• Filipe Batista (@filipebatistapsiquiatria)
Atualizado em
Mulheres e burnout (Foto: GREGORY HARRIS)

Burnout afeta CEOs de sucesso (Foto: GREGORY HARRIS)

Nos dois últimos anos, a CEO de sucesso passou a sofrer de insônia. Nunca foi de dormir muito, com quatro horas de sono sentia-se revigorada. Mas algo mudou. No escuro do quarto e deitada na cama, fecha o notebook após desistir de responder um e-mail. Será que o cliente a julgará por enviar às três? Às seis parecerá eficiente e mais equilibrada. Entra no Instagram como quem precisa caminhar pela rua sem rumo. O celular não aplaca sua angústia, que fica maior à noite, mas se convence de que a distrai enquanto o Lexotan e o Stilnox não fazem efeito. A essa altura, talvez nem façam.

O novo corte de cabelo da subcelebridade, receita de bolo fitness e junto a vontade de virar uma lata de leite condensado, sua ginecologista se rendeu às dancinhas do TikTok, decide que não voltará mais nela. Rola o dedo sob a tela na esperança de encontrar qualquer saída. A melhor amiga de adolescência está nas Maldivas com o marido e os quatro filhos, todos vestidos com a mesma estampa. Como consegue aquelas unhas bem-feitas e o cabelo impecável com quatro crianças? Parecem leves e felizes, um ar fresh que só alguém descansado é capaz de revelar. Na última vez que conversaram, censurou os próprios pensamentos, pois sempre reprimiu qualquer indício de inveja que pudesse ter pelas amigas.

Tem andado desleixada, prefere trabalhar de casa, sempre que possível com o vídeo desligado, e, quando não, dá um jeito, arruma o cabelo e troca a camisa. Tem preguiça de tomar banho e um misto de aflição e alívio quando pensa que prefere estar sozinha a encontrar alguém nessa situação. A última vez que viu sentiu-se tão pequena, tão inútil, que decidiu não se impor a tamanha vergonha. Ser só na tristeza lhe pareceu mais digno.   

A CEO de sucesso tem muitas respostas e soluções, mas anda cheia de dúvidas. Dormiria se pudesse, está esgotada. Questiona como seria caso não tivesse varado noites pensando em soluções para clientes pretensiosos e apressados. De que vale? Atualmente, possui uma insônia terrível da qual não consegue se livrar. As crises de pânico estão mais brandas desde que começou a tratar com psiquiatra e fazer terapia. Seu analista, um sujeito aparentemente alto, sereno, de voz grave e rugas pronunciadas que surgem da ponta externa dos olhos como raios de sol, fala pouco. Ainda não se conheceram pessoalmente, só por Zoom. Prefere, assim consegue estar conectada às notificações de e-mails e mensagens de trabalho enquanto cuida da sua saúde mental.

O longo silêncio durante as sessões a incomoda, mas se tornou um refúgio quando seu pensamento vaga pelas sombras. A CEO de sucesso só substitui o medo pela raiva quando imagina que se tornou a mulher frágil que sempre desprezou. Lembra da conversa que teve com uma estagiária moderninha e atrevida: não quero me enterrar viva no trabalho, entregar minha vitalidade a troco de tão pouco. Essa nova geração vem com a cabeça mais aberta e politizada, mas não possui a resignação que a trouxe até aqui, pensa solitariamente o que jamais revelaria. Acena com a cabeça para a estagiária atrevida, com um sorriso de canto de boca quase inexistente, em tom de aprovação pálida.

A CEO de sucesso está exausta, cheia de ódio, mas se acostumou a fingir, consentir e não desagradar. Invade todas as madrugadas trabalhando desde que sua demanda duplicou após cortes durante a pandemia. Corte de gastos, corte de funcionários. A CEO de sucesso cortada. Qual foi a última vez que encontrou os amigos e a família? Tanto faz, prefere ficar sozinha. Terminou um namoro há poucos meses. Era namoro? Tanto faz, já não se importa.

Passará o Natal e o Ano Novo só, tentará ocupar-se com o trabalho, muita coisa acumulada, o antidepressivo talvez comece fazer afeito até lá. Nessa época do ano, lembra muito da sua mãe, já morta. Nunca se afinaram e jamais admirou essa mulher. Fraca, passiva e subjugada, disse ao analista. Amarga até hoje por não conseguir sofrer a sua falta. Continua a caminhar solitária pelo Instagram. Seu medo agora é pura raiva, e o sono já foi embora junto com a pretensão de ainda dormir. Acordada, de olhos bem abertos, encontra a notícia derradeira. A partir do próximo ano, a síndrome de burnout passa a ser listada como fenômeno ocupacional. A nova classificação da OMS, CID-11, entra em vigor em 1 de janeiro de 2022.