• Sabrina Fidalgo (@sabrinafidalgoo)
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Maxwell Alexandre (Foto: Acervo Pessoal / Divulgação)

Maxwell Alexandre (Foto: Vitória Proença / Divulgação)

Nessa terceira entrevista da série que problematiza e propõem um revisionismo histórico do centenário daquele que é considerado o maior evento da história das artes brasileiras – “A Semana da Arte de 22” – me encontro virtualmente com Maxwell Alexandre.

Aos 31 anos, o carioca Maxwell, é hoje, sem sombra de dúvidas, um dos talentos da pintura mais celebrados de sua geração, para onde todas as fichas estão sendo apostadas e olhos do Brasil e do mundo inteiro estão se voltando. Mas, se hoje o céu é o limite para o artista que vive e trabalha em seu ateliê na Rocinha - a maior favela da América Latina – o começo da carreira não foi, digamos, assim tão auspicioso. Assim como nunca o é para um jovem preto de favela que ousa penetrar nos “espaços de poder” com sua arte no notório apartheid sócio-racial do mundo das artes no Brasil.

 + Maxwell Alexandre: você precisa conhecer o trabalho deste artista carioca

Por exemplo, parte da premissa para se inserir ou ser inserido nos círculos de arte contemporânea no Rio de Janeiro é ser branco, morador do Jardim Botânico, amigo dos amigos, com aquele inglês tinindo, aprendido na escola bilíngue e segregacionista mais próxima de você. Obviamente há controvérsias e variantes em tal afirmação. Provocações à parte, fato é que, não fosse a tomada decolonial que também dominou o mundo das artes começando por lá fora (e por “lá fora” leia-se a “Mecca” dos pós-colonizados, a saber: a Europa) nos últimos cinco anos, talvez a carreira de Maxwell Alexandre, tal qual como a conhecemos hoje, não existisse (ainda).

Ou então, levaria muito tempo, quiçá uns trinta ou até mesmo uns quarenta anos para acontecer, assim como ocorreu com muita sorte, diga-se de passagem, com artistas negros que só conheceram o gostinho de certo reconhecimento na velhice. Isso quando muito. De todo modo, consciente de todo esse processo, afinal, já havia experimentado o gostinho da rejeição ao chegar na “hora errada” nesse mesmo rolê, Maxwell, ao invés de repeli-lo, inteligentemente devorou, digeriu e deglutiu o rolê inteiro. E soube abraçar, antropofágicamente, todas as oportunidades que chegaram, muito por conta também da recém-adquirida “consciência racial” do mundo das artes no Brasil.

Mas se, por um lado, só recentemente a elite das arte contemporânea conseguiu enxergar o próprio Brasil a partir dos chamados do além-mar (mesmo se a Rocinha fica logo ali, depois da Gávea), por outro lado, nada de muito novo mudou do frenesi ufanista dos anos 20 do século passado para cá.

Vomitando Mário de Andrade

No artigo Porque Vomitei o Mário de Andrade, publicado na Revista Desvio, em junho 2018, o historiador, artista e curador Candé Costa, não só questiona como trucida toda a ideia de representação de um Brasil “fake”, idealizado por uma ótica delirante totalmente em desalinho com a realidade dos fatos. Ainda assim, foi essa ideia de representação que se impôs até os dias de hoje como sendo o supra-sumo do imaginário de um “Brasil moderno”:

O Brasil sempre teve suas práticas cotidianas à revelia de suas representações. Uma manifestação da nítida distância social brasileira onde as interpretações apresentam apenas o pensamento desta mesma elite, nada a ver com o povo brasileiro. O dia a dia fundamenta a analogia de como as representações de nossa cultura foram interpretadas e apropriadas pela elite de 22. Uma formulação de imaginário que vai desde José de Alencar com O Guarani (1857) – onde Peri é o herói apolíneo-indígena. Ser de virtude, guiado por valores nacionalistas, que salva a frágil donzela branca (que não o ama), emulando um dos mitos indígenas brasileiros da origem da humanidade.

Assim, sua prole mestiça de hibridismos materiais e imateriais, formaria nosso país – a romantização de uma miscigenação baseada em estupros processuais de mulheres negras e indígenas são equalizados numa falsa simetria silenciadora. O bloqueio criado por uma História referenciada numa ode à Grécia Antiga ainda entendida como O BERÇO da Civilização. A Civilização? As Civilizações.

Os indígenas brasileiros já viviam em sociedades com milhões de habitantes em sistemas sociais complexos, milênios antes da invasão europeia nas posteriormente nomeadas Américas. Macunaíma (1928) de Mario de Andrade é ainda mais violento. O protagonista, um negro que se torna branco após se lavar – isso mesmo, após se lavar -, é uma colagem literária dos mitos brasileiros interpretados por Mário. Macunaíma é descrito como lascivo, preguiçoso, desonesto apesar de sua inocência latente, oportunista. Uma descrição estupidificadora de toda uma nação.

Negros e negras preguiçosos no Brasil? O país da origem escravista onde negros e indígenas trabalhavam forçados por mais de 12 horas por dia? A lógica do absurdo vai além em sua narrativa reforçando mais ainda sua representação estigmatizante. Macunaíma trai seus irmãos, ignora conselhos, é um “anti-herói” não por traduzir verdade de um sujeito protagonista, mas por transmitir os limites cognitivos de Andrade sobre o próprio povo. Uma imagem nítida e ofensiva do outro,” arremata.

Arte Brasileira real oficial

Mas se depender de Maxwell, o jogo já virou. Esse imaginário racista da representação do povo brasileiro que ainda insiste em ser perpetuado e glorificado (!!!) até mesmo nas escolas públicas e particulares brasileiras (imaginem crianças alemãs hoje em dia aprendendo teorias racistas de Hitler contra judeus pelo viés de “arte nazista”?) é o extremo oposto de sua vivência e de sua obra.

Em sua série Pardo é Papel  – que encerra sua temporada no Instituto Tomie Ohtake, na capital paulistana, no próximo domingo, 25.07, - Maxwell explica que o motivo principal pelo o qual pensou na feitura desse trabalho foi a autoestima do negro. “Trata-se de liberdade, marra, ostentação, vitória, bonança e empoderamento. O primeiro momento da série se dá através de pinturas monumentais que tem como suporte fundamental o papel pardo.”, explica ele.

Criado em família evangélica, o artista passou primeiramente pelo exército e foi patinador de street profissional durante 12 anos. Em 2016 se formou em Design pela PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e, no ano de 2018, recebeu o Prêmio São Sebastião de Cultura da Associação Cultural da Arquidiocese do Rio de Janeiro, na categoria Artes Plásticas. Daí em diante foi uma sucessão de lutas e vitórias.

Após a exibição de sua primeira individual em São Paulo, Maxwell Alexandre embarca rumo a mais um voo altíssimo: sua próxima residência será no SAM Art Projects, que resultará apenas em uma individual do jovem artista brasileiro no Palais de Tokyo, em Paris. 

Com a palavra, Maxwell Alexandre!

VOGUE - Como se deu o seu primeiro contato com a arte?  Você já desenhava na infância? Quem te inspirou?
Maxwell: Quando eu era criança, desenhava bastante. Meu desenho já era bem mais desenvolvido do que dos meus pares. Minha mãe falava que esse era o dom que Deus tinha me dado. Por vir de berço evangélico, essa cultura da promessa divina era algo que realmente acreditávamos. Eu me inspirava muito em animes e quadrinhos. Era fã da Turma da Mônica e meu sonho era trabalhar com o Maurício de Souza.

Em 2012, durante minha graduação em Comunicação Visual, eu fiz um curso de plástica com Eduardo Berliner, foi meu primeiro contato com arte contemporânea, e consequentemente com pintura. Mas foi somente em 2017, quando pude ter meu primeiro ateliê, que entendi que o que eu estava fazendo naquele momento era pintura.

Até que ponto você se sente à vontade com a racialização do seu trabalho? Até que ponto limitar trabalhos de artistas negros a questão racial não seria uma forma de racismo também?
Eu venho da pintura abstrata, um lugar onde eu podia flertar com questões mais universais, filosóficas, do espírito e por aí vai. Eu amava fazer aquilo, e não que eu não goste do que eu faço hoje, falando da pintura figurativa. Eu poderia passar a vida fazendo qualquer uma dessas duas coisas.

Mas falar sobre negritude o tempo inteiro, por uma questão de necessidade, demanda de mercado ou fetichização é pesado, é chato, é foda. Mas acontece que todo o sucesso que meu trabalho alcançou em tão pouco tempo tem relação direta com a racialização dele. Eu bati em portas de galerias, entre outras instituições antes, pedindo uma chance para mostrar minha prática, mas ninguém queria saber de um preto que estava falando sobre questões próprias da pintura, da arte, da alma.

O lugar do preto vai ser muito mais certo quando for para tratar de questões próprias da negritude. É constrangedor. Perceber isso quase me bloqueou porque me fez pensar que minha aceitação no circuito de arte tinha relação direta com uma política de cotas. Uma vez que eu só consegui me infiltrar neste sistema quando o trabalho passou a ser figurativo, consequentemente tratando do corpo preto político, socila e biográfico.

Hoje existe uma incorporação das causas minoritárias nas marcas, na moda, na publicidade, no mercado de maneira geral e é óbvio que no mundo da arte não ia ser diferente. A reparação histórica não é caridade, mas uma conquista. De qualquer maneira, eu precisava de uma outra narrativa que não me constrangesse tanto. Então toda vez que eu me perguntava se eu só cheguei onde estou pelo fato de ser negro, eu elaborava a mesma pergunta para um artista branco. E a resposta era positiva também.

O que quero dizer é que Adriana Varejão só é Adriana Varejão porque é branca. Quando cheguei a esta conclusão eu pude descansar neste sentido, já que eu não queria estar nesse rolê apenas por cotas. E honestamente eu acredito que se fosse possível desracializar minha obra, mesmo que daqui a 200 anos, ela sobreviveria em termos de excelência no campo das artes plásticas, e estaria no panteão junto de Matisse, Picasso, Cézanne, entre outros mestres. Uma outra coisa que dá pra trazer nessa discussão é o parâmetro que o circuito da arte usa para integrar os artistas, que nada tem aver com a qualidade ou comprometimento da pesquisa em artes, mas sim com suas relações. Sendo assim, deste ponto de vista, não existe problema algum entrar por cotas.

E o processo de criação da obra Pardo é papel como foi?
Eu colecionava fragmentos de papel pardo desde 2015 do laboratório de moda da faculdade. Esse tipo específico de papel é muito comum no uso de modelagem de roupas, e eles vinham com as anotações de medidas que os alunos do curso de moda deixavam. Eu sempre ia ao laboratório para costurar e isso me chamou atenção, então eu passei a guardá-los. Nessa época eu fazia pintura abstrata ainda, mas eu já tinha vontade de pintar auto-retratos. E a arte tem disso, sabe aquele dia que tu chega no ateliê para trabalhar sem plano algum? Pardo é Papel surgiu nesse contexto.

Eu não planejei a série, eu apenas não sabia o que fazer, quando olhei para os papéis perdidos ali no espaço e senti que eu deveria pintar aqueles auto-retratos que há tanto tempo estavam na cabeça. Eu queria figurar um personagem preto com cabelo loiro. Assim como os meus são, platinados com blondor. Eu pensava na pintura muito pela estética, então usar um papel amarelo de suporte era certeiro para resolver essa primeira camada, já que qualquer pincelada, preta, branca ou azul iria funcionar num background de cor tão contrastante. Eu conhecia esse apelo.

Quando pintei o terceiro ou quarto autorretrato, me liguei que aquelas pinturas estavam para além de uma discussão estética, uma vez que o desígnio pardo foi usado durante muito tempo como uma forma de embranquecimento, de velar a negritude. Entendi que pintar corpos pretos sobre papel pardo era uma maneira poética de inverter essa narrativa.

Qual o seu objetivo como artista? Onde você quer chegar?
Meu objetivo é transformar o Rio de Janeiro na capital da arte contemporânea. Quando pensarem no Brasil, quero que pensem que aqui é o lugar onde a arte é boa, forte, poderosa. Minha maior ambição é que a gente seja referência universal neste sentido.