar de um espiritualismo a um encarnacionismo escatológico. É preciso manter a tensão latente nas promessas escatológicas: são realidades presentes, mas ainda não consumadas. A escatologia crê no pleno encontro com o Senhor que porá fim à história, porém tal encontro já está acontecendo na história mediante a luta por justiça, pela defesa da dignidade humana e pela libertação da opressão. Uma percepção escatológica do presente conduz a uma desinstalação da vida cristã. O crente não pode repousar passiva e inertemente sobre o presente, mas deve transformá-lo e renová-lo. O encontro com Cristo deve produzir uma humanização da vida e uma transformação da sociedade, enquanto um espaço da experiência da justiça e da liberdade. Em Cristo, todas as promessas feitas por Deus têm sua realização (2Cor 1,20).

Uma categoria importante no horizonte escatológico da teologia da libertação é de “utopia”, que consiste na crença de uma irrupção de um mundo social plenamente humanizado capaz de responder de modo pleno sobre os sonhos e as necessidades da vida humana. A esperança utópica acredita no surgimento de uma sociedade ideal que serve de horizonte e guia para um projeto concreto ou para as ânsias de um projeto alternativo ao dominante. A utopia tem na sua estrutura fundamental um aspecto de crítica ao presente e outro de criação de uma nova situação. Com o intento da realização dessa sociedade alterativa, muitas utopias assumem uma postura reacionária e progressista no sentido de se armarem para a luta e a revolução. A utopia tem um olhar voltado para o futuro. Tem uma postura prospectiva e um desejo de transformação social e política do presente. Também possui uma capacidade de mobilização de forças sociais em vista da transformação da realidade. A utopia é o motor da história.

Se a história só vale pela relação direta e explícita com o ‘além-da-história’, então a utopia perde força e vigência nessa história. Transforma-se em compensação de todas as limitações e injustiças sociais, ao trasladar para a eternidade a novidade desejada. Tudo que acontece neste mundo não tem importância já que na eternidade se dará a verdadeira compensação. Por isso, as mudanças são irrelevantes

(LIBANIO, 1989LIBANIO, J. B. Utopia e esperança cristã. São Paulo: Loyola, 1989., p. 120).

A desconsideração e a desvalorização do presente são um obstáculo à capacidade mobilizadora e transformadora da utopia. A esperança utópica faz com que a novidade esperada para um estado além da história já seja uma realidade em atuação no presente histórico. A esperança no futuro deve mobilizar a transformação do presente.

Pela utopia projetam-se no futuro todos os dinamismos e anseios humanos, totalmente depurados dos elementos limitatórios e ambíguos e plenamente realizados [...] A utopia manifesta a permanente ânsia de renovação, regeneração e aperfeiçoamento buscados pelo homem

(BOFF, 1997BOFF, L. Vida para além da morte. Petrópolis: Vozes, 1997., p. 20).

O céu anunciado pela fé cristã situa-se no horizonte utópico, enquanto absoluta e radical realização de tudo que é verdadeiramente humano, dentro de Deus. Na ressurreição de Cristo, a utopia se concretizou enquanto realização das possibilidades latentes no ser humano, como possibilidade de união íntima com Deus, de comunhão cósmica com todas as criaturas e de superação de todas as alienações que estigmatizam a vida humana no seu processo de gestação. O futuro de Jesus Cristo, feito presente dentro da história pela ressurreição, é o futuro da humanidade. Em Jesus Cristo, a utopia se tornou topia (BOFF, 1997BOFF, L. Vida para além da morte. Petrópolis: Vozes, 1997., p. 23).

6 Escatologia e ética

Toda ética cristã pressupõe uma escatologia. O agir cristão é influenciado por um horizonte escatológico. Os comportamentos, as decisões e as escolhas estão orientandas escatologicamente. A ação em vista da construção de uma sociedade justa, do respeito à dignidade humana e da valorização da casa comum tem um endereço escatológico. A ética cristã faz como que a esperança orientada para o último dê sentido ao penúltimo. A esperança no último tem que mobilizar e transformar o penúltimo. Por isso, a escatologia possibilita falar do último a partir do penúltimo. Assim, a oferta de um futuro escatológico que promete uma vida realizada já deve ser vivido e experimentado no presente histórico. A ética cristã deve mobilizar e transformar o presente para que o futuro esperado já seja uma realidade presente e atuante na história. Dessa forma, não é tolerável uma postura ética que seja indiferente ao presente ou que simplesmente repouse sobre ele. A ética cristã deve ser pró-ativa, construtiva e transformadora das estruturas e das condições do presente na esperança que está buscando realizar na história o futuro prometido como dom escatológico.

A ética cristã é ética da esperança. Porém, não se trata de uma esperança puramente temporal, mas também escatológica. A esperança cristã deve se responsabilizar por construir o presente histórico movida pela certeza que a transformação do penúltimo está orientada para o último.

Saber esperar significa também não se adequar às condições desse mundo de injustiça e de violência. Quem espera a justiça de Deus não reconhece a assim chamada força normativa do fático, porque sabe que um mundo melhor é possível e que as mudanças do presente são necessárias. Saber esperar significa resistir às ameaças e tentações não se conformar nem se adequar

(MOLTMANN, 2012MOLTMANN, J. Ética da esperança. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 20).

A esperança escatológica não é apática às condições do presente, mas deve se posicionar criticamente dia de todas as forças contrárias à efetivação de uma sociedade justa, igualitária e livre. É necessária uma ética que não tenha uma postura de conformação e nem de adequação, mas de transformação do presente, qualificando-o em vista de condições sociais e políticas justas. Uma ética transformadora do presente contém características messiânicas.

Messiânico, eu denomino, nesse contexto, um tempo presente que já está influenciado e determinado pelo futuro escatológico. O futuro escatológico se torna presente, sem deixar de ser futuro. Ele transforma, dessa maneira, o presente no futuro do presente”

(MOLTMANN, 2012MOLTMANN, J. Ética da esperança. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 54).

A ética da transformação não pleiteia uma identificação do futuro escatológico com o futuro temporal, mas a partir das promessas do futuro escatológico se busca transformar o presente histórico.

A ética cristã se empenha para que o Reino de Deus não seja uma realidade puramente horizontal e nem vertical. O Reino de Deus não se identifica com as estruturas sociais e históricas, mas já pode ser antecipado nelas. Ele não está em construção e atuação no presente histórico, mas possui uma densidade e valência escatológica.

Visto que o Reino de Deus é futuro de toda a história, ele transcende o futuro histórico e todas as antecipações na história. Justamente desse modo, porém, o reino se torna a força de esperança na história e a fonte dessas antecipações com as quais preparamos o caminho para a vinda de Deus

(MOLTMANN, 2012MOLTMANN, J. Ética da esperança. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 53).

O Reino de Deus foi inaugurado historicamente por Jesus Cristo, porém tem uma dimensão escatológica. A ética cristã deve fazer como que a esperança na dimensão escatológica do Reino de Deus mobilize os cristãos na qualificação das estruturas sociais e políticas do presente.

A ética cristã da esperança tem sua origem na memória da ressurreição do Cristo crucificado e, por conseguinte, na esperança da transformação do mundo presente. A densidade de vida inaugurada pela ressurreição de Cristo ativa a esperança cristã para que ela renove as estruturas do presente.

Os cristãos têm atrás de si a grande mudança de todas as coisas na ressurreição do Cristo crucificado e esperam, por conseguinte, a mudança escatológica do mundo. Eles trabalham numa revalorização de todos os valores deste mundo para fazer jus ao mundo vindouro de Deus

(MOLTMANN, 2012MOLTMANN, J. Ética da esperança. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 56).

A ressurreição de Cristo desenvolve um potencial transformador na escatologia e na ética cristã. Uma ética transformadora das condições do presente crê numa escatologia transformadora das esperanças históricas.

Ela conduz ao agir transformador para, segundo as possibilidades e as forças, antecipar a nova criação de todas as coisas que Deus prometeu e Cristo colocou em vigor. A libertação dos oprimidos o soerguimento dos humilhados, a cura dos doentes e a justiça dos pobres

(MOLTMANN, 2012MOLTMANN, J. Ética da esperança. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 58).

Meditações conclusivas

A escatologia não pode ser concebida como uma disciplina teológica que conclui a dogmática. Não se trata de um anexo e nem de um apêndice teológico. Também não é uma disciplina que oferece uma descrição geográfica e cosmológica sobre os eventos derradeiros da vida cristã. A escatologia não é uma futurologia cristã. Não é seu escopo descrever e interpretar os acontecimentos futuros. Uma visão puramente futurológica da escatologia cristã terminou por conceber o presente histórico como tempo em que a vida está sujeita a um estado de provação e de tentação. A vida presente era concebida de forma negativa como um período de vivência do mérito e do demérito para no final saber que seria merecedora do céu ou do inferno. O período de provação terminava com a morte e depois se esperava os desdobramentos dos eventos pós-mortais.

Uma visão futurológica da escatologia cristã perdurou até a primeira metade do século XX. Com a segunda metade do século XX, com as teologias da práxis, ocorreu uma valorização do presente histórico. A escatologia não diz respeito somente aos acontecimentos últimos e futuros, mas também aos penúltimos e históricos. Há uma descoberta da dimensão escatológica do presente. Juntamente com essa descoberta, descortinou-se um aspecto crítico e libertador da fé cristã. Não basta esperar uma condição de vida plena somente no além sem desejar que essa condição de vida já seja experimentada no presente histórico. A promessa de vida plena no além deve transformar as estruturas do aquém. O prometido por Deus no futuro escatológico já deve ser antecipado no presente histórico. Nesse sentido, é necessário se posicionar criticamente diante das estruturas injustas e desiguais existentes no presente histórico que não possibilitam uma condição de vida com dignidade. É preciso transformar o presente histórico para que a vida plena não seja somente uma oferta futurista, mas para que seja uma realidade já vivida na condição histórica.

Com as teologias da práxis, a escatologia desenvolve uma dimensão crítico-libertadora. A escatologia não contempla passiva e indiferentemente o presente, mas procura transformá-lo. O presente histórico está em continuidade com o futuro absoluto. A novidade reservada ao futuro absoluto já deve ser vivida no presente. A visão escatológica do presente deve conduzir a uma renovação e transformação das estruturas sociais, políticas e econômicas da vida histórica. É necessário se posicionar criticamente diante de todas estruturas que não proporcionam uma condição de vida digna ao ser humano, à sociedade e às demais criaturas. Uma oferta de vida plena somente no além sem se interessar em vivê-la no aquém é uma irresponsabilidade cristã.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2023
  • Aceito
    20 Mar 2024
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