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VARIOUS CITIES - JUNE 28: In this screengrab, Michelle Obama is seen during the 2020 BET Awards. The 20th annual BET Awards, which aired June 28, 2020, was held virtually due to restrictions to slow the spread of COVID-19. (Photo by BET Awards 2020/Getty  (Foto: Getty Images via Getty Images)

Depressão leve: por que tem sido impossível fugir dela na quarentena (Foto: Getty Images via Getty Images)

Na segunda edição de seu podcast, que foi ao ar na última quarta-feira, Michelle Obama disse estar passando por uma depressão leve. “Não apenas por causa da quarentena, mas por causa da disputa racial, e apenas ver este governo, observar a hipocrisia dele, dia após dia, é desanimador.” Seu depoimento lança luz à necessidade de tratarmos abertamente sobre depressão, mas vai além, ao inserir o debate sobre saúde mental no campo social e político.

Algo soa familiar no relato de Michelle. Brasil e Estados Unidos atravessam a pandemia liderados por presidentes que insistem negar e reduzir sua gravidade, e cujas gestões desastrosas no controle da Covid-19 levaram ambos países aos mais altos números de mortos no mundo. O assassinato de George Floyd também possui seus espelhos aqui. Marielle Franco, João Pedro, Ágatha Félix e tantos outras vidas perdidas. Muito já foi dito sobre os possíveis impactos da pandemia em nossas emoções, mas será que já falamos o suficiente a respeito das consequências do racismo e seus desdobramentos na saúde mental de pessoas negras? E quanto aos danos psicológicos causados por uma liderança política que não acolhe a saúde pública como prioridade e não reconhece o grave momento que estamos atravessando?

Michelle disse estar passando por uma depressão leve. A depressão pode manifestar-se de diferentes formas e em intensidades distintas, mas jamais deve ser ignorada, mesmo em casos menos graves. O surgimento de sintomas como tristeza, falta de energia, perda da vontade e do prazer, alterações do sono e do apetite, que se estendem por semanas e prejudicam de maneira significativa a sua vida devem ser avaliados sempre, e quanto mais precocemente instituído tratamento melhor. Mas como endereçar esse tipo de depressão causada por tamanhas mazelas sociais nas quais estamos mergulhados, uns mais que outros? E como tratar pessoas cuja esperança no pacto social foi rompida?

O descaso com que a pandemia vem sendo conduzida desde o início por Bolsonaro aflora o sentimento de desamparo compartilhado por tantos brasileiros nos últimos meses, que vai muito além do medo já causado pelo novo coronavírus em si. O cenário é estarrecedor: desincentivo obstinado ao isolamento social, difusão de desinformações, promoção de medicamentos sem comprovação científica, desarticulação com os diferentes municípios, ausência de um ministro da saúde por mais de 3 meses, e um estarrecedor silêncio quanto as mais de 100 mil vítimas no Brasil.

Também não ouvimos qualquer pronunciamento referente aos repetidos assassinatos de pessoas negras no país por parte da polícia. Quantas vidas serão perdidas para reconhecermos que o verdadeiro sintoma que se impõe ao Brasil agora é essa nossa paralisia e incapacidade de olhar para nossas feridas sociais? Sintoma que se instalou na fundação da nossa história e que nos impede de olhar para nós mesmos e seguir em frente.

O psiquiatra negro Frantz Fanon, nascido na Martinica e importante pensador do século 20 sobre os impactos do colonialismo na saúde mental, foi pioneiro ao articular o antirracismo ao exercício clínico. Fanon defendia que a prática em saúde mental fosse capaz de contemplar os múltiplos fatores sociais da subjetividade e do sofrimento, incluindo as contradições sociais de raça, classe e gênero. Morreu jovem, aos 36 anos, mas deixou um legado importantíssimo, que ganha maior alcance agora no Brasil com o recém publicado Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos, da editora Ubu.

Além do luto pela perda de mais de 100 mil vítimas, é preciso falar também sobre a morte simbólica da ideia de pertencimento coletivo, que se esgarça mais a cada dia, e testa o limite da barbárie que somos capazes de tolerar e compactuar. Diante da escalada ascendente de subtração da dignidade humana, cabem as perguntas: é possível sentir-se bem? Como não deprimir? Não devemos confundir depressão com tristeza, e nesse cenário, sentir-se triste em algum grau é absolutamente normal e também uma maneira de expressar saúde mental, se pensarmos que o momento que atravessamos inspira tantas preocupações e dificuldades. A própria cobrança por estar  bem quando tudo vai mal também pode levar à depressão. Abraçar a frustração e tentar lidar com ela como é possível, às vezes, é tudo que nos cabe. Como diz o provérbio, não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe. Vai passar.