• Rafaela Fleur
Atualizado em
Precious Lee (Foto: Luigi & Iango)

Precious Lee na Vogue de junho/julho de 2021 (Foto: Luigi & Iango)

Imagine a cena: duas mulheres entram em uma loja, uma veste 36, a outra 70. Ambas se apaixonam por uma peça. Elas chegam na arara, procuram - e encontram - seus tamanhos. Experimentam com tranquilidade no provador, passam no caixa e vão embora satisfeitas. Já pensou? O ano é 2021, mas este cenário ainda é utópico. Mesmo com o avanço das reflexões, os debates em pauta e o mercado aquecido, o caminho para a moda contemplar as pessoas gordas de forma igualitária ainda é longo. Mais do que discutir o motivo dessa falha, a pergunta é: quais passos são necessários para muda-la?

Segundo a Associação Brasileira do Vestuário (Abravest), o mercado de moda plus size registrou um movimento de 7 bilhões de reais no Brasil entre 2018 e 2019. A média de crescimento anual é de 10%. Nos EUA, um levantamento realizado pela renomada empresa de pesquisa Coresight, mostrou que o faturamento deste setor girou em torno dos US$ 24 bilhões, só em 2020.

“Por que a nossa moda tem que ser outra, tem que ser diferente, por que não podemos usar as mesmas peças? Por que quando entro no site ou em uma loja, preciso ir para uma seção específica para achar o meu tamanho? Acho que a indústria ainda não entendeu nada. Uma das coisas que mais me incomoda é que a moda plus size nem deveria se chamar moda plus size, deveria se chamar apenas moda. A única coisa que eu gostaria é que aquela peça que todas as pessoas magras estão usando, fosse feita para o meu tamanho”, comenta a modelo e apresentadora Letticia Munniz.

O ponto trazido por Letticia vai de encontro a um dos principais debates sobre este universo, que é justamente o despreparo de algumas marcas ao produzir peças plus size. Há uma predominância de peças escuras, com modelagens desacertadas e sem muita personalidade.

Letticia Munniz (Foto: Reprodução/Instagram)

Letticia Munniz (Foto: Reprodução/Instagram)

Com mais de 600 lojas físicas em operação nos Estados Unidos e em expansão para outros países, a Torrid é uma gigante global quando o assunto é vestuário plus size. Só em 2020, com vendas online, foram faturados mais de US$ 973 milhões. Um dos grandes motivos para o sucesso mundial é justamente o olhar atento aos movimentos contemporâneos, caminhando na direção oposta ao padrão tradicionalmente entediante tão comum por aí.

Amante de tendências e looks apurados, a modelo Rita Carreira é um dos maiores expoentes da atualidade no combate à gordofobia. Apesar da trajetória sólida e do privilégio de acessar diversos espaços e marcas, ela confessa que, até hoje, comprar roupas é uma experiência traumática.

“Nos últimos meses, tenho saído dos shoppings extremamente frustrada por não conseguir comprar roupas para mim. Eu não consigo me vestir do jeito que eu gostaria, me visto com o que tem. Existe uma indústria gigantesca de moda produzindo roupas em excesso para corpos magros, enquanto isso, as pessoas gordas, que representam uma grande parte da população, seguem infelizes com essa indústria e não conseguindo se vestir”, pontua Rita.

Rita Carreira na Vogue de novembro de 2020 (Foto: Fernando Tomaz)

Rita Carreira na Vogue de novembro de 2020 (Foto: Fernando Tomaz)

Desde o início da implementação da linha plus size em 2016, a Riachuelo, que tem uma grade que contempla do 46 ao 54 - ou do G1 ao G3 -  registrou um crescimento de 253% na categoria. Os números animadores, aliados a evoluções internas, possibilitaram um desenvolvimento ainda maior desta frente na empresa.

“Temos ampliado a linha ano a ano, testando novos produtos, tecidos, modelagens. Para o nosso grupo ficou claro que essa mulher quer usar os mesmos fits que um corpo magro usa, não temos mais medo em oferecer calcinhas menores, com laterais estreitas, maiôs decotados, enfim, ofertamos a esse público a mesma informação de moda, mesmas estampas, mesmas cores que o restante da coleção, ajustamos apenas as modelagens”, compartilhou Fabiana Lafico Klemp, gerente de produto da organização.

Amanda Momente, de Wondersize (Foto: Divulgação)

Amanda Momente, de Wondersize (Foto: Sara Eulália)

Para transformar o mercado, em vez de reclamar que não havia roupas de ginástica adeuadas, a empresária Amanda Momente decidiu criar, em 2017, a primeira marca de performance esportiva focada em pessoas gordas, a Wondersize. “Sou gorda há muitos anos e vi que não havia roupas das quais eu gostasse para praticar exercícios”, conta a empresária, especialista em usabilidade e desenvolvimento de produtos plus size. De lá para cá, foram mais de 20 mil peças vendidas e 200 modelagens. O carro-chefe é a calça Joana D’Arc, que não enrola no cós e não fica transparente no bumbum – problemas comuns em roupas de ginástica. A marca, que vai do 42 ao 66, hoje está a venda na Centauro e e-commerce. 

Sentindo que era preciso avançar no sentindo de colaborar para que a indústria se desenvolvesse ainda mais, Amanda lança no dia 4 de dezembro um site de venda de modelagens, o Revolução Plus Size. O projeto oferece às marcas venda de modelagens para desenvolvimento de coleções. “Nossos corpos são diferentes de um corpo magro. Não há problema em segmentar o mercado. O que não pode é simplesmente adaptar uma modelagem”, defende a empresária, que acaba de fazer um curso de extensão em inovação em Harvard.

Calça Joana D'Arc, da Wondersize: não enrola no cós e não fica transparente no bumbum (Foto: Divulgação)

Calça Joana D'Arc, da Wondersize: não enrola no cós e não fica transparente no bumbum (Foto: Sara Eulália)

Transformar o mercado, seja por questões econômicas ou ideológicas, não é tarefa fácil. No entanto, algumas percepções podem nos ajudar a vislumbrar e trabalhar coletivamente na construção de novas possibilidades. À Vogue, algumas mulheres ativas no universo da moda comentaram o que a indústria ainda não entendeu sobre o mercado plus size. Confira!

As faculdades não estão preparadas para ensinar

O despreparo da indústria começa nas universidades, segundo a empresária Amanda Momente, especialista em usabilidade e desenvolvimento de produtos plus size. Em primeiro lugar, ela diz, não há bibliografia para que professores se formem neste segmento. “Existe um déficit intelectual. Na faculdade, eles não ensinam a fazer roupa para gordos porque eles, os professores, também não sabem”, ela diz. Em segundo lugar, o problema chega à indústria, quando não há profissionais preparados para desenvolver modelagens. “Na indústria, eles não sabem fazer, então copiam ou adaptam a modelagem. Parte da indústria quer ocupar o mercado, mas não investe no desenvolvimento de um produto adequado”.  Para ilustrar, ela define de maneira bem simples: “Nem fita métrica existe do tamanho do meu quadril. Isso já é um indício dos problemas da indústria”

Amanda Momente:“Nem fita métrica existe do tamanho do meu quadril. Isso já é um indício dos problemas da indústria” (Foto: Divulgação)

Amanda Momente:“Nem fita métrica existe do tamanho do meu quadril. Isso já é um indício dos problemas da indústria” (Foto: Sara Eulália)

Não existe apenas um tipo de corpo gordo
Pessoas gordas têm estruturas corporais diferentes e isso precisa ser respeitado na hora de desenvolver as modelagens.

“A diversidade de corpos é gigante e a indústria precisa entender isso, pensar de maneira ampla. O mercado plus é extremamente carente de tendências e informação de moda, isso precisa mudar”, pontua Rita Carreira.

E isso vale para modelos de prova também na indústria. Para desenvolver modelagens adequadas para este público, é preciso ter uma diversidade de corpos.

Os tabus do curvy na moda

Selecionar modelos curvy para desfiles, editoriais e campanhas pode parecer uma abertura do mercado ao plus size, mas há uma infinidade de corpos. O curvy, apenas, não representa todas as mulheres plus size. “Existem muitos tabus a serem quebrados, e a gorda curvy na moda é um deles”, provoca Amanda, “Falta diversidade”.

O mesmo se reflete nas equipes de estilo, comunicação e marketing, na contratação de mulheres plus size. Uma variedade de olhares dentro das marcas ampliaria a diversidade de experiências e compreensão das necessidades deste mercado. “As empresas precisam entender que elas podem criar para outros corpos”, defende Amanda.

Ju Ferraz  (Foto: Arquivo Vogue/ João Bertholini)

Ju Ferraz (Foto: Arquivo Vogue/ João Bertholini)

Menos sessões especiais, mais numerações
As seções plus size costumam trazer peças que não se conectam com os estilos e tendências presentes no restante das marcas. Ampliar a grade de numerações ao invés de segregar, pode ser uma saída.

“O mercado plus size ainda é muito discriminado, são roupas escuras, sem graça. Não é porque as pessoas vestem XXG que elas não querem se sentir bonitas. Acho que existe um trabalho grande de reposicionamento de imagem, por uma questão econômica, de inclusão e comportamento. É uma pena a falta de entendimento da indústria da importância da diversidade, do respeito ao outro, e principalmente da conexão emocional do consumidor com as marcas. A partir do momento que elas acolhem mulheres e homens, se cria um vínculo, uma fidelidade. Isso é tudo o que precisamos nos tempos de hoje”, assegura a colunista da Vogue Ju Ferraz.

Amanda Momente (Foto: Divulgação)

Amanda Momente (Foto: Sara Eulália)

Quero uma roupa nova, logo vou ao shopping? Não.

Menos de 3% dos shoppings têm roupas para pessoas gordas, segundo Amanda Momente. Há déficit de oferta em todos os segmentos, desde a moda íntima, passando pela esportiva até a casual. Portanto, encontrar peças plus size ainda não é algo acessível. “Por algum motivo, acharam que que gordo não queria consumir moda, que queria esconder o corpo. Mas estão errados”, defende a empresária.

Segundo o Vigitel 2019, levantamento feito pelo Ministério da Saúde, 55,4% da população brasileira estão de acima peso. É um mercado consumidor de mais de 100 milhões de pessoas. “Se as pessoas já são gordas, por que não fazem roupas para estas pessoas? Estas pessoas precisam ter roupas para vestir hoje!”, questiona Amanda, “Era sufocante só usar roupa escuras. O gordo foi estigmatizado como feio, algo a se esconder. Moda está ligada a autoestima. O que as pessoas precisam entender é que não importa como alguém chegou àquele peso”.

Tatah Fávero (Foto: Reprodução/Instagram)

Tatah Fávero (Foto: Reprodução/Instagram)

Existem pessoas gordas de todas as idades
Para a modelo e influencer Tatah Fávero, um dos maiores problemas do mercado plus size é acreditar que pessoas gordas são sempre maduras e conservadoras.

“A indústria plus size precisa entender que não são só pessoas mais velhas que engordam. Existem pessoas gordas de todas as idades, de todos os estilos diferentes. Quando vejo marcas fazendo peças que estão em tendência para todos os tamanhos, com estampas, recortes, aí vejo que temos esperança, mas sinto que o caminho ainda é longo”, reflete.

Carol Santos (Foto: Reprodução/Instagram)

Carol Santos (Foto: Reprodução/Instagram)

Mulheres negras precisam ser representadas
Produtora de moda, Carol Santos acredita que, apesar do avanço da representatividade plus size, mulheres pretas ainda não estão sendo contempladas.

“O mercado não usa mulheres negras nas campanhas. Somos a maioria falando da sociedade brasileira em geral e ainda somos invisibilizadas” pontua ela, que é irmã de Rita Carreira.

“Não queremos um setor ou uma coleção especial, queremos estar no mesmo lugar e vestindo as mesmas coisas”, completa.

Amanda Tavares (Foto: Reprodução/Instagram)

Amanda Tavares (Foto: Reprodução/Instagram)

Gordas se casam
A social media Amanda Tavares, que viralizou no Twitter após compartilhar uma thread na qual reproduzia looks de séries televisivas, mostrando que pessoas gordas também ficam lindas usando as produções, acredita que um dos principais setores do mercado plus size que precisa evoluir é o mercado do casamento.

“A indústria do casamento não pensa na mulher gorda. Mulheres gordas se relacionam, têm vida sexual ativa. Em todos os sites que eu olhava, achava vestidos GG, mas que só vestiam até 46. Tive que construir o meu sob medida”’, relembra.