• Angelica Cheung
  • Vogue Internacional
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Carta de Pequim: a diretora de redação da Vogue China conta como está achando forças para passar pela crise do coronavírus (Foto: Reprodução/ Kevin Frayer/ Getty Images)

Carta de Pequim: a diretora de redação da Vogue China conta como está achando forças para passar pela crise do coronavírus (Foto: Reprodução/ Kevin Frayer/ Getty Images)

Três semanas atrás, voltei da semana de alta-costura de Paris e da conferência internacional da Vogue animada por finalmente ver minha família de novo. Pouco sabia que nas próximas 24 horas minha vida mudaria drasticamente.

Assim que aterrissei em Pequim, peguei um trem-bala para a estação de esqui de Thaiwoo, onde minha filha e marido me esperavam. No dia seguinte, nos disseram que o resort em que estávamos ia fechar em poucas horas e que todos os instrutores de esqui e hóspedes deveriam voltar para seus países e casas. Fomos um dos últimos a deixar o hotel, carregando nossas malas por corredores vazios.

Enquanto esperávamos pelo ônibus que nos levaria para estação de trem, estávamos apreensivos com o que nos aguardava assim que chegássemos a Pequim. O que aconteceu? Seguindo sugestões médicas, ficamos confinados em casa por mais de duas semanas, período de incubação do coronavírus.

Carta de Pequim: a diretora de redação da Vogue China conta como está achando forças para passar pela crise do coronavírus (Foto: Reprodução/ Kevin Frayer/ Getty Images)

Carta de Pequim: a diretora de redação da Vogue China conta como está achando forças para passar pela crise do coronavírus (Foto: Reprodução/ Kevin Frayer/ Getty Images)

Os primeiros dias do confinamento voluntário nos deixaram com o sentimento de que tínhamos sido cortados completamente do resto do mundo – o cancelamento de voos fez com que fosse impossível tentar cair fora. Ficamos preocupados ao ler notícias sobre o surto, tristes com o crescente número de casos e mortes e bastante tocados com as histórias corajosas de doutores e enfermeiros na linha de frente na cidade de Wuhan, onde a epidemia começou.

Como a maioria das pessoas de Pequim que conta com colaboradores, também presos em suas casas, nos organizamos para fazer as tarefas domésticas e rapidamente entendemos a melhor maneira de fazer com quem suplementos chegassem para nós via serviços de delivery. Com a epidemia ficando pior, todos os visitantes foram banidos de entrar em áreas residenciais – e isso incluía serviços de delivery. Saíamos várias vezes por dia para pegar pacotes deixados na portaria, usando spray desinfetante em tudo e, depois, tendo certeza, de que tínhamos lavado bem as mãos várias vezes ao dia. Comprar máscaras e desinfetantes virou uma luta, já que estavam se esgotando rápido em todos os lugares.

Entre a rotina de ir buscar as coisas na portaria e fazer trabalhos domésticos, passava o tempo em centenas de discussões via WeChat [a versão de WhatsApp chinesa] e em vídeoconferências com colegas em todas as partes do mundo, tentando me concentrar em fazer as próximas duas edições da Vogue sem ter que estar fisicamente em entrevistas ou editoriais de moda. Isso sem falar do conteúdo que produzimos nas mídias sociais para que saciassem as necessidades dos seguidores nesse momento difícil.  Algum conteúdo já tinha ficado completamente irrelevante com o mood do momento e precisaria ser refeito e produzido de novo. Já a revista precisaria ter as datas de venda em bancas mudadas porque a impressão de exemplares seria reduzida, facilitando o transporte pelo país.

Carta de Pequim: a diretora de redação da Vogue China conta como está achando forças para passar pela crise do coronavírus (Foto: Reprodução/ Kevin Frayer/ Getty Images)

Carta de Pequim: a diretora de redação da Vogue China conta como está achando forças para passar pela crise do coronavírus (Foto: Reprodução/ Kevin Frayer/ Getty Images)

Não raro, choros e gritos podiam ser ouvidos ao fundo de vídeoconferências – alguns editores e seus parceiros têm filhos pequenos que estão entediados e inquietos, sem entender como não podem sair para brincar com os amiguinhos. Todas as escolas estão fechadas sem data para reabrir. Para algumas pessoas com grandes famílias, passar 24 horas num apartamento pequeno pode ser difícil e estressante até para quem é muito amigável... Amigos estrangeiros estão presos em diferentes partes do planeta decidindo se ficam onde estão até depois do feriado de Ano-Novo chinês. Um casal que conheço matriculou os filhos em aulas online de um colégio australiano; amigos americanos que voltariam de um safári na África e foram desviados para Paris ainda estão resolvendo se ficam por lá ou voltam para a China...

Felizmente só somos três pessoas em casa. Mas infelizmente não estou tendo contato direto com a minha mãe: ela está no hospital se recuperando de uma cirurgia e não pode receber visitas. Hayley, minha filha de 12 anos, que vai ao colégio Dulwich em Pequim, já se adaptou às aulas online. Ela está se transformando em uma estudante mais independente, apesar de estar mortas de saudades dos amigos que estão presos em outras partes do mundo. Pelo lado positivo, ela tem tido tempo de sobra para praticar guitarra – sua música favorita no momento é “I Want  to Break Free”, do Queen.

Carta de Pequim: a diretora de redação da Vogue China conta como está achando forças para passar pela crise do coronavírus (Foto: Reprodução/ Getty Images)

Carta de Pequim: a diretora de redação da Vogue China conta como está achando forças para passar pela crise do coronavírus (Foto: Reprodução/ Getty Images)

Depois de 15 dias em casa, voltei ao escritório no dia 10 de fevereiro para mandar a edição de março da Vogue para a gráfica. Poucos editores estavam comigo, todos de máscara, óculos e luvas descartáveis. Apesar de ser um dia oficial de volta ao trabalho pós-Ano-Novo chinês, o governo pediu que a população ficasse em casa. A maior das empresas pediu para que seus colaboradores fizessem home office. As ruas estavam desertas, calçadas vazias, a maiorias das lojas, fechada. Os poucos restaurantes abertos quase não tinham clientes. Nas entradas de cada shopping e prédio comercial, guardas mascarados medem sua temperatura corporal.

Ir às semanas de moda virou missão impossível. Cancelei minha ida a Nova York, Londres e Milão. Ainda estão decidindo sobre Paris, mas parece que também não vou conseguir, já que vários países europeus exigem que fiquemos 14 dias de quarentena. Claro que a indústria da moda na China, assim como todos os businesses, está passando por momentos difíceis, os piores dos últimos 20 anos. Eventos foram cancelados, os shoppings estão vazios, reuniões não são permitidas, viagens foram reduzidas, e a logística urbana está sob grande pressão. E mais: o clima do país é sombrio já que o único tema de conversa é o coronavírus. Para mim, tem sido confortante e gratificante receber carinho dos colegas da indústria de toda parte do mundo. Quando se está isolada, significa muito.

Apesar das inconveniências do confinamento, vejo pontos positivos. Estamos mais conscientes das nossas rotinas de higiene, tenho tido mais tempo para refletir sobre o que é importante na vida, aprendi a apreciar família, amigos e colegas depois dessa separação e fiquei mais esperta ao conduzir negócios online. Nosso estilo de vida e de trabalho vai mudar muito depois dessa experiência.

Carta de Pequim: a diretora de redação da Vogue China conta como está achando forças para passar pela crise do coronavírus (Foto: Reprodução/ Getty Images)

Carta de Pequim: a diretora de redação da Vogue China conta como está achando forças para passar pela crise do coronavírus (Foto: Reprodução/ Getty Images)

Enquanto escrevia minha Carta do Editor, lembrei da foto de Cecil Beaton impressa na Vogue inglesa em 1941, mostrando uma mulher em pé, impecável de luvas e chapéu, no meio do entulho de um prédio recém-bombardeado. O título da matéria era: A Moda É Indestrutível. Significa para mim que, apesar dos pesares, a vida continua e devemos olhar para o futuro com estilo e coragem. A epidemia vai acabar e devemos permanecer fortes. Decidi que a próxima edição da Vogue China será sobre coragem e esperança.