• Lia Rizzo
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Conceptual illustration of a young woman on a smartphone her hair is turning into birds and flying away depicting loss of connection with the real world. (Foto: Getty Images/Science Photo Libra)

Espaço virtual, assédio real (Foto: Getty Images/Science Photo Libra)

É possível afirmar que a insegurança feminina da vida real tenha se reproduzido, quase na mesma escala, no virtual. Violência de gênero que mais atinge mulheres em todo o mundo, o assédio já é também a principal violação que elas sofrem nas redes, seguido por ameaças e vazamentos de imagens íntimas. A constatação veio do estudo Além do Cyberbullying, desenvolvido pela empresa de pesquisas digitais Decode e o Instituto Avon, que analisou mais de 286 mil vídeos, 154 mil menções, comentários e reações em ambientes digitais, e mais de 164 mil postagens de notícias, no período de julho de 2020 a fevereiro de 2021.

A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 95% de ações agressivas ou difamatórias na Internet têm como alvo meninas e mulheres. No período analisado pelo levantamento da Decode, ao menos metade dos casos envolveu mensagens de natureza sexual, não consensual. Quando a questão é de vazamento de imagens como nudes ou outros conteúdos que deveriam ser privados, ex-companheiros e ex-parceiros estão envolvidos em mais de 80% dos episódios. Entre as práticas violentas mais recorrentes, estão ainda o registro não permitido de imagens e perseguição/stalking. 

As revelações não chegam a surpreender Camilla Jimene, sócia do Opice Blum, escritório de advocacia especializado em direito digital. “Somos a primeira geração que nasceu analógica e precisou aprender a viver o mundo digital. Não somos educados sobre como nos comportar de forma ética neste ambiente”, pontua a advogada. Para a psicanalista Manuela Xavier, soma-se à falta de letramento e ao machismo estrutural base de todas as violências de gênero, a toxicidade própria da internet. “Protegida pela tela, a pessoa se manifesta de forma cada vez mais explícita, sem vergonha de expor toda sua perversidade”, reflete.

Vozes violentas amplificadas
Doutora em psicologia, Manuela avalia que as redes têm seu lado positivo ao promover trocas e diversificar e amplificar vozes. “Há um outro aspecto, porém, que é o efeito do imediatismo na lógica do pensamento. Com tudo muito rápido, na pressa do tempo real que a Internet impõe, ao ler uma mensagem pulamos o tempo de compreender, de completar o pensamento antes de reagir ou responder”, explica. Nesta lógica, a violência acontece não apenas pelas mãos do agressor, mas daqueles que endossam a atitude - quando pública - avalizando o que está sendo exposto, seja com comentários ou deixando um like. 

O levantamento da Decode apontou ao menos três formas padrão de disseminação de violência contra mulheres no ambiente digital: a descentralizada, cometida contra mulheres e meninas individualmente, a ordenada, vinda de grupos que se organizam para ataques, exposições e humilhações conjuntos, e a resultante do compartilhamento de conteúdos íntimos, um dia enviados consentidamente, com a intenção de que tivessem ficado restritos à privacidade do casal. Famosa nas redes sociais por suas análises cirúrgicas de episódios públicos de misoginia e machismo contra mulheres e grupos minorizados, Manuela já se viu vítima das violências que busca combater e, neste ano, depois de uma onda de ataques, chegou a dar um tempo das redes.

A pesquisa Além do Cyberbullying mostrou que, como a psicanalista, muitas mulheres vitimadas pela agressão online acabam deixando as redes sociais, temporária ou definitivamente. Em alguns casos, as consequências ultrapassam as fronteiras virtuais. Das vítimas entrevistadas, 35% deixaram de sair de casa e mais de 30% relataram adoecimento psíquico, isolamento social e pensamentos suicidas. E, também como no “mundo real”, muitas mulheres se culpam pela violência sofrida (15%) e sentem dificuldades em denunciar (36%), por desconhecimento de direitos ou por não acreditarem que o agressor será punido.

Terra sem lei?
A Lei Carolina Dieckmann representou um importante, e talvez o mais célebre marco, para o combate a crimes virtuais, em 2012, cerca de um ano depois de a atriz ter fotos íntimas vazadas publicamente por um hacker que invadiu seu computador pessoal. Embora o ato de invasão e divulgação de dados pessoais já fossem considerados crimes, foi a partir de então que passaram a ser previstas multas e detenção de três meses a um ano para o autor das infrações. “A grande tendência é de que a legislação seja adaptada para recepcionar os avanços tecnológicos, na impossibilidade de se criar novas leis”, explica Camilla Jimene.

Outras mudanças relevantes vieram dois anos mais tarde, com o marco civil da Internet, quando ficaram mais claros e regulamentados direitos, deveres e garantias neste ambiente. “Mais recentemente, também a partir de alterações no código penal, foram criminalizadas as práticas de revenge porn (o pornô de vingança) e cyberstalking (conduta de perseguição e constante vigília), estupro virtual e a violência psicológica oriunda de constrangimento, ridicularização ou situação do gênero”, lista a advogada, lembrando ainda que a própria Lei Maria da Penha é aplicável também a relações virtuais.

Inteligência artificial revista
Camilla atenta, porém, que o viés de gênero na inteligência artificial - ou, traduzindo, na programação da tecnologia por trás de aplicativos, ferramentas de busca ou de seleção, por exemplo - precisa ser combatido. “Se não forem revistos, os critérios utilizados nos algoritmos seguirão perpetuando barreiras e desigualdades que não queremos mais”, diz a advogada. Manuela Xavier reforça: “as instituições são manejadas por homens, portanto elas não protegem mulheres. São homens que programam, os algoritmos são pensados e instrumentalizados por pessoas que estão atravessadas pelas éticas do machismo e de outros preconceitos”. Para a psicanalista, os crimes virtuais contra mulheres devem ser resolvidos na esfera judicial. Porém, é preciso que mais mulheres reconheçam a violência, já que muitas ainda naturalizam alguns ataques, sobretudo os mais sutis, e que esse espaço seja ocupado coletivamente.