• Bruno Astuto
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Parka do pre-fall  (Foto: Association Willy Maywald/ADAGP, 2021 e Divulgação)

Parka do pre-fall (Foto: Association Willy Maywald/ADAGP, 2021 e Divulgação)

Na apresentação da coleção pre-fall 2021 da Dior, Maria Grazia Chiuri, fã de cores sóbrias como beges, marinho e pretos, foi confrontada com seu novo colorido eletrizante e estampas de leopardos, ao que respondeu: “Depois deste ano tão intenso, tão deprimente, eu não quero um casaco preto. Quero um casaco de leopardo!”. Suas palavras pareciam saídas da boca de uma das maiores musas e colaboradoras de Monsieur Dior, Mitzah Bricard, a mulher que fez da irreverência um código de elegância na Paris do pós-Segunda Guerra.

Bricard em 1954, vestindo full look de leopardo (Foto: Association Willy Maywald/ADAGP, 2021 e Divulgação)

Bricard em 1954, vestindo full look de leopardo (Foto: Association Willy Maywald/ADAGP, 2021 e Divulgação)

Os tempos eram sombrios, como estes que vivemos. Dior preparava a abertura de sua maison, disposto a investir na sofisticação, no escapismo e no revide à depressão generalizada. Enfim, em algo que dissesse: “vencemos”. No idioma da silhueta, o Tailleur Bar, com veste a cinturada e saia volumosa à base de muitos e muitos metros de tecido, saiu como grande vencedor, batizado lendariamente “New Look”. Acabou destronando outro ápice da coleção de fevereiro de 1947: o conjunto full look em leopardo, na forma de um 8, arrematado por um cintão largo – a primeira vez em que a estampa era usada na alta-costura.

Peça do pre-fall 2021 da Dior  (Foto: Association Willy Maywald/ADAGP, 2021 e Divulgação)

Peça do pre-fall 2021 da Dior (Foto: Association Willy Maywald/ADAGP, 2021 e Divulgação)

Foi Mitzah que trouxe para esse costureiro, um apaixonado por cinza e rosa, a transgressão animalesca. Ele sabia que sua mira no café-soçaite precisava de aliadas incontestes para ser certeira, pessoas que exalassem o perfume do novo, mas, ao mesmo tempo, remetessem a um passado glorioso com um toque de decadência (não por acaso, a decoração da butique era toda inspirada em Versalhes). Alta, magra, de nariz cleopátrico devidamente retocado e pescoço esguio, Mitzah metia medo. Arrogante e distante, não dirigia a palavra a nenhum funcionário do ateliê, a não ser Dior. Outra audácia: usava, na cara do novo patrão, as roupas de um concorrente, Edward Henry Molyneux, para quem ela tinha trabalhado anteriormente. Tamanha petulância foi a maneira que encontrou para poder dizer, sem papas na língua, os tecidos que ela reprovava ou os modelos que julgava vulgares. Dior, a delicadeza em pessoa, sabia que, para fazer diferença, precisava de uma sincericida, não apenas de bajuladores. Tanto que, nas provas de roupas, era Mitzah que se sentava ao seu lado. Em sua biografia, o costureiro desmanchou-se em admiração por seus “excessos inimitáveis” e sua “rebeldia”, assim como por seu “profundo conhecimento das tradições da alta-costura” e pela “recusa em transigir”.

Peça do pre-fall 2021 da Dior  (Foto: Association Willy Maywald/ADAGP, 2021 e Divulgação)

Peça do pre-fall 2021 da Dior (Foto: Association Willy Maywald/ADAGP, 2021 e Divulgação)

Seu uniforme de trabalho no ateliê era uma assinatura: um grande pano enrolado como um turbante que deixava apenas a base dos cabelos de fora (arrematado por um broche e um voilette cuja teia cobria os olhos), blusas brancas sem nada por baixo, luvas e o indissociável toque de leopardo, que podia ser um simples lenço amarrado no pulso. Para completar, joias, as mais retumbantes (impossível escapar de sua famosa frase: “Cartier é meu florista”). Toda a persona insinuava um “não se aproxime”, o que não a impedia de ter uma destreza absoluta com as mãos, em especial para confeccionar os chapéus da Dior. “Ela não falava com as clientes, mas, quando falava, a venda era certa. Dizia: ‘Que bom que eu a encontrei. Acabei de fazer um chapéu pensando em você’. E claro que todo mundo corria para comprar”, conta Natasha Fraser-Cavassoni em seu livro Monsieur Dior: Era uma Vez. A primeira publicidade de Dior, feita para seu perfume Miss Dior, trazia uma ilustração assinada por René Gruau, com a mão de Mitzah eroticamente acariciada pela pata de um leopardo.

 Christian Dior ao lado de Mitzah Bricard, uma de suas maiores musas e colaboradoras, em 1949.  (Foto: Association Willy Maywald/ADAGP, 2021 e Divulgação)

Christian Dior ao lado de Mitzah Bricard, uma de suas maiores musas e colaboradoras, em 1949. (Foto: Association Willy Maywald/ADAGP, 2021 e Divulgação)

Uma personalidade difícil de compreender. Ao mesmo tempo em que Mitzah encarnava um esnobismo quase datado, sua vida foi tudo, menos nos conformes do figurino. Embora aconselhasse as jovens a jamais dar um beijo sem receber uma pérola em troca, ela, por sua vez, sempre trabalhou. Sua língua e seu olhar ferinos levaram edição e sofisticação também para Jacques Doucet e Cristóbal Balenciaga, antes de Molyneux e Dior. O currículo amoroso também impressionava: o Aga Khan 3º, um filho do kaiser da Alemanha e o rei Farouk 1º do Egito. O sobrenome Bricard veio do casamento com o dono de laboratório farmacêutico Hubert Bricard, o terceiro após uma união com um suposto príncipe russo e um diplomata romeno, numa época em que divorciadas raramente eram convidadas para os grandes salões. A persona implacável que construiu e as névoas em que mergulhou seu passado (nem seu nome era Mitzah, mas Germaine Louise Neustadt) talvez tenham servido de armadura para se impor num mundo calcado no machismo. Para domar as feras, ela decidiu se tornar a maior delas.

As lutas femininas mudaram, mas o espectro de Mitzah, morta aos 77 anos em 1977, continuou a pairar sobre a maison. Ela foi fundamental na sucessão de Dior pelo jovem Yves Saint Laurent, serviu de base para os leopardos de Gianfranco Ferré nos anos 90 e inspirou a primeira coleção de alta-costura de John Galliano. Em pleno século 21, no meio de uma pandemia, provavelmente estaria orgulhosa de ver suas garras novamente fincadas na marca que ajudou a construir. Elas estão nas flats, nos casacos e chapéus bucket, nas shopping e saddle bags desfiladas no mês passado, em Xangai, e criadas por Maria Grazia, primeira mulher a assumir a face do front de uma grife que foi construída por mulheres extraordinárias nos bastidores. Metáfora para um mundo confinado e sedento por vivenciar a liberdade e a energia da natureza, o leopardo é, definitivamente, o bicho.

Abaixo, confira uma seleção de itens para aderir à estampa de leopardo

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Flat Aquazzura, R$ 5.070 no CJ Fashion (Foto: Divulgação)

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Shorts Animale, R$ 299, no Shop2gether (Foto: Divulgação)

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Bota Schutz, R$ 690 (Foto: Divulgação)

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Body Voar, R$ 545, no Iguatemi 365 (Foto: Diuvlgação)

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Pijama Hope, R$ 398, no Iguatemi 365 (Foto: Divulgação)

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Vestido de seda Marina Saleme, R$ 1440, Shop2gether (Foto: Divulgação)