• Maria Gal (@mariagalreal)
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A cineasta Sabrina Fidalgo (Foto: Divulgação)

A cineasta Sabrina Fidalgo (Foto: Divulgação)

Como vocês sabem estamos ampliando a coluna também para o formato de entrevistas. Na busca de entrevistar cineastas negras, conversei com Sabrina Fidalgo, profissional que tem um trabalho riquíssimo no cinema autoral.

Na entrevista, falamos sobre o sua trajetória e o setor do audiovisual, que é um dos mais complexos no que se refere a representatividade negra na frente e por trás das câmeras. Inclusive, em outro artigo desta coluna, detalhei os dados da pesquisa sobre a representatividade realizado pelo Grupo GEMAA da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Vale a pena ler, os dados são assustadores. E nessa questão, o que falta aos muitos cineastas, diretores, roteiristas, assim como atores negros são oportunidades!

E Sabrina tem uma vasta trajetória! Ela é uma multipremiada diretora e roteirista carioca. Foi apontada pela publicação americana BUSTLE, em oitavo lugar, como uma das cineastas mais promissoras ao redor do mundo, entre outras 36 diretoras internacionais. Estudou na Escola de TV e Cinema de Munique, na Alemanha, e foi contemplada com uma bolsa de estudos para estudar roteiro pela ABC Guionísta España na Universidade de Córdoba, na Espanha.

Elisa Lucinda em Alfazema (2019) (Foto: Paula Kossatz/Divulgação )

Elisa Lucinda em Alfazema (2019) (Foto: Paula Kossatz/Divulgação )

Seus filmes já foram exibidos em mais de 300 festivais no mundo. O media-metragem Rainha (2016) ganhou mais de 20 prêmios e foi selecionado para a mostra Perspectives do Festival de Rotterdam. Seu último curta Alfazema (2019) foi duplamente premiado no Festival de Brasília e vencedor do Trofeu de Melhor Filme do Júri Popular do Festival Curta Cinema.

É colunista do HuffPost Brasil e colaboradora da coluna Quadro Negro da Folha de S.Paulo.

Com vocês, a talentosíssima Sabrina Fidalgo:

Sabrina, me fala um pouco de sua trajetória enquanto cineasta:
Eu decidi me tornar diretora aos 7 anos de idade quando assisti o filme O Mágico de Oz (1939) na sala de casa com meus pais. Sei que soa absurdo dizer isso, mas esse foi o meu real sentimento quando terminei de ver o filme. Meus pais eram pessoas de teatro (o dramaturgo Ubirajara Fidalgo e a produtora Alzira Fidalgo, criadores do T.E.P.R.O.N - Teatro Profissional do Negro) e eu cresci entre coxias, palcos, ensaios, artistas em casa, muitos filmes e idas ao cinema. Herdei esse amor ao cinema deles e levei comigo no decorrer da vida. Fui muito cinéfila na primeira metade da minha adolescência e depois achei que deveria seguir a carreira de atriz. Fiz alguns cursos de teatro e até passei no vestibular para o curso de Teoria do Teatro e Artes-Cenicas da Uni-Rio, mas logo entendi que estava fazendo a coisa errada. Não me sentia a vontade no palco, não gostava da ideia de interpretar outros textos, de ser dirigida por outras pessoas, da bajulação que os atores precisavam se submeter para serem vistos, da falta de oportunidade e de papéis dignos para atores negros, do racismo e machismo nesse meio.

Enfim, queria ter total autonomia e liberdade para fazer o que eu quisesse e foi aí que entrou o cinema, já na Alemanha. Lá, enquanto estudava na Escola de TV e Cinema, fui contemplada com uma bolsa de estudos da instituição espanhola ABC Guionistas para cursar roteiro na Universidad de Córdoba. Realizei meus primeiros curtas nessa época e em 2008 retornei ao Brasil com o material de um curta rodado em Berlim, seria meu terceiro curta àquela altura. Resolvi filmar as cenas de flashback do personagem no Rio e finalizei o filme aqui, era Black Berlim (2009), o primeiro filme da minha produtora, Fidalgo Produções, é o filme que me abriu as portas aqui no Brasil.

Sobre a trilogia que você está dirigindo, fale um pouso sobre as partes 1, 2 e terceira parte:
A primeira parte é o media-metragem Rainha (2016) que fabula sobre um carnaval preto e branco, nostálgico, melancólico, atemporal a partir do ponto de vista de uma aspirante ao posto de rainha da bateria de uma escola de samba.

Rainha (2016)  (Foto:  Júlia Zakia/Divulgação )

Rainha (2016) (Foto: Júlia Zakia/Divulgação )

A segunda parte é o curta Alfazema (2019), que, ao contrário do filme anterior, é uma explosão de cores, tesao, sedução e confusão. É um filme debochado, uma comédia-rasgada que conta a saga da Flaviana (Shirley Cruz) que durante o carnaval tenta se arrumar para ir a um bloco ao mesmo tempo em que tenta se desvencilhar do amante da noite anterior que se recusa a sair de seu chuveiro.

Já a terceira parte da trilogia será um longa chamado Karnaval, mas assinei um termo de sigilo com os co-produtores e nada posso revelar sobre esse projeto além de que ele está em fase de desenvolvimento.


Quais os maiores desafios que uma cineasta negra enfrenta no Brasil?
São muitos. Visibilidade, fomento aos projetos, penetração no mercado, etc. As pessoas acham que somos “cafe-com-leite” porque não dirigimos nenhum episódio de uma série da Netflix, por exemplo. Sendo que quando você olha o currículo dos homens-brancos-hétero-cisgênero-ricos que ocupam esses espaços, eles não chegam nem aos nossos pés em termos de trajetórias, prêmios, referências, etc. Já poderia ter realizado o meu primeiro longa há pelo menos uns 10 anos atrás, mas sendo uma diretora negra certamente esse foi um empecilho. Mas eu não gosto muito de ficar focando nas dificuldades. Faço do limão uma limonada e sou arretada. Hoje eu sei tirar muito bem proveito desse lugar que ocupo e exijo tudo o que mereço e é meu por direito. Simples assim.


Você tem interesse em fazer outros trabalhos, enquanto diretora e roteirista fora do cinema?
Eu estou aberta. Tenho interesse em receber boas propostas e analisá-las.Tudo é uma questão do tipo de proposta que é feita. Seja para TV aberta, série ou qualquer outro formato ou veículo. Pessoalmente estou muito interessada no universo da videoarte e acabei de fazer um curso da EAV (Escola de Artes-Visuais do Parque Lage) com o artista Marcus Bonisson. Fiz um vídeo de final de curso que foi elogiado e estou pensando em experimentar nesse outro lugar também.

Fabrício Boliveira em Personal Vivator (2014)  (Foto: Quito Marcos/Divulgação)

Fabrício Boliveira em Personal Vivator (2014) (Foto: Quito Marcos/Divulgação)

Estamos vivendo um momento bem delicado na cultura e no audiovisual brasileiro, porém para realizadores negros a crise no audiovisual é muito mais complexa por conta do racismo estrutural que move todo o setor. Quais saídas você enxerga para termos um audiovisual de fato inclusivo e democrático?
Eu acredito no poder do black money. Não dá mais para consumir conteúdos que não expressem a realidade do nosso país que é constituído de 56% de população negra. Acredito que o mercado já começou a entender isso e que também não basta somente ter alguns atores negros no elenco. É necessário termos equipes criativas repleta de pretos em posições de poder; produção-executiva, direção, roteiro, fotografia, arte e daí por diante. Não é mais possível termos editais fomentando com nossos impostos produções de supremacia branca e racistas que apagam em 100% a presença de pessoas pretas, indígenas e trans na frente e atrás das câmeras. Essa realidade precisa acabar já.

Para driblar essas medidas pessoas brancas do audiovisual que nunca antes escalaram uma pessoa preta para trabalhar em seus filmes anteriores, estão agora investindo no que eu chamo de “roubo de narrativas”, que vem a ser o “uso” de narrativas inclusivas pela branquitude somente para fazer a manutenção de seus privilégios. No final das contas, as comitivas brasileiras em grandes festivais internacionais como Berlinale, Rotterdam e Cannes continuam sendo brancas e são essas mesmas pessoas que continuam ganhando editais, verbas e afins em detrimento de realizadores e realizadoras pretos, pretas e indígenas. É preciso estar atento e forte para mudar de vez esse paradigma colonial do nosso audiovisual. Nosso cinema tem que ter a cara da maioria do povo na frente e atrás das câmeras e com a mesma infraestrutura que sempre foi destinada aos brancos. Só assim poderemos pensar em algo que possa receber o nome de “cinema brasileiro”.