Na semana passada, o Partido dos Trabalhadores pediu ao Ministério Público para investigar um possível conflito de interesses na privatização da Sabesp, a companhia de saneamento do Estado de São Paulo. Alega-se que a presidente do Conselho de Administração da Sabesp fazia parte, até dezembro de 2023, do Conselho de Administração da Equatorial Energia, única empresa que se habilitou a tornar-se a “acionista de referência” da Sabesp, no processo de privatização.
Para quem se acostumou com a guerrilha antiprivatização do PT nos anos 90, e mais recentemente nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, a notícia poderia parecer apenas a reedição de uma velha estratégia: o uso de argumentos jurídicos duvidosos para tentar interromper um processo ao qual o PT se opõe ideologicamente. O partido, como se sabe, é contrário às privatizações, e luta até pela reestatização.
Acontece que o caso da Sabesp realmente merece escrutínio. Não necessariamente pelo alegado conflito de interesses, nem pela adoção de uma estrutura até então inédita nos processos de privatização no Brasil. O problema está na inclusão, no Estatuto Social da Companhia, de uma cláusula que, na prática, afastou outros potenciais interessados em participar do processo de privatização, sem benefício aparente para o interesse público.
A assembleia de acionistas da Sabesp, realizada em 27 de maio deste ano, incluiu no estatuto da empresa a obrigação de realização de uma oferta pública de compra de 100% das ações por qualquer pessoa ou grupo de pessoas que, após a privatização, se torne titular de 30% (ou mais) do capital da Companhia. O preço da oferta será o dobro do maior valor das ações, pela cotação em bolsa ou em aumento de capital anterior.
Esse tipo de regra estatutária é comum em nosso mercado, ainda que normalmente com percentuais menores de prêmio sobre o valor das ações. Alcunhadas de poison pills (pílulas de veneno), sua finalidade é, entretanto, legítima: assegurar que nenhum acionista controle a companhia sem oferecer aos demais acionistas a chance de vender suas ações a um preço não afetado por desvalorizações momentâneas.
Aquelas regras não impedem, contudo, que venha a existir um acionista com participação relevante, mas inferior ao limite previsto no estatuto social. Na verdade, é frequente que esse acionista exista – por vezes um fundador da companhia que reduziu sua participação e continua exercendo uma parcela importante do poder de comando. Trata-se do chamado “acionista de referência”.
A existência do acionista de referência é normalmente bem vista pelos investidores de mercado. Por um lado, a participação relevante no capital incentiva o alinhamento com os interesses da companhia (e dos demais acionistas). E, por outro lado, ela não é maior que 50%, permitindo que terceiros lancem uma oferta para adquirir o controle da companhia. O risco da tomada de controle incentiva o acionista de referência e os administradores da companhia a trabalharem por sua valorização.
A adoção desse modelo é um dos objetivos declarados da privatização da Sabesp, que busca selecionar um acionista de referência ao mesmo tempo em que a venda de ações no mercado pelo Estado de São Paulo reduza sua participação. Além disso, é celebrado um acordo de acionistas (no caso, chamado de acordo de investimento), assegurando certos direitos ao Estado e disciplinando o voto conjunto com o acionista de referência que vier a vencer a disputa.
Finalmente, pela regra incluída no estatuto da Sabesp, qualquer nova compra de qualquer número de ações pelo grupo de acionistas formado pelo Estado de São Paulo e o acionista de referência, que leve à superação daquele percentual de 30%, dispara a obrigação de lançar a oferta pública. Trata-se, também aqui, de um modelo comum no mercado brasileiro, evitando que acionistas se reúnam para burlar o limite estatutário.
O problema é que o conceito de grupo de acionistas inserido no estatuto da Sabesp é extraordinariamente amplo, abrangendo não apenas empresas, mas todos os fundos de investimento administrados por um mesmo gestor, caso tal gestor seja controlado por uma empresa que faça parte do grupo do acionista de referência, o que inclui um sócio relevante do acionista de referência.
Com essa regra, o processo de privatização da Sabesp afastou de uma operação bilionária qualquer investidor que tenha acionistas relevantes que também sejam gestores de recursos de terceiros, ou controladores desses gestores, dado que qualquer aquisição de ações da Sabesp por qualquer desses fundos – mesmo que com milhares de cotistas, e que apenas sigam passivamente o Ibovespa – levaria à obrigação de lançar a oferta pública para todos os acionistas da Sabesp.
Foi diante dessa regra que apenas uma companhia sem acionista controlador apresentou proposta para tornar-se o acionista de referência da Sabesp. A pílula anti-competição afastou qualquer concorrente, inclusive empresas com atuação estratégica e comprovada no setor de saneamento e consórcios de tais empresas com investidores financeiros que também sejas gestores de recursos. Tudo o que não se deveria querer quando se trata de privatizar uma empresa com o porte e as responsabilidades da Sabesp.
Em um país com grave déficit de recursos, o investimento na prestação de serviços públicos depende da desestatização. Um processo como o da Sabesp, que limita a competição sem qualquer benefício, põe em risco o próprio modelo de privatização, para júbilo de seus críticos ferozes, sempre prontos a atacar, e em prejuízo dos mais pobres, que precisam urgentemente dos serviços que o poder público não é capaz de prover.