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Miuccia Prada e Raf Simons (Foto: Reprodução)

Miuccia Prada e Raf Simons (Foto: Divulgação)

"Quando eu era menina", confidenciou Miuccia Prada à Sarah Mower (da Vogue americana) em 2004, "sempre quis ser diferente, e fazer as coisas antes dos outros.” É um desejo que tem guiado a vida de Miuccia no comando criativo de uma marca global multibilionária, moldada pelos talentos e instintos versáteis dela e pela capacidade de reinventar como poderia ser o futuro da moda. E assim, o anúncio de que Raf Simons – estilista inovador de moda masculina, ex-Jil Sander, Christian Dior e Calvin Klein – estaria se juntando à Prada como diretor co-criativo, com as duas personalidades famosas por serem opinativas trabalhando juntas para reinventar a marca na década de 2020, parece um golpe de mestre do pensamento inovador. A decisão também é um voto de confiança no poder da imaginação criativa, no momento em que os resultados dominam grande parte de uma indústria obcecada por crescimento exponencial e cálculos de números.

“O que importa para mim são as ideias e a estética é totalmente secundária,” declarou Miuccia. Mas essa estética mudou a maneira como homens e mulheres queriam se apresentar nas últimas três décadas, e ela encontrou no Simons um colaborador completo – a frieza belga dele para o calor italiano dela, o pragmatismo dele para a intuição fantasista dela – para desafiar e inspirar.

Jil Sander - verão 2011 e Prada - inverno 2008 (Foto: Getty Images)

Raf Simons para Jil Sander - verão 2011 e Prada - inverno 2008 (Foto: Getty Images)


Embora os dois talentos do design tenham origens muito diferentes, eles compartilham uma paixão pela arte, um deleite em apropriações subversivas de trajes históricos e uma abordagem techno-friendly do presente e do futuro. 

Prada - verão 2018 e Calvin Klein - verão 2018 (Foto: ImaxTree)

Prada - verão 2018 e Raf Simons para Calvin Klein - verão 2018 (Foto: ImaxTree)


Simons, é claro, também já trabalhou com Prada e seu marido, o CEO da empresa, Patrizio Bertelli – eles o contrataram como diretor criativo na Jil Sander em 2005, quando controlavam a marca – e houve um cruzamento nas respectivas equipes de design. (Bertelli e Prada se conheceram em uma feira em que ele criticou sua oferta. Eles se tornaram parceiros de negócios logo depois e, finalmente, se casaram em 1987).

Simons nasceu na cidade de Neerpelt, na zona rural da Bélgica, "uma vila entre vacas e ovelhas," como ele disse uma vez à Vogue. Sua mãe era faxineira, seu pai, vigia noturno do exército belga, mas a instrução relacionada ao seu gosto começou com suas tias inspiradoras que viviam em moradias de telhado plano com móveis de Verner Panton e Eero Saarinen, que proporcionaram ao sobrinho uma paixão vitalícia pela estética mid-century – e que Miuccia Prada compartilha. Miuccia nasceu numa família burguesa de Milão – a empresa de seu pai fabricava cortadores de grama; sua mãe, discretamente elegante, herdou a célebre empresa de artigos de couro de luxo fundada por seu próprio avô, Mario Prada, em 1913, na eminente galeria de compras Vittorio Emanuele II, em Milão. (Essa loja se especializou inicialmente em oggetti di lusso – “objetos de luxo” – que, de acordo com o gosto da época, incluía vidro da Boêmia e jade do Extremo Oriente, mas acabou se tornando conhecido por sua bagagem de alta qualidade, própria para família real da Itália).

Miuccia se rebelou contra a formação que teve, porém à sua própria maneira. Ela fez doutorado em ciência política e passou cinco anos estudando mímica. Ela era uma comunista que, uma vez disse à Vogue, "costumava fazer manifestos políticos usando Saint Laurent e esmeraldas.”

Prada - verão 2012 e Calvin Klein inverno 2017 (Foto: ImaxTree e Getty Images)

Prada - verão 2012 e Raf Simons para Calvin Klein inverno 2017 (Foto: ImaxTree e Getty Images)


Para Prada, o design de roupas foi quase um complemento acidental à reinvenção da marca da família que herdou em 1978 – Bertelli levou vários anos para convencê-la a deixar de repensar a bagagem moderna (o que ela havia feito ao usar o resistente nylon Pocono, anteriormente empregado apenas para revestimentos a fim de proteger os itens caros da empresa) para repensar as roupas modernas. Ela finalmente aceitou em 1988 (na sequência ela fundou a Miu Miu, em 1993). Prada aceitou com satisfação o desafio depois que percebeu que a moda "é uma maneira de se conectar ao que está acontecendo na arte, no design, na música – a cultura geral da época.”

Ela também depreciou o sistema de moda do final dos anos 70 e 80 e as roupas que acreditava serem "feitas de maneira comercial, não pessoal. Parecia que a moda era destinada a mulheres que queriam agradar a sociedade – mulheres que eram objetos.” Citando sua admiração por colegas estilistas, incluindo Vivienne Westwood, Sonia Rykiel e Rei Kawakubo, seus próprios designs eram exclusivamente subjetivos. Ela gostava, por exemplo, de uma obsessão por uniformes e da ideia de "vestir-se como uma freira, muito sóbria, sem nenhuma vaidade,” e descobriu que isso lhe dava "muita confiança... acho muito elegante," disse ela. "As roupas devem sempre representar a visão que se tem de si mesmo," observou ela, "ou o que você deseja representar – mesmo que seja apenas por uma noite.”


Naqueles primeiros anos, sua abordagem pós-moderna ao design era frequentemente representada pelo conteúdo de seus copiosos guarda-roupas. "Meu processo de aprendizado é apenas a olho," afirmou Miuccia. "Não é nada científico." Kate Betts, da Vogue, observou em 1995 que "toda peça da Prada é uma Madeleine de Proust que Miuccia processa através de sua estética, fundindo o que absorve do presente com o que absorveu do passado.”

"Luto por algo novo", diz Prada, "mas sempre sou influenciada pelo passado”. "Acho interessante fazer roupas modernas para mulheres modernas,” disse Raf Simons à Vogue em 2012, "mas isso também pode se referir à nostalgia por uma determinada época.”

Jil Sander - inverno 2012 e Prada - verão 2012 (Foto: ImaxTree e Getty Images)

Raf Simons para Jil Sander - inverno 2012 e Prada - verão 2012 (Foto: ImaxTree e Getty Images)

Prada admite que "desde os 13 anos, nunca me despedi de nenhum vestido que comprei.” Quando fui visitá-la no início dos anos 90, seus armários – que incluíam as roupas de sua mãe e as de seus dois filhos – enchiam todos os cômodos da luxuosa casa de interior da família, disputando espaço com a impressionante coleção de obras icônicas das principais figuras do movimento Arte Povera. "Talvez eu possa dizer que não amo moda," confidenciou Prada em 2004, "mas amo roupas completamente." Esses primeiros designs, criados por meio de um relacionamento simbiótico com a equipe de design e stylists dedicados da Prada, resultaram em roupas que a Vogue descreveu como "uniformes para os menos favorecidos.” Coleções desenvolvidas por meio de mensagens um tanto enigmáticas da diretora de criação. “Courrèges e Inuit”: ela poderia instruir a equipe no início de uma temporada, e seus comentários nos bastidores para imprensa incansável não eram menos gnômicos. Mark Holgate certa vez os descreveu como os "enunciados do oráculo de Delfos," citando a avaliação da Prada da sua coleção de outono de 2005: "Uma feminilidade antiga, dolorosa e forte – como em alguns filmes chineses.” "Masculino, feminino, indecifrável", dizia as notas do desfile primavera 1994 da Prada.

"Mesmo que o estilo seja clássico", disse Miuccia em 1992, "deve haver um detalhe, um tecido fabuloso, algo incomum que coloca a imaginação da mulher para trabalhar”.

Prada- inverno 2015 e Christian Dior - inverno 2014  (Foto: ImaxTree e Getty Images)

Prada - inverno 2015 e Raf Simons para a Dior - inverno 2014 (Foto: ImaxTree e Getty Images)


Por mais sério que seja o trabalho dela, o senso de humor excêntrico da Prada nunca está muito longe do seu cotidiano – ela é uma executiva-chefe que, só para não esquecer, tem um escorregador de Carsten Höller para fazer uma viagem aventureira do seu estúdio no terceiro andar até o pátio abaixo. Andrew Bolton, do Met's Costume Institute, viu tantas conexões com o trabalho inovador da italiana Elsa Schiaparelli que, em 2012, criou a exposição "Schiaparelli and Prada: Impossible Conversations" ("Schiaparelli e Prada: Conversas impossíveis"), em torno do trabalho dessas intrigantes mulheres intelectuais que, nas palavras dele, utilizaram  "a moda como veículo para provocar, confrontar convenções normativas de gosto, beleza, glamour e feminilidade.”

Schiaparelli declarou, por exemplo, que "é preciso pressentir a tendência da história e precedê-la.” "Para mim," observou Prada, "é importante antever a direção que a moda está tomando.”

"Sempre achei que as roupas da Prada pareciam normais, mas não muito normais," disse ela. "Talvez contenham pequenas distorções que são perturbadoras ou há algo não aceitável nelas. Talvez haja um pouco de mau gosto. Mas mau gosto não é ruim: é um gosto diferente. Além disso, o brega faz parte da atualidade.”

Prada - verão 2014 e  Jil Sander - verão 2012 (Foto: ImaxTree e Getty Images)

Prada - verão 2014 e Raf Simons para Jil Sander - verão 2012 (Foto: ImaxTree e Getty Images)


“Para mim”, disse Prada, “o que é importante na moda é a expressão. Porque você expressa não apenas as coisas sociais e a estética do seu tempo nas suas roupas, mas também quem você é. Embora a maneira como você se vista seja provavelmente a coisa menos importante para você, é a primeira coisa que os outros veem. Portanto, se você se veste de maneira pessoal e individual, isso provavelmente significa que não sente a necessidade de agradar ninguém. O que provavelmente significa que você é muito forte, muito seguro de si”.

Christian Dior - verão 2013 e Prada - verão 2008  (Foto: ImaxTree e Getty Images)

Raf Simons para Dior - verão 2013 e Prada - verão 2008 (Foto: ImaxTree e Getty Images)


Simons não é menos sensível ao espírito cultural da época. Ele estudou design industrial e passou a juventude estudantil na balada Fuse, de Bruxelas, onde nasceu sua paixão pela música techno e a moda, e no café Witzli-Poetzli em Antuérpia, na Bélgica, onde passou longas noites discutindo os respectivos méritos de Helmut Lang e Martin Margiela com um grupo que se tornaria sua equipe de suporte criativo em suas vidas subsequentes.

Criativamente, já existem muitos pontos de conexão entre Miuccia e Simons. "Estou tentando juntar tudo, incluindo o passado – que eu incorporo," disse Miuccia. (Quando o WWD descreveu depreciativamente uma coleção como "Os Flintstones conhecem os Jetsons", a própria Prada "achou que aquilo era fantástico.”)

Prada - inverno 2013 e Christian Dior - inverno 2012 Couture (Foto: ImaxTree e Getty Images)

Prada - inverno 2013 e Raf Simons para Dior - inverno 2012 Couture (Foto: ImaxTree e Getty Images)


Quando Simons chegou à Dior em 2012, ele firmou, como observou Mark Holgate, "uma colisão da Paris ancien e nouveau", em uma coleção estreante de alta-costura que era "deslumbrante e profundamente respeitosa com os códigos de casa estabelecidos por M. Dior por volta de 60 anos antes.” O próprio Simons descreveu sua abordagem à Dior como "uma nostalgia do futuro.”

Como sempre, ele buscou inspiração na música e na arte. Seus deslumbrantes desfiles de moda masculina para sua própria grife homônima reconsideraram o paradigma masculino com garotos de quadris estreitos, vestidos com ternos que, como os de Prada, muitas vezes pareciam uniformes e pequenos demais para os modelos, que marcharam ao som de Kraftwerk e outros gurus da música eletrônica. Para a Dior, Simons começou a ouvir as intensas e românticas músicas "Madame Butterfly" e "Paris", de Malcolm McLaren. "Não consigo viver minha vida sem música," explicou ele a Holgate, "e não consigo ver a garota sem música.”

Raf Simons - verão 1998 masculino e Prada - inverno 2019 (Foto: Reprodução e Getty Images)

Raf Simons - verão 1998 masculino e Prada - inverno 2019 (Foto: Reprodução e Getty Images)

A abordagem da Prada à arte também foi game-changing, e ela e Bertelli presentearam Milão, Veneza e Xangai com espaços inspiradores e intensamente pessoais para apresentar os artistas que admiram e, ocasionalmente, apreciar a arte que colecionaram, especialmente na Fondazione Prada, em Milão. Ela trabalhou com a sua amiga, a arquiteta Rem Koolhaas, para transformar uma antiga destilaria dentro de uma represa industrial de Milão em uma série de espaços multissensoriais que conseguem, como a própria Prada, ser profundamente sérios e altamente extravagantes ao mesmo tempo. “Tudo,” explicou ela quando a Fondazione foi aberta em 2015, “é um instrumento para encontrar novos conceitos e fazer algo novo.” Ela acrescentou: "Tudo mudou quando comecei a deixar que meus interesses entrassem no meu trabalho."

Enquanto isso, os colaboradores íntimos de Raf Simons incluem o artista Sterling Ruby, cujas obras em telas cintilantes foram traduzidas em tecidos para o seu desfile de estreia de alta-costura da Dior (apresentado, inesquecivelmente, em salas decoradas pelo florista da Antuérpia, Mark Colle, com um milhão de flores perfumadas). As artes plásticas de Ruby foram posteriormente exibidas nos interiores experimentais da loja e showroom da Calvin Klein. Para suas roupas a CK, Simons selecionou imagens de outro americano icônico, Andy Warhol, para criar efeitos brilhantemente inventivos. Em casa, ele canaliza o estilo mid-century de suas amadas tias, e vive com as obras de seus amigos Ruby, George Condo e Cris Brodahl, além da cerâmica de Valentine Schlegel, Axel Salto, Pablo Picasso e Pol Chambost (o último como inspiração para algumas peças marcantes da sua coleção Jil Sander feminina de outono 2009).

Para Simons, a parceria com a Prada é uma oportunidade de "relembrar como a criatividade pode evoluir no sistema de moda atual.” "É um novo vento," disse Miuccia Prada quando as notícias da colaboração foram divulgadas. É um vento que carrega a promessa de um entusiasmo mais criativo da estilista, que declarou antes que nunca quis “se tornar uma prisioneira do meu próprio estilo. Gosto de seguir em frente.”