• Chantal Sordi
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Daniella Perez e Raul Gazolla, seu ex-marido  (Foto: Divulgação )

Daniella Perez e Raul Gazolla, seu ex-marido (Foto: Divulgação )

Um dos gêneros mais populares dos últimos tempos, o true crime (ou crime real, em tradução livre) tem dominado a indústria do entretenimento, com uma onda de filmes, séries, livros e podcasts,que retratam casos verídicos de assassinatos, roubos e sequestros. Segundo levantamento da empresa de rastreamento de mídia global Parrot Analytics, as séries documentais cresceram 63% entre janeiro de 2018 e março de 2021, sendo o true crime o maior subgênero da categoria e o que cresce mais rápido entre todos os outros, incluindo esportes.

Lançamentos recentes, como A Escada, evidenciam a febre. Estrelada pelo vencedor do Oscar, Colin Firth, Toni Colette e outros nomes de peso, a minissérie conta a história real do escritor Michael Peterson, que foi condenado pelo assassinato da esposa, Kathleen. Antes disso, outras produções aclamadas do gênero já estavam no topo da audiência da plataforma, entre elas: Eu Te Amo, Agora Morra: O Caso de Michelle Carter; Eu Terei Sumido na Escuridão e The Jinx: The Life and Deaths of Robert Durst.

Mas qual o motivo para esse enorme interesse em histórias tão violentas? Aparentemente, não há uma única resposta, mas algumas razões que ajudam a explicá-lo. “Existe o fascínio de conhecer a mente de um criminoso, já que, em alguns casos, nem o melhor roteirista de Hollywood poderia imaginar tramas como essas”, afirma a Gerente de Desenvolvimento de Conteúdo Unscripted HBO Max Brasil, Verônica Villa.

Para a atriz, produtora e diretora Tatiana Issa, é uma forma de expurgar os medos. “Talvez ajude a conhecer um pouco mais do perigo ao seu redor, a ficar mais atento, entender que nenhum de nós está livre de se deparar com um psicopata.” Um dos nomes por trás de Pacto Brutal, nova produção original sobre o assassinato de Daniella Perez, Tatiana também credita o sucesso do gênero a uma tentativa de valorizar a vida. “Alguns dizem que, ao ver histórias tão horríveis e cruéis, o ser humano consegue olhar para o seu próprio cotidiano de outra forma, mas acho que a mente humana sempre buscou isso, fosse indo ao Coliseu na Roma antiga para ver as pessoas serem devoradas por leões, ou assistindo aos noticiários sangrentos da TV aberta atual.”

Daniella Perez (Foto: Divulgação )

Pacto Brutal, nova produção original sobre o assassinato de Daniella Perez (Foto: Divulgação )

Com estreia prevista para julho, a série documental busca expor a verdade sobre o crime, ocorrido em dezembro de 1992, assim como a história do processo legal que condenou os assassinos e a perspectiva da mãe da vítima, a autora Glória Perez. “Cada episódio conta uma história que vai prender aqueles que não conhecem o crime e vai conectar com a memória daqueles que o viveram”, explica a Diretora de Conteúdo Unscripted da Warner Bros. Discovery da América Latina, Paula Kirchner.

A série é baseada nos autos do processo, com uma pesquisa jurídica em cima dos documentos e arquivos,além de reunir depoimentos de praticamente todos os envolvidos no julgamento do caso. “É muito importante que essa história não seja esquecida, tanto pela violência do ato, quanto pela reflexão que temos de fazer sobre a cobertura desse tipo de crime”, completa Guto Barra, codiretor do projeto. “Esse caso foi um marco dos vícios que estão presentes até hoje em muitas camadas da sociedade, que fazem com que a mulher sempre seja questionada”, continua ele.

Além de ser a vítima na grande maioria dos casos, o público feminino também é o que mais consome true crime, representando 70% da audiência. “Talvez isso as interesse porque é algo que faz parte do cotidiano de mulheres, esses comportamentos masculinos tóxicos que culminam em violência”, analisa a diretora da ONG Think Olga e da consultoria Think Eva, Maíra Liguori. “O gênero funciona quase como uma ferramenta de conscientização, é como se elas estivessem aprendendo com as histórias a se prevenir, com estratégias para se safar”, reforça Verônica.

Detalhes da autópsia do corpo de Daniella Perez com múltiplas perfurações na região do coração, ombro e pescoço (Foto: Divulgação )

Detalhes da autópsia do corpo de Daniella Perez com múltiplas perfurações na região do coração, ombro e pescoço (Foto: Divulgação )

Outro fator que desperta o interesse para o true crime é a acessibilidade. “O entretenimento tem a capacidade de explicar temas densos de uma maneira mais palatável e criativa, podendo chegar a pessoas que talvez não fossem tocadas por esse tipo de conteúdo”, explica Liguori. “Por isso, vejo como uma peça fundamental na mudança de conscientização, para levar um pensamento crítico ao público, aprofundando o olhar e mostrando a complexidade desses casos, com diferentes pontos de vista e todas as suas nuances.”

O gênero também é importante para jogar luz em casos não solucionados, como o de María Marta García Belsunce, que será retratado em María Marta: O Assassinato No Country Clube. Com oito episódios, a minissérie se baseia no crime que ocorreu na Argentina, em outubro de 2002, quando Belsunce foi encontrada morta no banheiro de sua casa, em um condomínio fechado na província de Buenos Aires, numa cena que parecia ser um acidente doméstico, mas se tornou um dos crimes mais emblemáticos da Argentina.

O assassinato não foi solucionado até hoje e o principal suspeito, Carlos Carrascosa, marido da vítima, chegou a ser condenado à prisão perpétua, mas foi liberado por falta de provas concretas. “Essa investigação me chamou a atenção, pois a partir dela podemos entender como pessoas reais são afetadas por um drama que já dura 20 anos e ainda não foi resolvido”, diz a diretora da série, Daniela Goggi. “Também quero propor uma reflexão sobre como a mídia às vezes julga a família imediatamente, atuando como juíza, e como os próprios magistrados usam a imprensa para decidir como perseguir uma questão de interesse público.” A produção também pretende mostrar como a falta de um julgamento justo afeta as famílias das vítimas e a sociedade de um modo geral. “A impunidade torna o mundo um lugar mais injusto”, diz Goggi. “Por isso é interessante analisar o que torna uma comunidade violenta e, a partir daí, começar a pensar sobre quais são os suportes necessários para torná-la mais justa, como a educação e a valorização do outro como ser humano.”